Acredito que nunca fui tantas vezes ao cinema em um mês quanto nessas férias. Cinco vezes até o momento. Espero conseguir ir mais uma vez ainda. No entanto, o primeiro filme adulto que pude assistir (*Minha Vida em Marte não é adulto nesse sentido que quero dar*) foi A Esposa, que deve dar o Oscar de Melhor Atriz para Glen Close com justiça. É um filme ácido, é doído, carregado de nuances, e que expõe as entranhas da desigualdade entre homens e mulheres. É um filme feminista? Não sei, mas permite que uma feminista como eu faça mil análises e comentários. Estabelecido isso, para não estragar o prazer dos que detestam spoilers, farei a resenha em duas partes. Se você continuar a ler depois do trailer, saiba que terá todos os spoilers possíveis.
1992, Joseph Castleman (Jonathan Pryce), um renomado escritor, recebe o Nobel de Literatura. Para muitos críticos, ele reinventou a prosa em língua inglesa e é o escritor vivo mais importante do século XX. Quem não fica feliz com o prêmio é Joan (Glenn Close), sua solicita esposa, uma mulher que vive para o marido e para a família. Joseph sempre agradece sua dedicação, mas se perguntado, faz questão de afirmar que "sua esposa não escreve". A caminho de Estocolmo, o casal é abordado no avião pelo escritor Nathaniel Bone (Christian Slater), ele deseja redigir a biografia de Castleman e é rechaçado por ele. Junto com Joseph e a esposa viaja Max (Max Irons), filho mais velho do casal, que se recente do pai, porque não recebeu dele qualquer palavra de incentivo em relação às suas tentativas de se tornar um escritor. A avaliação positiva da mãe, não é suficiente, afinal, o gênio é Castleman.
Comemorando o Nobel. |
A Esposa, é baseado no livro homônimo de Meg Wolitzer, lançado em 2003. Imagino que, agora, receba uma edição em nossa língua. Sua produção começou em 2014 e, ao que parece, Close foi a primeira escolha para o papel principal, mas Gary Oldman foi o primeiro nome imaginado para interpretar Joseph Castleman. Achei curioso, porque gosto muito de Oldman e, também, de Jonathan Pryce desde que o vi em Carrington (*filme que preciso rever*). Acho lamentável vê-lo em papéis menores, ou fazendo vilão pé de chinelo em certos filmes. Apesar de Glenn Close brilhar em A Esposa, acredito que Pryce deu as cores certas ao pseudo-escritor narcisista e chantagista. Ele está realmente muito bem.
Fascinada pelo professor. |
Alguns olham para essa época "dourada", em que propagandas machistas eram a regra, em que mulheres eram estimuladas e deixar as vagas das faculdades de direito, medicina e outras para os homens, porque elas iriam casar e ficar em casa depois do casamento mesmo, em que se devia ver o assédio como uma forma de gentileza e atenção por parte dos homens, como romântica. Não era, nunca foi, e atrapalhou muitas carreiras de mulheres e impulsionou outras tantas de homens.
Gênio trabalhando. |
Como fã de Jane Austen, das Irmãs Brontë, de Rachel de Queiroz, até mulheres anteriores a elas, eu sei que não é para tanto, ainda que cada uma delas tenha enfrentado obstáculos consideráveis, mas a personagem de McGovern representa a maioria talvez. Ela tem dinheiro para bancar a publicação de seu livro. Uma tiragem pequena. Quem o comprou? Seus amigos e parentes, principalmente. "Isso é papo de incompetente!". Sim, claro, veja que a autora de Harry Potter abreviou seu nome por recomendação da editora, por isso, o J. K., para que seu livro se tornasse mais palatável. Um nome de mulher na capa torna o livro "literatura de mulherzinha", coisa menor, às vezes, até indigna, aos olhos de alguns.
Escritora amargurada: nada como uma mulher para matar os sonhos de outra. |
"Ah, esse livro é muito bom, mas a autora é uma mulher." "Essa autora realmente tem uma escrita fascinante, mas é feminina demais.""Ninguém quer ler mulheres." Difícil entender do que os caras estavam falando. Será que se o material fosse assinado por um homem a avaliação seria outra? Tenha certeza que seria. É uma questão de gênero, criam-se e naturalizam-se uma série de estereótipos sobre escrita masculina e escrita feminina. A primeira, claro, é melhor que a segunda. Sobre o tema, recomendo, também, um livro maravilhoso "How to Supress Women's Writing" (Como Suprimir a Escrita das Mulheres, e tudo que lá está escrito para as mulheres poderia, sem grandes adaptações, ser aplicado à outras minorias.
Nathaniel sabe, mesmo que Joan não confirme. |
Nesse ponto temos uma cena que é cronologicamente anterior a uma que ocorre no início do filme, mas totalmente ligada a ela "Nós publicamos o nosso livro.", comemoram os dois jovens pulando na cama. No início do filme temos Castleman arrastando a mulher para cima da cama, ela não deseja, mas é obrigada a pular, como lá em 1960, mas a frase é diferente "Eu ganhei o Prêmio Nobel.". EU, quando foi ELA, quem escreveu praticamente tudo.
