quarta-feira, 10 de abril de 2019

Comentando O Tradutor (Cuba/Canadá/2018): uma história para aquecer e dilacerar o coração


Hoje, assisti O Tradutor (Un Traductor), filme estrelado por Rodrigo Santoro baseado em uma história real e que conta o drama de um professor cubano de literatura russa transformado em intérprete das crianças e parentes vítimas do terrível acidente de Chernobyl.  Trata-se de um drama pesado, transformado em um filme que é de uma tristeza profunda e, ao mesmo tempo, de uma imensa beleza.  Não acredito que seja um filme para todas as pessoas, não é, especialmente, para quem é sensível ao sofrimento das crianças.  

1989, Havana está em festa com a visita de Mikhail Gorbachev à ilha.  Com as sanções norte-americanas à Cuba, a ajuda soviética era vital e tudo parecia bem, apesar da URSS estar com seus dias contados.  Malin (Rodrigo Santoro) é professor universitário e trabalha em sua tese de doutoramento.  Feliz, ele vive confortavelmente com sua esposa, Ivona (Yoandra Suárez) e seu filho pequeno.  Um dia, ao chegar na universidade, o curso de língua e literatura russa foi fechado temporariamente.  Todos os professores do departamento receberam convocações com um endereço que, mais tarde, descobrem ser um hospital.  


Ele só queria terminar a tese de doutorado... Aliás,
será que terminou?  Será que foi a mesma tese?
Ao se apresentarem, os professores são comunicados de que iriam servir de intérpretes para os soviéticos vindos de Chernobyl, Malin é mandado para a ala infantil.  Mesmo tendo um filho pequeno, ele não tem muito traquejo com crianças, mas, exatamente por ser pai, ele não está preparado para ver meninos e meninas morrerem todos os dias.  Ajudado pela enfermeira argentina Gladys (Maricel Álvarez), ele termina indo além da sua missão, mas o custo é grande, seu casamento fica por um fio, assim como sua saúde mental e física.  Como pano de fundo para esse drama, temos a queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS, com efeitos dramáticos sobre o cotidiano dos cubanos.

O desastre de Chernobil  foi um acidente nuclear catastrófico ocorrido em 26 de abril de 1986. Uma explosão e um incêndio lançaram grandes quantidades de partículas radioativas na atmosfera, que se espalhou por boa parte da União Soviética e da Europa Ocidental. Junto com Fukushima, no Japão, são os únicos acidentes que atingiram escala 7 de magnitude na Escala Internacional de Acidentes Nucleares.  Desde então, Rússia, Ucrânia e Bielorrússia se esforçam por descontaminar a área mais atingida e lidar com as vítimas.  Até hoje, nascem crianças com deformidades e pessoas desenvolvem tumores em virtude da radiação.


Uma gravidez não planejada e uma mulher
que tem que segurar a barra sozinha.
Parte das vítimas, mais de 25 mil até os nossos dias, foram enviadas para a Cuba, onde receberiam tratamento médico, então um dos mais avançados do mundo, e, se fosse o caso, poderem passar seus últimos dias em um lugar ensolarado e bonito.  Sim, é isso mesmo.  Basta olhar o centro médico de Tarara, que é construído ao longo do filme.  Ele lembra muito um resort, um hotel.  Na película é dito que o acolhimento de doentes e tratamento prosseguiu até 2011, mas encontrei várias matérias de 2017 mostrando que crianças e outros contaminados continuavam sendo atendidos em Cuba, ou seja, o projeto não parou.

Em O Tradutor temos três dramas acontecendo ao mesmo tempo, o das crianças e suas famílias em sofrimento; o do próprio protagonista em crise entre o macro, seu papel como intérprete em uma situação tão delicada, e o micro, sua família se destruindo porque ele se dedica mais ao trabalho do que à esposa e ao filho; e o terceiro, o colapso do mundo soviético e suas implicações para a Ilha.  


