Hoje, assisti O Tradutor (Un Traductor), filme estrelado por Rodrigo Santoro baseado em uma história real e que conta o drama de um professor cubano de literatura russa transformado em intérprete das crianças e parentes vítimas do terrível acidente de Chernobyl. Trata-se de um drama pesado, transformado em um filme que é de uma tristeza profunda e, ao mesmo tempo, de uma imensa beleza. Não acredito que seja um filme para todas as pessoas, não é, especialmente, para quem é sensível ao sofrimento das crianças.
1989, Havana está em festa com a visita de Mikhail Gorbachev à ilha. Com as sanções norte-americanas à Cuba, a ajuda soviética era vital e tudo parecia bem, apesar da URSS estar com seus dias contados. Malin (Rodrigo Santoro) é professor universitário e trabalha em sua tese de doutoramento. Feliz, ele vive confortavelmente com sua esposa, Ivona (Yoandra Suárez) e seu filho pequeno. Um dia, ao chegar na universidade, o curso de língua e literatura russa foi fechado temporariamente. Todos os professores do departamento receberam convocações com um endereço que, mais tarde, descobrem ser um hospital.
Ele só queria terminar a tese de doutorado... Aliás, será que terminou? Será que foi a mesma tese? |
O desastre de Chernobil foi um acidente nuclear catastrófico ocorrido em 26 de abril de 1986. Uma explosão e um incêndio lançaram grandes quantidades de partículas radioativas na atmosfera, que se espalhou por boa parte da União Soviética e da Europa Ocidental. Junto com Fukushima, no Japão, são os únicos acidentes que atingiram escala 7 de magnitude na Escala Internacional de Acidentes Nucleares. Desde então, Rússia, Ucrânia e Bielorrússia se esforçam por descontaminar a área mais atingida e lidar com as vítimas. Até hoje, nascem crianças com deformidades e pessoas desenvolvem tumores em virtude da radiação.
Uma gravidez não planejada e uma mulher que tem que segurar a barra sozinha. |
Em O Tradutor temos três dramas acontecendo ao mesmo tempo, o das crianças e suas famílias em sofrimento; o do próprio protagonista em crise entre o macro, seu papel como intérprete em uma situação tão delicada, e o micro, sua família se destruindo porque ele se dedica mais ao trabalho do que à esposa e ao filho; e o terceiro, o colapso do mundo soviético e suas implicações para a Ilha.
Começando pelo final, o filme é dividido em duas metades, a primeira, mostra a família de Malin vivendo uma vida de abundância, sua casa é ampla, eles têm um automóvel, as prateleiras dos mercados estão cheias de produtos soviéticos e de outros países comunistas, inclusive. É possível usar vales ou pesos para comprar no mercado, nos postos de gasolina. Quando a sogra tece uma crítica à URSS, Malin adverte que só mesmo por bondade a potência trocava petróleo por açúcar. O fim do regime soviético seria péssimo para Cuba.
Sem gasolina, Malin apela para a bicicleta. |
O marco de virada é a derrubada do Muro de Berlim, que a TV cubana pinta como uma traição às lutas do proletariado. O colapso da URSS, acelerado por Chernobyl e pelo fiasco no Afeganistão, fazem Cuba mergulhar em um período bem duro de racionamento; mesmo com dinheiro, não há o que comprar. Lembram da greve dos caminhoneiros? Imagine isso como regra. Malin tem que trocar o automóvel pela bicicleta e mesmo uma família de classe média como a dele passa fome, ou sofre com carência de certos nutrientes. Foi o momento mais dramático para Cuba, mas foi superado em grande medida, muita coisa mudou no país, ainda que duas tenham permanecido, o embargo norte-americano e a ditadura.
Não está satisfeito? Reclame com Fidel. |
Ainda que não tenhamos uma ditadura sufocante e sanguinária em Cuba controlando todos os passos e palavras, ela está lá, cerceando informações, impondo sua vontade e cabe ao cidadão cumprir as ordens, fazendo as pessoas abaixarem o tom de voz ao tocarem em certos assuntos. Igualzinho eu via quando criança vivendo no Brasil da Ditadura (1964-85). Era meio automático, as pessoas faziam sem pensar, estava naturalizado. Gladys, a enfermeira, comenta sobre Videla, na Argentina, e que era muito melhor estar em Cuba. É possível hierarquizar as ditaduras, sem negar que na essência sejam regimes autoritários. Você até pode gostar desse tipo de governo e ter seus preferidos, só não deveria querer tapar o sol com a peneira.
E as criancinhas vão morrendo... |
Como a personagem de Santoro está sob forte pressão e é a protagonista do filme, esse traço ruim da sua personalidade tende a ser relevado, mas ele está lá para quem quiser ver. Fora isso, trabalho de homem é mais importante que trabalho de mulher. E é esse trabalho por ordem estatal que mobiliza o filme. A relação mais sólida da película é a estabelecida entre Malin e a enfermeira Gladys, a melhor personagem feminina do filme, e entre Malin e o menino Alexi (Nikita Semenov), que está no isolamento da UTI.
Não sei se a mãe que estava sempre tricotando no canto, é a mesma que depois se desmonta quando a filha entra em estado terminal. |
O que eu posso dizer da interpretação de Rodrigo Santoro? Bem, ele se esforça bastante. Em uma entrevista, ele disse o seguinte: "Aprender russo foi um processo longo e árduo. Tive quatro semanas intensivas com uma professora particular. Trabalhei em cima do roteiro absorvendo, memorizando e internalizando as cenas em russo. Eu tive que aprender as minhas falas e as falas de quem estava trabalhando comigo para saber exatamente quando falar e que entonação dar. Foi um trabalho dobrado".
Um casamento que se desgasta... |
O menino Nikita Semenov estava muito bem, a menininha de óculos do cartaz (*não tenho o nome dela*) e sua mãe (Milda Gecaite) que se torna alcóolatra, porque não sabe como lidar com a filha em sofrimento, também. Não consegui juntar muita informação sobre o elenco do filme, nem encontrei um verbete consistente sobre o filme na Wikipedia, mesmo em espanhol. O filme foi dirigido pelos filhos do Malin original, Rodrigo e Sebastián Barriuso. Este último afirmou que não é a história do pai, mas "(...) uma história coletiva. Homenageamos todos os trabalhadores daquela época que se esforçaram para atender as vítimas". O fato é que funcionou comigo e muito.
A menininha mais fofa do filme. |
As flores talvez fossem para a menina... |
P.S.: Amanhã termino a resenha de Shazam! que comecei faz uma semana. Agora, ainda tenho outras na fila, como Roma, que vi no dia do Oscar e nada de escrever.
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