Vou deixar o link de alguma versão em português, mas achei essa manchete em inglês a síntese de toda a homofobia que habita em certos nichos científicos. Vamos ler! "Itália. Esqueleto dos 'Amantes de Modena' de mãos dadas são ambos masculinos. Pesquisadores acreditam que o par podem ter sido irmãos, primos, ou soldados que morreram juntos.". Amantes? Não, não, nem vamos imaginar essa possibilidade. Em uma das versões da notícia que li em português falavam que na Antiguidade Tardia (*alguns historiadores odeiam essa categoria...*), os esqueletos têm aproximadamente 1500 anos, não era comum que homens fossem enterrados juntos de mãos dadas, mas um homem e uma mulher na mesma condição é coisa frequente.
Sendo homem e mulher, ninguém fala, nem mesmo imagina que "Podem ser irmão e irmã, primo e prima, vizinhos whatever", são amantes, não há dúvida. E como não se sabia o sexo dos esqueletos, mas vejam que não questionaram a possibilidade de serem duas mulheres, ganharam logo o apelido terno e imagino gente suspirando, mesmo cientistas, e inventando mil histórias românticas para preencher lacunas. É como o guerreiro viking que recentemente descobriu-se ser uma guerreira. Que desconfortável! Deveriam deixar nossas fantasias em paz.
Primeiro casal gay que conhecemos. |
Essa história dos esqueletos me lembrou do caso de Khnumhotep e Niankhkhnum, considerados por muitos o primeiro casal gay registrado pela história. Os dois eram funcionários de confiança de um faraó que viveram uns 2.500 A.C. Ambos cuidavam da manicure do soberano e outros cuidados corporais. Foram enterrados em uma mesma tumba e os desenhos do túmulo dos moços os retratam em situações e posições semelhantes às que esposos são representados. Fossem um homem e uma mulher, ninguém tentaria enfiar aquele papo "Ah, devem ser amigos!". O verbete da Wikipedia trouxe até umas informações que eu não tinha, de que certas partes das gravuras foram danificadas propositalmente para despistar a possível ligação entre os dois. Enfim, é possível apagar a história e se encontrarmos historiadores, ou arqueólogos, dispostos a desconversar com o "podem ser irmãos... tio e sobrinho... primos... amiguinhos...", a gente nunca vai conseguir escrever a história dos LGBTQI+. Nunca.
O que eu quero dizer? Não sou arqueóloga, mas como historiadora defendo que não se deve impôr sentidos a uma fonte. Agora, levantar possibilidades é importante. Por qual motivo descartar que poderiam, sim, ser amantes do mesmo sexo? Mesmo sem ser especialista em Roma Antiga, sei bem que, mesmo na Antiguidade Tardia (séc. III-VIII), relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo existiam. John E. Boswell, historiador pioneiro nos estudos da história dos gays no Ocidente cristão, merece ser lido e sua obra Same-Sex Unions in Premodern Europe é obrigatória para quem se interessa pelo tema, mesmo que seja possível apontar problemas na análise do autor.
A capa do livro do Boswell. |
Enfim, a negativa em aceitar a possibilidade e a ausência da menção na manchete em inglês só evidencia a projeção de uma homofobia internalizada no passado. Ela parece não ser tão violenta, mas é. LGBTQI+ tem história e essas histórias precisam ser contadas. Negar a gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans etc. a sua existência histórica é, sim, uma violência. Eliminar até a possibilidade deles e delas terem existido mesmo com fontes que apontem o contrário vai além, é fraudar a história mesmo.
Voltemos para a atualidade. Este ano estreia Minha Mãe é uma Peça 3. Paulo Gustavo revive mais uma vez a personagem Dona Hermínia e o filme retrata o casamento de seu filho com outro homem. Eu assisti e resenhei os filmes anteriores (*1 - 2*) e sei que o Juliano (Rodrigo Pandolfo) é bissexual. Há inclusive uma cena no filme 2 em que o rapaz chega com uma namorada em casa e a mãe surta, afinal, demorou um monte de tempo para aceitar a homossexualidade do filho e ele agora vem fazer bandalha na cabeça dela. Enfim, o rapaz se casa, mas Paulo Gustavo vetou o beijo.
Um público que curte um homem vestido de mulher, não aceitaria um beijo entre um casal gay? |
Alguém casa e não beija o/a parceiro/a? É algo absolutamente consolidado no Ocidente que o casal se beije, espera-se isso. A gente assisti Orgulho & Preconceito da BBC (1995) para ter um único beijo de Darcy e Elizabeth no final. Eles se casaram, eles podem se beijar e ficamos felizes. Só que um filme contemporâneo não terá beijo, porque, segundo Paulo Gustavo, “A gente não precisa esfregar nenhuma opinião pessoal na cara do público. Mais do que isso (o casamento gay) não precisa".
Paulo Gustavo é um homem gay, casado e que recentemente celebrou em público o nascimento de seus filhos gêmeos e, ainda assim, acredita que sua orientação sexual é isso? "Opinião pessoal"? Será que o público cativo do ator, uma audiência que o acompanha em várias mídias iria se ofender com algo que é natural em nossa cultura, isto é, que os noivos se beijem? Será que o filme sofreria boicote de conservadores por causa de um beijo? E, se assim fosse, será que um público que não se rotula dessa forma não iria compensar na bilheteria? Afinal das contas, Minha Mãe é uma Peça é uma franquia que gira em torno de um homem que se veste de mulher para interpretar a personagem título. Ah, já sei! Gay chacota é normal, mas homossexuais em situações comuns do dia-a-dia, não pode!
Vai ter casamento, festa e bolo, mas beijo não pode. |
Procurando, encontrei uma fala do ator do ano passado, quando o filme começou a ser pensado: “Como é algo embrionário, o filme ainda está muito no rascunho. Só posso falar que estou muito empolgado. Ah, e que uma coisa com certeza vai acontecer: Juliano vai casar. E vai casar com um homem. Claro, né!? Se ele é gay, vai casar um homem. Quero falar sobre isso até porque eu também casei”. Enfim, o que mudou de lá para cá? Sei que muita coisa ruim aconteceu, mas não sei como qualificar essa fala e a atitude. Não é simplesmente interesse econômico. Medo? É filme infantil e beijo pode ofender a "família brasileira"?
Enfim, da mesma forma que temos machismo estrutural, racismo estrutural, temos, também, a homofobia estrutural. Parece natural, então, se negar a ver a possibilidade (*não a certeza*) de homossexuais terem história, mesmo que uma identidade homo, ou mesmo heterossexual, não existisse em muitas culturas, e pode ser visto como aceitável que um homem gay considere uma demonstração de afeto como algo que pode ofender. Amar, desde que a relação seja consensual e respeitando as balizas legais (*falo de abuso e pedofilia*), não deveria ser motivo de vergonha. E um beijo partilhado, uma das expressões máximas de afeto e confiança, não deveria ser transformado em algo potencialmente perigoso e sujo. Não vou dizer que não assistirei Minha Mãe é uma Peça 3, mas sei que não o farei com a mesma leveza das duas experiências anteriores.
1 pessoas comentaram:
Oi, então, eu sou historiadora e LGBT, e nenhum historiador decente e honesto concordaria em projetar seus próprios valores em um achado desse tipo. Eu não gosto muito quando, ao noticiar esse tipo de situação, falq-se "os historiadores dizem que eles eram irmãos", porque dá a impressão que somos uma classe profissional conservadora. Existem historiadores conservadores, mas isso não é um comportamento profissional ou honesto, portanto, não representa pessoas interessadas em de fato desvendar o passado da humanidade.
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