domingo, 18 de agosto de 2019

Dois exemplos de como os feminismos não são compreendidos: a entrevista com Maria Zilda e a matéria sobre a nova Novela Éramos Seis


Hoje, me deparei com duas matérias do UOL e queria comentar como os feminismos são citados nos textos sem grande compreensão do que se está falando.  O primeiro texto traz fragmentos de uma entrevista com a atriz Maria Zilda Bethlem, uma das grandes beldades dos anos 1980.  Ela sempre fazia papéis de mulher fatal, ou de caráter dúbionas telenovelas da minha infância.  Ao longo do texto, a atriz fala com tranquilidade da sua bissexualidade, que gostava de sexo e que sabia o quanto era bonita e atraente.  Daí, temos o seguinte:
"Ao contrário de inúmeras beldades alegadamente feministas dos anos 1980, Zilda nunca viu problema em ser atraente. "Imagine, eu aproveitava! Exercitei muito minha sedução. Comi toda a cidade do Rio, a de São Paulo, Nova York e Paris. Passava a régua!", diz, rindo muito."
Não sei de onde tiraram que ser feminista é abrir mão da sexualidade, negar-se a ser bela dentro dos padrões dominantes, ou algo do gênero.  Uma das bandeiras das feministas era o direito ao controle sobre seu próprio corpo, seja para questões reprodutivas, ou afetivo-sexuais, e uma das acusações feitas às feministas em vários momentos da história seria a da apologia ao amor livre, de se comportarem de formas que atentaram contra a moral a aos bons costumes.  Em suas falas a atriz assume o protagonismo em relação aos seus relacionamentos e até se apropriando de um termo que é comumente usado pelos machistas, dizendo que "comeu" quem quis e está falando de homens e mulheres.

Como a maioria das atrizes de sua época,
ela posou para a Playboy.
Há feministas que não gostam de sexo, sabe, assexualidade existe.  Há feministas que gostam de sexo, dentre essas, algumas são heterossexuais, outras são bissexuais, lésbicas etc.  Curioso é que quem lasca o rótulo de feminista na atriz é o autor da matéria para, em seguida, mostrar o quão pouco entende de feminismos.  De qualquer forma, aprendi bastante sobre a Maria Zilda nessa entrevista, sabia muito pouco sobre a atriz e ela não se diz feminista em nenhum dos fragmentos da entrevista, quem a rotula é o jornalista, agora, ela só pode viver sua vida como viveu por causa dos feminismos.

A segunda matéria é sobre a próxima novela das seis da Globo e tem como título "Com Glória Pires, novela 'Éramos Seis' ressurge com ecos feministas do MeToo".  Ainda estou para entender esse link com o MeToo, que tem a ver com situações de assédio sexual, principalmente, mas não vou tentar o impossível, acredito que é somente um título sensacionalista mesmo.  Para quem não sabe, Éramos Seis, o livro de Maria José Dupré, será novamente adaptado para a TV.  Fiz um post sobre a novela quando ela foi anunciada.  Eu nunca gostei do livro, mas a novela do SBT de 1994 foi excelente e tenho boas lembranças dela.  A Globo comprou os direitos do livro e do roteiro da novela de 1977, no qual o SBT se baseou, e isso impedirá que Sílvio Santos possa colocar sua versão no ar.  E, bem, esse embargo à novela de 1994 é uma pena pela novela, porque sei que "o homem do baú" iria querer aprontar alguma das suas para sabotar a concorrente

Éramos Seis na versão de 1994.
Enfim, para quem não conhece o livro, que já foi leitura obrigatória em muitas escolas, a história começa em meados da década  de 1910 (*mas as novelas puxam seu início para os anos 1920*) e gira em torno de uma família de classe média baixa.  A esposa, Dona Lola, é a narradora e uma dona de casa submissa ao marido, Júlio, um homem muito trabalhador e responsável, mas que tem dificuldades em expressar seus sentimentos e volta e meia chega bêbado em casa.  O pai é pouco amoroso com os meninos, Carlos, Alfredo e Julinho, ao mesmo tempo em que mima Isabel, a única filha.  Os anos vão passando, acompanhamos as transformações da cidade de São Paulo e as pequenas alegrias e tragédias que atingem Dona Lola, a mãe e esposa/viúva virtuosa.

Pois bem, para a novela, e esta já será sua quinta versão, tramas precisam ser criadas.  Isso é normal.  Uma trama inventada que deve sumir, tenho quase certeza, é a da amante de Júlio.  Hoje, dificilmente as pessoas conseguem encaixar a ideia de que um homem possa ser adúltero e bom marido e pai de família.  Só que ao eliminarem isso, a novela ajudará a reforçar a visão cor de rosa que muita gente tem em nossos dias da tal família patriarcal idealizada.  Talvez, até diluam uma questão importante da história, a resistência de Dona Lola em aceitar que a única filha vá morar, porque casar não tinha como, com um homem desquitado.  


