Ontem, recomendei o vídeo do Meteoro sobre Karekano e Metapercepção. Algo que, talvez, alguns não tenham entendido é que o anime, não o mangá, foi usado para discutir um conceito da psicologia. Visivelmente, o objetivo do vídeo não era discutir a série e suas nuances, ou comparar mangá e anime. O que pontuei de problemas foi tendo isso em mente, quais sejam, a omissão da autoria original feminina e certas características da personalidade de Arima e Miyazawa. Mas, nos comentários, pediram-me opinião sobre o vídeo do Meteoro, coisa que eu já tinha feito no post curto e sobre o que eu acho de Karekano.
Olha, falei de Karekano em vários momentos do Shoujo Café, só que Karekano terminou faz muito tempo e o site tem 14 anos de posts. Resultado, daria um trabalho monstruoso tentar localizar tudo. Achei alguma coisa. Só que vou resumir basicamente os problemas que vi no mangá, porque o anime, que tem problemas que são seus, termina no volume #8 e muito mal, porque faltou dinheiro para garantir a qualidade da animação. Vou escrever de memória, principalmente, não vou pegar na estante o mangá para rever tudo agora. E, bem, esse post tem spoilers, mas o mangá terminou em 2005, no Japão, com 21 volumes e em 2008, no Brasil, onde foi publicado pela Panini. Muito tempo, portanto, não aceito reclamação.
Arima foi uma criança abusada pela mãe e abandonada pelo pai. |
Para quem não lembra do plot básico de Karekano, a série segue o relacionamento de dois adolescentes, Miyazawa, que vem de uma família de classe média muito amorosa e tem duas irmãs, e Arima, filho único de um casal de meia idade e membro de uma família muito rica e dona de empreendimentos médicos. Ambos são alunos excepcionais, Miyazawa é muito competitiva e não quer que Arima a supere em notas. A garota não tem amigos e finge perfeição para todo mundo, já Arima é, aparentemente, perfeito, mas carrega um peso enorme: ele é filho bastardo, rejeitado pelos parentes e se sente em débito com os tios que o acolheram, adotaram e lhe dão muito mais amor do que ele acredita merecer. Ele acredita ter uma dívida com os seus pais adotivos, é assim que ele se sente, é algo cultural, por isso, ele se esforça tanto e pretende seguir a carreira do tio-pai e se tornar médico.
Claro, há muitas mais personagens em Karekano, adolescentes que se tornam amigos de Arima e Miyazawa. Há toda a questão da felicidade da menina em finalmente ter amigas e amigos. Karekano trata com muita delicadeza da questão da iniciação sexual de dois adolescentes, aborda as pressões por desempenho acadêmico e tudo mais de forma bem precisa. Mostra famílias amorosas e atentas. Os pais de Arima e Miyazawa não são ausentes, eles são parte da história. Há alguns temas que podem ser complicados, mas são realistas, como o romance de Maho, uma das amigas de Miyazawa, uma adolescente, com um homem mais velho.
Da parte "ruim" do mangá, essa cena, não o tapa em si, mas toda ela, foi a melhor. |
Agora, os problemas estão lá, também, e não são poucos. Até o volume #11, essa faceta triste do Arima não causa problemas à história. Eu uso o volume #11 como marco, porque é quando existe a viagem da escola até Kyoto e temos o gaiden falando dos exames de admissão no colegial, outro capítulo muito bom. O volume #12 praticamente não traz Miyazawa e Arima, é centrado em outras personagens e, a partir do #13 começamos a ter as questões barra pesada.
A mãe abusadora de Arima retorna à história. Uma mulher cruel e a autora, Masami Tsuda, a coloca inclusive estuprando (*porque é isso que acontece*) o pai de Arima. É assim que ela engravida. Não há nenhuma questão a respeito da adolescente grávida e sem suporte, mas há todo o foco na mãe abusadora e cruel com seu filho. Arima era torturado pela mãe e acaba sendo acolhido pelos tios. Uma das melhores cenas do mangá é quando a mãe-tia super dócil de de Arima confronta a mãe abusadora. Eu gosto muito dessa cena. O mangá trata de forma diferente o pai de Arima, há grande complacência com um sujeito que é bem traste e abandonou o filho. Basta buscar o mangá e confirmar. Ambos os pais biológicos de Arima são horrorosos, cada um a sua maneira.