Sem gasolina, Malin apela para a bicicleta.
Começando pelo final, o filme é dividido em duas metades, a primeira, mostra a família de Malin vivendo uma vida de abundância, sua casa é ampla, eles têm um automóvel, as prateleiras dos mercados estão cheias de produtos soviéticos e de  outros países comunistas, inclusive.  É possível usar vales ou pesos para comprar no mercado, nos postos de gasolina. Quando a sogra tece uma crítica à URSS, Malin adverte que só mesmo por bondade a potência trocava petróleo por açúcar.  O fim do regime soviético seria péssimo para Cuba.

O marco de virada é a derrubada do Muro de Berlim, que a TV cubana pinta como uma traição às lutas do proletariado. O colapso da URSS, acelerado por Chernobyl e pelo fiasco no Afeganistão, fazem Cuba mergulhar em um período bem duro de racionamento; mesmo com dinheiro, não há o que comprar.  Lembram da greve dos caminhoneiros?  Imagine isso como regra.  Malin tem que trocar o automóvel pela bicicleta e mesmo uma família de classe média como a dele passa fome, ou sofre com carência de certos nutrientes.  Foi o momento mais dramático para Cuba, mas foi superado em grande medida, muita coisa mudou no país, ainda que duas tenham permanecido, o embargo norte-americano e a ditadura.


Não está satisfeito? Reclame com Fidel.
O filme mostra bem esse aspecto da vida dos cubanos.  O reitor da universidade não tem autonomia "nem para trocar uma lâmpada", dizem os professores.  Servir de intérprete não é um convite, é uma ordem.  Não está satisfeito?  Reclame com Fidel.   O próprio título  do filme no original não individualiza Malin. Ele é "um tradutor", um entre vários, não "o tradutor", alguém com individualidade, como ficou na nossa versão.  Malin pode ter feito a diferença na vida das crianças, na do hospital, na sua própria,  mas para o regime, ele é mais um, uma peça que pode ser substituída, algo que vemos bem no final do filme.

Ainda que não tenhamos uma ditadura sufocante e sanguinária em Cuba controlando todos os passos e palavras, ela está lá, cerceando informações, impondo sua vontade e cabe ao cidadão cumprir as ordens, fazendo as pessoas abaixarem o tom de voz ao tocarem em certos assuntos.  Igualzinho eu via quando criança vivendo no Brasil da Ditadura (1964-85).  Era meio automático, as pessoas faziam sem pensar, estava naturalizado.  Gladys, a enfermeira, comenta sobre Videla, na Argentina, e que era muito melhor estar em Cuba. É possível hierarquizar as ditaduras, sem negar que na essência sejam regimes autoritários.  Você até pode gostar desse tipo de governo e ter seus preferidos, só não deveria querer tapar o sol com a peneira.


E as criancinhas vão morrendo... 
 De qualquer forma, Malin e a esposa parecem estar em pólos contrários nesse caso, ele coloca o coletivo sobre suas necessidades pessoais, ela pensa no filho, no marido, na criança dentro de seu ventre, em si mesma.  Há um conflito sério entre o marido, que termina colocando a vida das crianças soviéticas antes da sua própria família, já a esposa grávida é deixada sozinha tomando conta de seu filho.  Ele quer cuidar do mundo, ela quer cuidar dos seus.  Malin é altruísta e egoísta ao mesmo tempo e, sim, ele é um machista, também, e esse traço se mostra no relacionamento com a esposa.  Seu trabalho, seja na universidade ou como intérprete, é mais importante que o dela.  Ivona é artista plástica e gerencia uma galeria.  Arte, ou a arte que a esposa faz, não tem valor para ele.  

Como a personagem de Santoro está sob forte pressão e é a protagonista do filme, esse traço ruim da sua personalidade tende a ser relevado, mas ele está lá para quem quiser ver.  Fora isso, trabalho de homem é mais importante que trabalho de mulher.  E é esse trabalho por ordem estatal que mobiliza o filme.  A relação mais sólida da película é a estabelecida entre Malin e a enfermeira Gladys, a melhor personagem feminina do filme, e entre Malin e o menino Alexi (Nikita Semenov), que está no isolamento da UTI.