Achei os meninos, especialmente Julinho,
muito crescidos para a primeira fase.
Na própria foto de divulgação, vemos Dona Lola de 2019 com um vestido mais curto do que usaria nos anos 1920 e com um cabelo solto.  As outras versões a colocavam com o cabelo curto, porque, bem, mulher casada de cabelão normalmente o prendia em um coque, ou algo do gênero.  Minha mãe, que nasceu em 1951, sempre prende o cabelo, e não é por questão religiosa, mas uma norma de comportamento que ela aprendeu com minha avó e suas tias avós.  É nítida a diferença entre mamãe solteira com sua cabeleira solta e mamãe casada, de coque, ou trança.  Já minha tia, irmã de mamãe, se recusou a acatar essa regra. De qualquer forma, Glória Pires na foto parece mais uma mãe de família dos anos 1960-70.  Mas vamos ao feminismo no texto, antes que eu me perca:
“Nossa Lola é uma personagem diferente daquela de 1994. Como força motriz da família e daquela história, ela agora é menos submissa, tem mais voz, e ela descobre essa voz”, conta Chaves. “Vai ter mais força naquela casa, na maneira como se comporta, ainda que continue sendo uma mulher típica dos anos 1920.”
Eu tenho medo desse tipo de atualização, aliás, o jornalista Nilson Xavier já tinha apostado nesse caminho em um texto publicado semanas atrás.  Ora, a obra original não entrava em discussões de gênero, ou papéis sociais, ela é uma crônica de costumes, quase um slice of life, ela mostra, raramente discute, é muito mais um painel. Dona Lola era a força motriz da família e sua submissão e autocontrole não eram sinal de fraqueza, mas parte da força da personagem.  Um retrato de época.  

Adelaide, a feminista elegante e espirituosa inventada
para a novela Éramos Seis.  Ela estava na versão de 1977, 

o gif é do remake de 1994.
 Na segunda novela, a única que assisti, as discussões feministas apareceram em vários momentos, mas nunca usando Lola.  Era principalmente a personagem Adelaide, uma das filhas da tia rica da protagonista, a feminista.  A mãe a mandou para Paris para que fosse transformada em uma dama, quando ela volta para São Paulo fuma, usa calças compridas e tem uma conduta sexual inadequada para uma moça de família.  Um escândalo!  Não é necessário mexer em Dona Lola, empoderá-la artificialmente (*pode nem ser o caso, aliás*), para discutir questões feministas.  A novela de 1994 fez isso muito bem recorrendo às personagens secundárias.  Mas temos mais uma coisa:
"Se o papel da mulher, nesta nova versão, se guia por um ambiente de cunho feminista, o que dizer então do principal papel masculino da novela?  Calloni diz que a obra retrata um tipo de homem que era visto basicamente como provedor. “O drama do Júlio é absolutamente humano. Está nas batalhas do dia a dia, em pagar suas contas, realizar sonhos, sustentar a família”, explica o ator. Na visão de Calloni, é simbólico também que Júlio pertença a uma geração de homens que tinha “dificuldade muito grande de demonstrar amor”. “A relação com os filhos é conflituosa por ele não conseguir se expressar. É bonito contar essa história agora num momento tão delicado, tão belicoso”, diz o ator. (...) Calloni reconhece na novela a influência de uma “vertente mais feminista” atual, mas sem que se percam características da época. Segundo o ator, o homem hoje deve assumir o papel de ouvinte, ainda que um ouvinte ativo. Ele conta que, aos poucos, Júlio vai entendendo que a cultura em que vive responde por dramas pessoais e vai encontrando formas para expressar seus sentimentos."
Lembro dessa visita à praia na versão de 1994.
É possível usar Lola e Júlio para discutir o patriarcado e como homens e mulheres sofrem (*ainda que em graus diferentes*) com as imposições de um sistema que é, sim, muito violento.  Até acredito ser produtivo mostrar o peso que Júlio carrega nos ombros, a máscara que precisa usar para ser um bom pai e marido na década de 1920, mas temo que essa humanização possa, também, fugir da personagem original.  Pode acontecer como na segunda versão de Sinhá Moça, na qual até o Barão de Araruna chora.  Sei lá o que vão fazer.

O fato é que o anacronismo que podemos suportar em Orgulho & Paixão, por exemplo, seria altamente destrutivo em Éramos Seis, uma obra naturalista.  Não sei se vocês já conversaram com pessoas de mais de 60 anos sobre o tema, mas é muito comum que nas lembranças, especialmente dos homens, o pai das classes trabalhadoras apareça com características bem marcadas: ele era o provedor, ele exercia a disciplina em casa (*vão tirar as surras que Júlio dava nos meninos, também?*), ele nunca chorava e dificilmente expressava afeto.  Um afago na cabeça, raramente um abraço, alguns pais nunca beijavam os filhos homens.  Bem como o Seu Júlio, o do livro, o das novelas anteriores, por qual motivo torná-lo diferente se não se trata de uma obra contemporânea?

Na versão de 1994, todos tinham medo do pai.
Concluindo, a autora do remake, Ângela Chaves, comenta que o original não levantava "bandeiras femininas" específicas.  As pessoas tem muita dificuldade em separar feminino de feminista.  Uma bandeira feminista é a autonomia da mulher e o fim de uma dupla moral, algo que permitiu a uma Maria Zilda dizer em entrevista que "comeu" quem quis em sua juventude.  Uma bandeira "feminina" seria, por exemplo, a defesa do casamento por amor, algo que em si não compromete as hierarquias de gênero. Concordo que Éramos Seis não levantava nem bandeiras feministas, nem femininas, era quase um slice of life, o dia-a-dia de uma família trabalhadora branca paulistana como qualquer outra.  E digo mais, essa é uma das forças da história.  Espero que dê tudo certo, mas essas conversas de MeToo em uma novela que se passa nos anos 1920 e 1930 não me empolgam nem um pouco.

2 pessoas comentaram:

Eu li em algum lugar que essa amante do Júlio será interpretada pela canastricima Ellen Roche.

Vi a versão de 94 na reprise em 2000 ou 2001. Eu assistia todos os dias, e na reprise da madrugada - quando conseguia quando tinha uns 11 anos. É minha novela do coração. E eu amava absolutamente a Adelaide. Fiquei decepcionada quando fui ler o livro e não e não achei a personagem lá kkkkkkk Acho que ela foi meu ícone pop de empoderamento!

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