quarta-feira, 22 de maio de 2019
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1:28 PM
Pretendia fazer este texto no sábado passado, para vocês verem a confusão que anda minha vida, comecei, parei, recomecei e nem sei quando ele vai sair. Pois bem, dias atrás apareceu circulando um trecho do vídeo de uma palestra de Damares Alves de abril de 2018 no qual a ministra dava vasão às suas fantasias a respeito da sexualidade da Elsa, poderosa rainha do desenho Frozen (*resenha aqui*). Como já comentei em outros textos, Damares passou mais de dez anos dando palestras por aí, muito vídeo dessa senhora que ainda vai aparecer na internet (*e já apareceu outro*). É só esperar. Segue o trechinho em que ela fala de Elsa:
O vídeo de Damares não é engraçado, ainda que possamos, sim, rir dela. Em poucos segundos, ela despeja não somente seus (pre) conceitos em relação às lésbicas, como nos brinda mais uma vez com suas fantasias sexuais. Vamos lá, uma mulher forte e sem um homem ao seu lado é lésbica. Imagino que Damares tenha parado de assistir ao filme no meio, porque Elsa não termina a história isolada, Frozen celebra a amizade entre irmãs, a cura, e ela se torna rainha e passa a conviver com as pessoas sem medo de ser diferente. Sim, diferença, ter que aceitar que as pessoas não são fabricadas em série, assusta gente como Damares, porque ela quer que todos sejam IGUAIS A ELA.
A outra fantasia é a de ser a princesa. No vídeo ela diz que sonhou com isso, a ideia seria permanecer pura (*porque isso está implícito*) e ser resgatada por um príncipe encantado que irá lhe dar todos os luxos que ela "merece". Lembram que ela já disse que seu sonho era passar a tarde na rede e ter um homem que a cobrisse de joias? Pois bem, esse tipo de príncipe se remete aos primeiros dois desenhos da Disney, Branca de Neve e Cinderela, as duas moças nobres reduzidas a uma situação de servidão e humilhações. Em ambos os desenhos, o príncipe não tem nome, ele é somente um lugar, ele é a fonte de status e de libertação para a mocinha sofredora. Só que Damares não conseguiu seu príncipe, não foi libertada, e, muito provavelmente, ela associa isso aos abusos que sofreu na infância. Daí, sua obsessão com a sexualidade infantil, a pureza, o controle da moralidade alheia.
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O final de Elsa imaginado por Damares. |
Quando discuti isso no Facebook, uma amiga psicóloga fez um comentário e me deu permissão para postá-lo aqui: "Agora falando como psicóloga vejam como a questão do sonhar de ser princesa, do achar o Príncipe Encantado está mal resolvida. Ela está obcecada com isso até hoje. Eu imagino que no meio que ela foi criada, ser virgem era um requisito básico para ser a princesa dos contos de fada e isso foi tirado dela. E de uma maneira cruel. Agora ela fez da missão dela proteger o sonho de princesa das garotinhas do futuro. Ai no meio dessa missão, até uma campanha sem qualquer indício de se concretizar vira uma ameaça, o trabalho do demônio se manifesta num filme em que sequer temos qualquer informação da sexualidade da rainha do castelo de gelo/areia."
Eu teria pena de Damares, se ela não fosse ministra, se ela não tivesse por anos ganho dinheiro semeando toda sorte de insanidades e ideias intolerantes. Damares deveria se tratar, teve muito tempo e recursos para isso, aliás, e não ser colocada em posição de poder, ou receber um microfone e uma plateia. Resumindo, se já era lamentável ter esse tipo de ideia disseminada nas igrejas, que serviram de estufa para os eleitores do "mito", torna-se pior que como ministra de estado as continue endossando. E os 40 segundos são parte de uma palestra ainda maior com quase 1 hora de duração. Eu assisti pulando partes e só serviu para reforçar o que eu já sabia: Damares é muito articulada, conhece seu público e domina minimamente as discussões de gênero. Outra coisa, ela sabe das campanhas da internet sobre a Elsa.