Arima se sentia nada, se sentia um lixo. |
O problema é que Arima surta com o retorno da mãe. As memórias dos abusos voltam, ele se sente um lixo e culpado, afinal, ele não deveria ter nascido. Ele passa a tratar mal Miyazawa, ela tenta ajudá-lo, ela não o abandona. E ele termina por estuprá-la para fazê-la se afastar dele. Não importa a simpatia que eu tenha pelas personagens, e eu tenho e muita, houve um estupro. A sequência fatídica acontece no vol. 15, cap. 72. Arima tenta o suicídio ciente do que fez. Miyazawa vai até o hospital, consola o moço, diz que não houve estupro, o perdoa e isso o salva.
Quem lê o que eu escrevo no blog, sabe que eu acredito em perdão e mudança de vida. Adoro tramas que trabalham com a ideia de redenção. Eu sou cristã, preciso acreditar nessas coisas, afinal. E eu sei que se Miyazawa virasse as costas para Arima naquele momento, ele morreria. Não haveria escapatória para ele. O problema é como a autora, não as personagens, porque elas não em autonomia, constrói a trama. Ela ignora a dor da menina em absoluto e foca em Arima. Resultado? É como se efetivamente NADA tivesse sido feito contra Miyazawa e isso é um desserviço para com as leitoras, adolescentes, em sua maioria. Não é uma celebração da cultura do estupro, mas não rompe com ela, não a confronta.
Sim, foi estupro. |
O seguir da história não torna as coisas melhores. Miyazawa engravida DESSE ESTUPRO. Ela está no último ano do colegial. Não há discussões sobre a questão e não pensem que eu estou defendendo que ela deveria ter abortado. Mais uma vez, havia vários caminhos possíveis. O que a autora faz? Miyazawa perde o foco nos estudos, deixa de pensar em sua carreira, deixa de ser a garota que sonhava em fazer Direito em uma boa universidade. Ela esquece. É acolhida por sua família, sua própria mãe seguiu um caminho parecido, e pela família de Arima, mas isso não é o bastante, não serve para empoderar a protagonista.
Todos se formam, para Miyazawa resta a maternidade. Temos um salto de tempo. 15 anos. Arima se tornou policial, algo que foi apresentado antes como seu sonho. Ele nunca quis ser médico, ele queria compensar seus pais adotivos e não pensava em si mesmo. E Miyazawa? Ela se tornou médica, ocupou o lugar que Arima deveria (*pela lógica cultural japonesa*) ocupar. Ela parece feliz? Não. Ela chega a dizer que nem é uma médica tão boa assim. Ou seja, ela não pode escolher, ainda que tenha uma carreira.
Miyazawa engravida. |
Mas há o derradeiro capítulo e temos o fantasma da pedofilia rondando. Asaba, o melhor amigo de Arima e que Miyazawa via como um competidor pelo coração do rapaz, é uma personagem importante. Popular com as garotas, lá no início do mangá ele chega a dizer que se casaria com Arima se ele não fosse um rapaz. Ele é um solteirão no final do mangá, tornou-se escritor. Já a criança que nasceu do estupro, uma menina, é IDÊNTICA ao pai quando jovem. A menina é apaixonada pelo "tio" e, sim, ele termina aceitando o amor da garota apensar de sentir muita culpa por isso.
É o fim de Karekano com uma menina adolescente tomando a iniciativa e conseguindo seduzir um adulto. Não há sexo explícito, não há nada de gráfico em Karekano, as imagens são até poéticas, mas é isso. Tsuda foi competente em retomar algo que tinha sido dito lá no início da série, mas precisava? Acredito que não. Me fez mal ler esse desenlace.
O pai de Arima é tão desgraçado quanto a mãe dele. |
Enfim, Karekano é um ótimo mangá. Não estou dizendo que não seja, mas ele tem problemas e não posso fechar os olhos para eles. Era isso que as pessoas queriam? De novo, reforço que o Meteoro não estava falando de Karekano, mas usando a série para explicar um conceito. E só.