Uma honra imerecida. |
Quando Joan descobria as traições, ele virava a mesa em cima dela, jurava amor eterno, afirmava que ele se sentia diminuído por ela, afinal, qual homem gostaria de estar em sua condição? É uma relação abusiva. Houve resenhas falando em Síndrome de Estocolmo e, talvez, possa ser vista por esse prisma, no entanto, Joan era recompensada de alguma forma. Tendo introjetado a ideia de que ela, por ser mulher, nunca iria conseguir publicar, sentia-se feliz por ver sua obra fazendo sucesso, isso foi o suficiente por décadas. Só que, como teorizaram as feministas marxistas nos anos 1970, uma esposa, assim como um escravo, não pertence a mesma classe social de seu senhor. Ela recebia migalhas e o Nobel vem como um choque.
O velho vaidoso tenta seduzir a fotógrafa. |
Em seguida, o sujeito apresenta seus quatro, ou cinco filhos (*como uma mulher se dedica à ciência tendo tantos filhos é complicado, mas vá lá...*), a mais jovem, única menina, ainda estudante, mas o pai orgulhoso projeta grandes descobertas na área da medicina para ela. Os rapazes, todos físicos, um deles tentando provar que a Teoria das Cordas estava errada. Max, o filho dos Castleman se ressente. O pai não consegue ver nada de realmente bom nele, só em si mesmo, ou na esposa, quando está na eminência de perdê-la.
Castleman despreza Nathaniel. |
Enfim, é um filme claustrofóbico, com a câmera muito focada no rosto dos atores e atrizes, Glenn Close e Annie Starke interpretam com os olhos, que expressam todas as emoções que tinham que esconder. O filme também toca em temas sensíveis, como a exclusão das mulheres em várias áreas, os inúmeros obstáculos que temos que enfrentar para chegarmos lá, pois os homens saem em vantagem simplesmente por serem homens e faz com que reflitamos sobre quantas mulheres devem ter feito o trabalho, ou parte dele, para pais, irmãos, maridos. Na própria literatura, o machista do José de Alencar não colocou Aurélia, protagonista de Senhora, fazendo o trabalho de contabilidade para o irmão ruim de contas simplesmente para que ele não perdesse o emprego e a família passasse fome? Ela não receberia o emprego mesmo qualificada, ele, sim.
Apesar de ser um filme já visto, vide Big Eyes, ou Colette, que é muito inferior, A Esposa merece todos os elogios que está recebendo. A atuação de Close e Pryce puxa o filme, claro, mas o desempenho da jovem Joan, Annie Starke, carregada de nuances, timidez real e pretensa modéstia para não ofender o orgulho masculino, está impecável. E ela é filha de Glenn Close, aliás. Há ainda o resgate de Christian Slater, um astro promissor na segunda metade dos anos 1980 e início dos 1990, mas que desceu ladeira abaixo. Ele está bem no filme.
O perfeito subtítulo italiano "Viver na Sombra". Aliás, Close ganhou o prêmio "The Invisible Woman Award" (*Prêmio da Mulher Invisível*), nem sabia que isso existia. |
Fiquei pensando se o filme cumpria a Bechdel Rule e, sim, ele cumpre por causa da cena entre a personagem de Elizabeth McGovern e a jovem Joan. De resto, trata-se de um filme encabeçado por uma mulher, tudo de certa forma depende de Joan para funcionar. O que, claro, não significa que a mensagem seja empoderadora. Eu me senti foi muito mais angustiada, quantas mulheres ainda estão vivendo nas sombras, fazendo o trabalho do marido/pai/irmão/filho e se calando, mas, ainda assim, satisfeita com o espetáculo. A sala, aliás, estava cheia, a maioria da audiência era de mulheres idosas e houve mais vibração do que eu imaginava, além de palmas no final. Algo raro, para mim, mas minha amiga disse que é coisa comum naquele cinema. Vai saber...
Se você assistiu ao filme, ou, pelo menos, leu o verbete da Wikipedia em inglês, sabe que Castleman e a esposa discutem, ela pede o divórcio e ele termina enfartando. O sujeito já estava doente antes, já havia passado mal pelo menos duas vezes durante o filme, mas o fato de morrer depois da discussão faz com que Joan se sinta culpada. Ou será que não?
O final é dúbio. Joan ameaça Nathaniel. Ele que ousasse infamar a memória do seu marido, expondo-a como sua ghostwriter. Ela o levaria aos tribunais. Isso quer dizer que ela ficaria em silêncio e seria guardiã eterna da "obra do marido". Daí, ela vira a página do caderninho que tem nas mãos e alisa a página em branco. Em branco... Ela vai escrever por ela mesma? Duvido. Minha amiga e eu ficamos nos questionando que, na verdade, ela iria escrever, sim, mas publicar como se fosse um livro, ou mais de um, póstumo do marido.
O filho indignado acusa o pai. "Você não lembra nem do nome dos seus personagens!" |
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