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Acredito que é esta. |
Uma das imagens que estava na palestra acredito que é esta aí em cima. Trata-se de uma ilustração didática que busca explicar questões complexas, a diferença entre sexo biológico, gênero (*papéis sociais associados ao feminino e ao masculino em uma dada sociedade*), orientação sexual (*sexualidade, desejo*) e identidade de gênero (*como você se vê, se percebe*). Nessa parte, ficou evidente para mim o quanto Damares é esperta. Ela está a par das brigas internas das feministas e das comunidades LGBTs em relação à identidade de gênero, para muita gente nesses círculos, transsexuais são um fator de ansiedade e desestabilização de identidades. Só que ela usa para fazer chacota, porque, bem, dentro do discurso que ela mesma abraça, somos definidos pela nossa genitália, aliás, tudo gira em torno dela.
Tentando voltar ao ponto, e esse é o problema de um tema já requentado, a gente se perde fácil, demonizar a Disney é algo antigo no meio evangélico. Eu cresci em uma Igreja Batista. Na minha infância, a moda eram as palestras sobre mensagens ocultas nos discos do Balão Mágico, as proibições de ouvir música secular. Sim! Quando Xuxa apareceu e foi acusada de pacto com o diabo, a gente já tinha toda uma preparação anterior. Vocês novinhos nem devem saber que o pobre do Fofão foi confundido com Chuck, o Boneco Assassino. Diziam que o tubo que sustentava a cabeça e o corpo do boneco era uma faca escondida. Minha sorte é que meu pai era uma pessoa pragmática e minha mãe, apesar de muito religiosa, não embarcava nessas histerias, pois era uma pessoa educada e muito atarefada. De qualquer forma, a questão nessa primeira fase não era sexual, era satanismo mesmo.
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Damares deve ter assistido até aqui. |
Quando eu estava no final da minha adolescência as discussões mudaram um pouco, se adensaram, por assim dizer, a moda eram as palestras sobre Nova Era, afinal, estávamos chegando no ano 2000 e isso causava ansiedade. As ideias vinham importadas dos EUA e eram uma mistura de denúncia de práticas e símbolos ocultistas (*código de barras era coisa do demônio*) e o perigo de certos desenhos animados (*A transformação do He-Man passava uma mensagem satânica*). Nesse ponto da história, a Disney apareceu nessas narrativas sempre ligada à questões de sexualidade. Havia orgias nos parques da Disney com Minnies e Mickeys gays e lésbicas; o castelo do rei Tritão da Pequena Sereia era um pênis, o sacerdote que celebrou o casamento de Ariel e Eric estava tendo uma ereção e por aí vai. Toquei nessas insanidades no meu texto sobre Aladdin. Quando cavaleiros do Zodíaco bombou e, nessa época, eu já era adulta, os animes entraram no balaio, também.
O que quero dizer é que nada do que Damares traz em seus surtos é novidade para mim, a questão importante a meu ver é que gente com essa mentalidade tenha chegado ao poder e possa transformar suas insanidades em políticas de Estado. Li alguém comentando que Damares nunca fala de nada positivo, todas as suas falas giram da sexualização das crianças. Ela condena os que tentam sexualizar os pequeninos, quando, na verdade, é o que ela faz o tempo inteiro, vide a fala "menino veste azul, menina veste rosa". Suponho que campanhas como "Criança não namora" seriam incomodas para ela, porque, bem, criança deve aprender desde cedo a sonhar com seu príncipe e com sua princesa. Aliás, essa fantasia de monarquia está em alta nos nossos dias, coisas que seriam piada vinte anos atrás, tornaram-se assunto sério e solene.
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Fofão, amado e odiado. |
Mas eis que quando eu comentei sobre a Damares, pontuei, também, que muita gente progressista reforça esses estereótipos de gênero. Voltando lá em cima, mulheres fortes, que não tem um parceiro, são lésbicas, precisam ser. Elsa lidera o bloco, e houve toda uma pressão para que a Disney tornasse oficial o desejo dos fãs, mas temos no mesmo balaio Arya Stark, de Game of Thrones, e a Capitã Marvel. Vejam, eu entendo como a Elsa passa mensagens poderosas e não somente para as mulheres lésbicas, perdi a conta de quantas drags espetaculares eu vi cantando "Let it go".
A performance de Elsa no desenho é magnífica e libertadora, porque a repressão que ela sofria era angustiante. Essa pressão para esconder seu verdadeiro "eu" deixou sequelas profundas na relação consigo mesma e com sua irmã. O desenho fala de cura, não fala de sexualidade, mas é possível ler dessa forma, é claro! Afinal, é mais que sabido que a gente projeta nas personagens certas representações, desejos, frustrações... Vide a Damares em seu vídeo. Se a cor de pele não é descrita, a personagem obviamente é branca. Se a sexualidade não é caracterizada, claro que ela é hetero. Essas convenções são prisões também e eu acho justo que a gente projete nossos desejos e expectativas em personagens ficcionais, desde que tenhamos em mente que não é cânon.