P.S.: Como estou bloqueada no Facebook, trouxe o comentário da moça para cá e vou respondê-lo aqui:
- Comentei no texto que não ia pegar o mangá para confirmar as coisas e não vou mesmo, mas vamos lá! Logo no início da série, Miyazawa fala do seu sonho de se tornar advogada e ficar muito rica. Isso está no anime também. Depois do incidente do estupro, ou pouco antes dele, quando Arima já estava surtando e ela em profunda angústia, Miyazawa esquece de entregar o próprio formulário de escolha profissional. Ela era a responsável por entregar o de todo mundo e esquece o seu. Isso me marcou muito durante a leitura, porque, bem, Miyazawa, super focada em questões como essa, nunca esqueceria, não é mesmo? A situação vivida justifica, claro. E, bem, volume #20 é o penúltimo volume. Miyazawa está grávida, escolhendo enxoval, prestes a casar e parir, sem grande perspectiva de futuro fora do círculo doméstico e, de repente, descobre que o sonho de sua vida SEMPRE foi ser médica. Qual é o negócio da família dele mesmo? E Arima, que era o herdeiro do hospital tinha decidido ser policial, não é? Pois bem, ficou parecendo o quê? Na falta de alternativa, agarre-se ao que tem e, claro, transforme seus limões em uma limonada.
P.S.: Como estou bloqueada no Facebook, trouxe o comentário da moça para cá e vou respondê-lo aqui:
- Comentei no texto que não ia pegar o mangá para confirmar as coisas e não vou mesmo, mas vamos lá! Logo no início da série, Miyazawa fala do seu sonho de se tornar advogada e ficar muito rica. Isso está no anime também. Depois do incidente do estupro, ou pouco antes dele, quando Arima já estava surtando e ela em profunda angústia, Miyazawa esquece de entregar o próprio formulário de escolha profissional. Ela era a responsável por entregar o de todo mundo e esquece o seu. Isso me marcou muito durante a leitura, porque, bem, Miyazawa, super focada em questões como essa, nunca esqueceria, não é mesmo? A situação vivida justifica, claro. E, bem, volume #20 é o penúltimo volume. Miyazawa está grávida, escolhendo enxoval, prestes a casar e parir, sem grande perspectiva de futuro fora do círculo doméstico e, de repente, descobre que o sonho de sua vida SEMPRE foi ser médica. Qual é o negócio da família dele mesmo? E Arima, que era o herdeiro do hospital tinha decidido ser policial, não é? Pois bem, ficou parecendo o quê? Na falta de alternativa, agarre-se ao que tem e, claro, transforme seus limões em uma limonada.
10 pessoas comentaram:
Achei bem bacana o texto.
Eu li Karekano há muito tempo e confesso que não lembrava de nadica da história e, com isso, fiquei com vontade de reler, ver com eu, hoje, me relacionaria com a história, sendo que li quando ela foi lançada pela panini e, bom, muita água rolou desde então.
Mas mesmo sem ter relido, só de ler esse post já consigo perceber N questões que fazem parte da cultura japonesa como mulheres serem relegadas ao papel de mãe e homens machistas serem vistos como "tadinhos"... Enfim, histórias que são bacanas mas que PRECISAM desse recorte porque não devem serem vistas como uma idealização de relacionamento.
Eu assisti o anime na época e fiquei muito interessada, acho a protagonista muito parecida comigo. Infelizmente o anime não tem final, aí estava completando a coleção atualmente para tenar lê-lo. Confeço que me assustei com o rumo da história, não sei mais se quero retomá-la!
Muito obrigada pelo texto de coração. Eu sempre vi Karekano como o melhor mangá shojo que eu já li, mas nunca tinha notado essas coisas e esses "defeitos". Parece estranho, mas gosto quando me mostram o que tem de errado com as obras que eu gosto. Mais uma vez, obrigada.
Eu discordo da questão do Asaba. Também não vou tirar o mangá da estante pra ver, mas a impressão que eu tive é que ele "aceita o amor" da menina e reconhece o dele quando ela se declara, mas ainda vai esperá-la crescer pra ter um relacionamento. Que eu saiba, isso é um tópos na literatura japonesa - escolher/amar uma menina e se casar com ela quando ela for adulta. Não que isso não seja estranho e potencialmente danoso, mas não chega a contar como pedofilia.
Sobre a Miyazawa ser médica, acho que o problema mesmo foi a Tsuda não ter construído o final direito. Simplesmente tivemos que engolir que o Arima queria ser policial e ela médica, provavelmente por ordens do editor - ou incompetência narrativa mesmo. Quando eu li, com os meus 13 anos, não achei que a Miyazawa estava infeliz, afinal ela era uma médica bem sucedida, possivelmente a herdeira do hospital, e como sempre foi ambiciosa... Mas também não tinha entendido que a cena na biblioteca foi um estupro, então li com as lentes da ignorância rs
Nossa, outro dia eu tava olhando minhas coleções de mangá e fiquei pensando em quanto kare kano era legal, mas ainda assim tinha um sentimento ruim guardado em mim em relação a ele. Essa cena do estupro me deixou muito chateada na época e deixou uma marca negativa no mangá. Sobre o Asaba, essa foi outra questão que não gostei muito. Não importa se ele vai ou não esperar a menina crescer, achei péssimo ele ter um sentimento assim por uma criança.