Não sei se a mãe que estava sempre tricotando no canto,
é a mesma que depois se desmonta quando a
filha entra em estado terminal.
Malin é negligente com o filho e se doa por completo para as crianças do hospital, para aqueles meninos e meninas que estão ali para um difícil tratamento e tem a morte como horizonte próximo.  Conforme as criancinhas vão morrendo, ou passando por uma via crúcis de sofrimento, Malin sofre junto, se vicia em remédios para dormir, porque não consegue suportar aquele ambiente pesado.  No processo, ele se afasta mais e mais da família.  Não vou dar mais detalhes aqui, porque é um spoiler.  Se puder, assista O Tradutor.

O que eu posso dizer da interpretação de Rodrigo Santoro?  Bem, ele se esforça bastante.  Em uma entrevista, ele disse o seguinte"Aprender russo foi um processo longo e árduo. Tive quatro semanas intensivas com uma professora particular. Trabalhei em cima do roteiro absorvendo, memorizando e internalizando as cenas em russo. Eu tive que aprender as minhas falas e as falas de quem estava trabalhando comigo para saber exatamente quando falar e que entonação dar. Foi um trabalho dobrado".  


Um casamento que se desgasta... 
Eu não posso avaliar o russo de ninguém, nem o espanhol, mas o ator se entrega à personagem, mas há uma vantagem.  Malin é econômico nas palavras, quando a esposa o confronta ela diz algo como "não é possível discutir com quem não quer ou consegue falar".  Santoro tem muitas falas, ele é o protagonista, ele está em quase 100% das cenas, mas são falas curtas, na maioria das vezes contidas.  Enfim, gostei da atuação dele, lembro bem quando esse moço começou nas novelas da Globo e não esperava que ele fosse tão longe.  De qualquer forma, as interpretações que mais me agradaram no filme foram as de Maricel Álvarez.  

O menino Nikita Semenov estava muito bem, a menininha de óculos do cartaz (*não tenho o nome dela*) e sua mãe (Milda Gecaite) que se torna alcóolatra, porque não sabe como lidar com a filha em sofrimento, também. Não consegui juntar muita informação sobre o elenco do filme, nem encontrei um verbete consistente sobre o filme na Wikipedia, mesmo em espanhol.  O filme foi dirigido pelos filhos do Malin original, Rodrigo e Sebastián Barriuso.  Este último afirmou que não é a história do pai, mas "(...) uma história coletiva. Homenageamos todos os trabalhadores daquela época que se esforçaram para atender as vítimas".  O fato é que funcionou comigo e muito.

A menininha mais fofa do filme.
Concluindo, o filme não cumpre a Bechdel Rule, ainda que tenha personagens femininas em destaque e várias mulheres (*e meninas*) com nomes.  Gladys (*uma atriz belíssima, sem aparentemente ser*) e Ivona se destacam, só que entre as muitas relações que se estabelecem, são mais fortes os elos entre Malin e Alexi, ou entre o tradutor e o pai do menino, o único responsável do sexo masculino a viajar para Cuba com sua criança e que era, também, professor.  De resto, foi um daqueles filmes que me fez chorar bem depois dele ter terminado.  Quando fui buscar Júlia na escola acabei chorando um monte.  


As flores talvez fossem para a menina... 
Uma das últimas cenas, a da dispensa de Malin, que, agora, poderia voltar para a sua vida normal, com uma das meninas que, desde o início do filme, estava careca e em cadeira de rodas, foi de cortar o coração.  Ela pergunta se ele viria visitá-la.  Ele comenta "se me permitirem" e Gladys por cima da cabeça da menina faz que não.  As notas do final do filme dizem que ele nunca mais reencontrou Gladys, subentende-se que as crianças, também.  Fosse um filme norte-americano, talvez enfiassem um romance entre os dois.  Enfim, Malin então mente para a menina e diz que virá em 30 de maio.  A garota fica feliz, sorri. Provavelmente, em 30 de maio, ela estaria morta.  Ele não mentiu.  Talvez as flores que ele jogou no mar sejam em sua homenagem... 



P.S.: Amanhã termino a resenha de Shazam! que comecei faz uma semana.  Agora, ainda tenho outras na fila, como Roma, que vi no dia do Oscar e nada de escrever.

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