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O pessoal realmente quer forçar o pobre do Holmes dentro de uma forminha. Na verdade, ele cabe na que você quiser. |
Por exemplo, eu adoro Sherlock Holmes. Arthur Conan Doyle nada diz sobre sua orientação sexual, ao contrário de seu amigo Watson, que conta vantagem de que "conheceu" mulheres de todos os continentes em um determinado conto. Há todo um clima de bromance entre os dois. Alguns dos primeiros fanfics conhecidos, coisa do século XIX até, exploraram isso. Só que Holmes tem uma fascinação por Irene Adler, que o derrotou e ele chama de "a mulher". Eu, quando adolescente, imaginei que Holmes tinha uma paixão platônica por Irene Adler e encontrei material não-canônico que me deu o que eu queria. Não me incomodo nem com o Holmes gay, nem com o apaixonado por Irene, desde que a história seja boa. Agora, houve uma vez que alguém veio fazer escândalo comigo, porque estavam estragando a primeira personagem assexual da literatura. Sim, você pode imaginar seu Holmes como assexual, mas não pode querer me impôr isso como se cânon fosse.
Para a grande indústria cultural é mais seguro estimular a imaginação dos fãs, do que assumir uma posição clara em relação às questões de sexualidade de seus protagonistas. Por isso mesmo, e essa discussão que motivou Damares é mais antiga que o vídeo dela, a pressão dos fãs para que o segundo filme dê uma namorada para a Elsa não deve ser atendida. E se fosse, Valéria, você ficaria chateada? Ficaria surpresa, mas, repito, por essa lógica qualquer mulher forte e que não tem parceiro acabará, sim, entrando no radar dos conservadores. De qualquer forma, a perseguição à Disney vem de longe e em produtos de menor visibilidade, como Gravity Falls, a empresa tem ousado mais.
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O casal de Gravity Falls. |
Júlia assistiu Gravity Falls com o pai e ele se espantou por ter um casal gay visível na animação. Ele percebeu, achou interessante, mas a coisa era tão leve, que a filhinha nem notou. Ela precisa de coisas mais diretas, como um canal do Youtube que conta histórias "reais" em formato de desenho animado. Lá, ela viu claramente e veio me perguntar, se a mãe do menino que contava o causo tinha uma namorada. Ela veio fazendo piada, eu falei de forma séria e calma que, sim, era, e que essas relações afetivas eram possíveis. E ficamos nisso. Voltando para a Disney, trata-se de uma empresa que objetiva o lucro e quer o máximo de público possível. Rolou um zum-zum-zum de que seria revelado que um dos heróis importantes da Marvel seria gay. Aposto o seguinte, se tal ocorrer, se não for um filme de um novo herói (*ou heroína*) nos cinemas, o que eu torço, não deve ser nenhum de seus personagens realmente importantes. E mais, se for uma mulher, possivelmente será bissexual para tentar manter o apelo junto ao público masculino.
Mas eis que ao levantar algumas dessas questões em um pequeno post de Twitter veio uma moça me acusar de estar tentando apagar as personagens lésbicas. Resumindo, me lascou o rótulo de homofóbica e disse que eu tinha que discutir a Anna e o Kristoff e, não, a Elsa. Eu, que tenho todas as personagens femininas hetero para admirar (*Putz! Difícil, mas vai...*), estava querendo roubar dela a heroína lésbica querida. Eu tentei conversar, a menina, que eu nem conhecia, era bem novinha, deve ter visto Frozen ainda no início da adolescência, me destratou no Twitter. Dei mute, não bloqueei, porque eu sei que ela me lê, ainda que tenha dito que nada do que eu escrevo lhe interessa, afinal, veio arrumar confusão por causa da Elsa.