No mais, a história é bem legal e penso em reler um dia, apesar dessa cena...
Oi!
Precisava desabafar sobre KareKano em algum lugar e vai ser aqui.
Bem... Eu havia assistido o anime la nos anos 2000 perto de qdo ele foi lançando e tinha ficado la. Recentenemnte procurando por mangás em que havia um desenvolvimento do relacionamento do casal protagonista encontrei em uma lista KareKano... Realmente fiquei intrigado e peguei para ele e bem...
Gostei de muita coisa mas o arco do Arima como menncionado aqui é pesado tenso.. qdo cheguei no capitulo 72 do fatidico acontecimento no primeiro momento eu não percebi o que estava acontecendo... até que duas paginas a frente tema Yukino se acordando de madrugada e pondo a mão no seu ventre, nesse momento caiu a ficha e não consegui parar de ler pq queria saber como isso se desenvolveria. e simplesmente li tudo de uma vez hoje (22/04/2020) até as 4h30 da manhã...
Ao meu ver grande parte do comportamento da Yukino, além da romantização de ela amar o Arima acima de tudo e até perdoar ele pelo que ele fez, tem um pouco haver com a psicologia do povo japones, as mulheres mesmo hoje em dia infelizmente tendem a ser submissas e parece ser bem factivel com que provavelmene costume acontecer por la.
Sim surgiram soluções mágicas no fim, e algumas coisas que a autora se enrolou para desenvolver e criou uma solução no ultimo capitulo, como Asaba que foi simplesmente esquecido o desenvolvimento dele servindo apenas de apoio
Se o manga não tivesse "gasto" 8 volumes ( ou 2 anos ja que era mensal a publicação ) com todo o drama do passado do Arima, a historia poderia ter sido muito melhor.
Mas mesmo eu achando um pouco forçado o final em que todos se tornaram super em algo eu gostei que pelo menos teve um "micro-arco" sobre o que eu realmente estava achando interessante que era a toda a questão de como iria ser a vida deles após a escola. Se a Autora tive feito a Gravidez de yukino ocorrer mesmo assim, mas de uma forma menos violenta e desenvolve-se o relacionamento deles a partir disto teria sido muito mais interessante.
E continuo na minha procura por uma manga de relacionamento que seja mais detalhado na evolução do relacionamento em que ambos se completam e evoluem. Um assunto que para o Japoneses, é uma coisa sempre bem complicada.
Muito bacana o texto. Eu amo o anime, mas realmente o mangá traz questões bem pesadas e problemáticas e é bom que seja pontuado!
Gente, eu terminei o anime agora e fui procurar se tinha segunsa temporada e me deparo com esse texto, procurei e procurei esse mangá com toda essa história de estupro e nn encontrei, o mangá é idêntico ao anime, alguém pode me explicar? Fiquei mt confusa
Não há segunda temporada animada de Karekano. São 26 episódios e acabou. O final do anime cobre mal e mal os volume 8 e 9. O mangá vai até o 21. Muita coisa aconteceu depois e mesmo o anime, tem muitos fillers e não cobre de forma adequada o que acontece entre os volumes 6-9.
Chocado com essa questão do estupro e do final da Yukino, só vi o anime recentemente e tava procurando por spoilers do final e ficar sabendo desses acontecimentos me faz correr pra longe do mangá! Eu gosto muito do personagem da Yukino, pelo menos no anime, ela é muito madura e tem uma inteligência emocional raríssima, seja em ficção ou na realidade, ver ela ser agredida e tendo suas agência anulada desse jeito no mangá é muito triste e uma oportunidade desperdiçada, vendo o anime achei Kare Kano um romance diferente de tudo justamente pq o casal protagonista de um jeito ou outro acaba enfrentando e resolvendo problemas e segue se amando. Sei lá, acho revolucionário ver um relacionamento saudável na ficção, mas aí o mangá estraga tudo. Bem triste.
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