terça-feira, 7 de maio de 2019

Ainda sobre GOT e Daenerys, ou como é fácil enlouquecer uma mulher na ficção


Como a questão da Daenerys está rendendo no meu Facebook, decidi fazer um adendo.  Eu gosto bastante da personagem, mesmo não assistindo ao seriado. As partes do primeiro livro que li foram exatamente as com a Daenerys. Por isso, sei exatamente que a primeira cena de sexo da personagem com o marido não foi um estupro, como no seriado, salvo se você considere que, pela idade de Danny à época,  trata-se de uma violação sob qualquer ponto de vista. Por qual motivo coloco isso? Porque o que me afastou de GOT logo de início foi a exploração da violência contra as mulheres, de oferecer isso como um bônus para a audiência, além de reforçar na cabeça da molecada que acredita que a série é retrato fiel da Idade Média, que aquele período "obscuro" era o paraíso dos estrupadores.  Aliás,  já falei sobre a questão no blog antes.

 Primeira coisa, disseram que por ela ter gostado do castigo imposto ao irmão,  isso já era indício precoce de sua loucura. Vejamos, esse irmão fez todo o tipo de atrocidades com ela, a humilhar, ameaçou matar o bebê em seu ventre etc. Levando-se em conta tudo isso, ela não se doer por ele não é indício de loucura, salvo se você acreditar que mulheres "normais" devam perdoar sempre, serem compassivas e aceitar que seu destino é sofrer.

Sério,  que vocês acham que ela já dava pinta de louca
por não sentir peninha dele? Sério?
Um ex-aluno muito querido, estudante de medicina, ponderou sobre o imperativo genético.  A loucura estaria nos genes dos Targaryen e que Jon Snow teria menos chances de enlouquecer, por exemplo. De fato, a genética pode trabalhar contra você,  especialmente em ambientes de intensa endogamia, PORÉM genética é loteria e a série não é conhecida por seu apreço à pressupostos científicos.  Outra coisa, o que é loucura, ou não, depende da cultura e da história, não raro do sexo da criatura.

Exemplo, eu estudei os franciscanos. Francisco de Assis no século XIX teria ido internado pelo pai e considerado louquinho, hoje, no nosso estranho século XXI,  talvez, fosse saudado, assim como no século XIII, como uma liderança carismática,  mesmo em grandes centros urbanos de países desenvolvidos.  Clara de Assis, no século XIII, era somente uma mulher que se dedicava aos extremos da penitência,  hoje, seria tratada como anoréxica e submetida a algum tratamento médico psiquiátrico.  Já fiz um post sobre como já foi fácil pintar uma mulher como louca; na ficção,  ao que parece, ainda é. 

Clara de Assis, no seu tempo, uma mulher excessivamente
piedosa e teimosa, no século XIX seria histérica,  nos nossos dias,
 uma anoréxica que precisando de ajuda.
O que quero dizer é que, se nada mudar, os roteiristas escolheram enlouquecer Danny e desqualificar sua liderança, tirar seus méritos e pintá-la como tirana. Há quem acredite que ese projeto vem de longe, sinto cheiro de fanboyice, mas podem me acusar de "pobreza interpretativa", ou má vontade, porque não vai me arranhar em nada. Sei que não estou só nessa leitura, muito pelo contrário, há todo um histórico de personagens femininas fortes que terminam consumidas pelo próprio poder, transformadas em loucas. É um clichê. Daqui a pouco a Fênix Negra estará nos cinemas para a gente ver a mesma história de novo.  

Agora, será que se fosse um homem, estaríamos qualificando a personagem de louca?  Provavelmente, não,  ou não com mão tão pesada.  Caso certos abusos fossem cometidos por homens, não seriam mais do que atos de força legítimos em situação de guerra. E, sim, se Cersei será morta por seu irmão mais novo (*há uma profecia sobre isso*), Daenerys provavelmente será morta por Arya. Esqueci da tal profecia no post de ontem.   Provavelmente, será lamentável, também. 

Um Twitt que precisa circular.
E só lembrando, porque é outra pendência, Sansa não foi estuprada nos livros.  Foi uma opção dos roteiristas humilhá-la e transformar a violência em escada para o desenvolvimento de uma personagem masculina (*outro clichê*).  Daí, tiveram a brilhante ideia de tentar consertar neste último episódio.  E como?  Ela se fortaleceu com essa experiência, também.  Mas, ora, vejam, ela se fortaleceu nos livros sem ter que ser estuprada.  Precisava mesmo?  Enfim, quantas personagens femininas importantes do seriado foram poupadas disso?  Cersei foi estuprada em uma cena que foi alterada exatamente para isso.  Não há defesa, não, mas não estou pedindo que ninguém deixe de gostar da série, apenas lide com seus problemas de forma madura.

1 pessoas comentaram:

GoT teve muitos problemas ao longo das temporadas. Não seria no final que eles de redimiriam.
Os produtores e envolvidos resumem as críticas a "todo mundo reclama se a série não acaba do jeito que querem". Mas não é esse o caso. Desde que os produtores ficaram sem os detalhes dos livros, muita coisa desandou. E o final é a cereja do bolo, estragando não só as expectativas do público, mas indo contra tudo o que estava sendo construído ao longo do tempo na própria série.
Um belo tiro no pé.

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