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O mais importante de Frozen é a relação entre as irmãs. Mas você pode gostar da animação por outros motivos, também. |
O que eu digo é o seguinte, quero diversidade, mas que ela não venha revestida de reforço de representações tradicionais de gênero. Mulheres hetero podem ser fortes, independentes, furiosas, preferirem o não-casamento (*se bem que isso nem está no horizonte de Elsa*), desejar não ter filhos e por aí vai. Da mesma maneira temos lésbicas que incorporam todo o estereótipo da feminilidade e desejam outras mulheres e não estão nem aí para o olhar masculino sobre elas. Isso é respeitar a pluralidade do humano. Pode continuar vendo a sua Elsa como lésbica, mas não venha querer me impor, ou a qualquer pessoa, isso como verdade. Já basta a extrema-direita cristã fundamentalista surtada.
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Eu gosto dos dois juntos. Podem me julgar. |
E, terminando, já que me exigiram que falasse de Anna e Kristoff, conheço gente que considera desnecessária a presença do moço e que bastava as duas irmãs (*e há quem seja shipper das duas juntas*). Olha, depois de ver dezenas de vezes Frozen (*graças à filhinha*) aprendi a gostar do casal Anna e Kristoff, porque ele foi usado para desmontar a ideia do amor à primeira vista. Uma das melhores cenas de qualquer desenho da Disney é quando Elsa diz para a irmã que ninguém casa com o primeiro sujeito que vê sem conhecê-lo. Anna compreendeu a mensagem. Veja que muitas mulheres carentes de afeto, de atenção, mulheres que tiveram uma infância e adolescência difícil, aceitam qualquer embuste que lhes apareça na frente por estarem vulneráveis. Anna era solitária e precisava de atenção, por isso, quase embarcou em uma canoa furada. Elsa a salvou, assim como Kristoff.
Essa ideia do amor à primeira vista é muito, muito daninha para as meninas e é reforçada pela ficção o tempo inteiro. Novelas, livros, mangás, animação, produtos que vendem para as garotas, em especial, as princesas de Damares, que seu príncipe está logo ali, talvez, enviado pelo próprio Deus. Um dia, ele vai aparecer para você e será para sempre. Você pode construir uma ótima história em cima disso, eu posso consumi-la e elogiá-la, mas não é possível negar que ela está reforçando um dos clichês mais daninhos em relação ao amor e ajudando a manter no imaginário social essa ideia que já prejudicou a vida de tanta gente. Enfim, viva Anna e Kristoff. Eu gosto deles, também.
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E a pobre Aurora ainda foi colocada nessa história esquisita. |
P.S.: Como muita gente boa comentou o caso, recomendo os vídeos de alguns canais: Parou Tudo, Henry Bugalho, Galãs Feios. E recomendo o Greg News que saiu na véspera do vídeo da Damares bombar e que era sobre "ideologia de gênero". Ficou espetacular.
2 pessoas comentaram:
Eu confesso que achei engraçado que ela tenha escolhido logo Aurora, que de todas as princesas da Disney é a mais distante da figura de Elsa, ela foi criada por seres mágicos na floresta com uma vida longe da humanidade (sendo criada por diversas mulheres com bastante amor) e uma vida feliz até os acontecimentos da maldição. Sei que as personagens clássicas fogem muito do que é visto desde a pequena sereia, mas é peculiar a escolha da Aurora.
Preciso dizer o quanto é delicioso ler sobre como não estar num padrão esperado de gênero não define sexualidade. Entendo totalmente a ânsia por representatividade dos grupos LGBT+ e acredito verdadeiramente na legitimidade dessa revindicação, mas a mulher hétero em mim que sempre agiu "como um menino", e que já foi ridicularizada e preterida por isso, não consegue não se incomodar com a visão de "é claro que é lésbica" sobre esse perfil de personagem, não por qualquer demérito existente em ser lésbica, mas pelo pressuposto estereotipado que algumas vezes não é nada além de imposição de normas de gênero.
Sobre a escolha da Aurora, não sei se é relevante a essa altura, já que o texto tem alguns dias, mas Damares é realmente muito bem informada sobre o que está falando, não foi escolha ao acaso. A imagem usada no vídeo é de uma novela do Neil Gaiman, A bela e a adormecida eu acredito, uma releitura romanceada de Branca de neve onde ela salva a Bela adormecida com um beijo de amor. O próprio escritor chegou a soltar no twitter um decepcionado "Oh, Brazil" quando soube do caso. Damares não tem nada de boba, ela usa uma base distorcida, mas real pra criar seu discurso, ela faz pesquisa sobre os temas e deve ter um banco de dados vasto pra distorcer e usar de munição.
(Se o comentário foi duplicado peço a gentileza que o apague)
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