Terça-feira fui assistir Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman), filme do diretor Spike Lee que conta a incrível história de um policial negro que, nos anos 1970, conseguiu se tornar membro da Ku Klux Klan, a mais famosa de todas as organizações racistas dos Estados Unidos. O filme consegue fazer um panorama de como os discursos e práticas racistas e antissemitas conseguem se adaptar aos novos tempos, sobreviver, e como as resistências também devem criar estratégias para minar-lhes os espaços. É um filme forte, cinema de resistência, por assim dizer, em um momento no qual os bons parecem estar perdendo o jogo. Infiltrado na Klan se encerra com imagens reais e dramáticas das manifestações de 2017 em Charlottesville, Virginia. O filme de Spike Lee merece ser lembrado nas principais premiações e, acredito, Topher Grace tem grandes chances de levar prêmios de ator coadjuvante por sua interpretação do infame David Duke.
Resumir o filme não é difícil, não a trama central da película. Década de 1970, Ron Stallworth (John David Washington) é o primeiro policial negro de Colorado Springs. Depois de conseguir ser transferido da seção de arquivos para o trabalho nas ruas, ele consegue travar contrato por telefone com membros da célula local da Klan e é aceito. Sendo negro, ele precisa de um substituto para participar das reuniões da organização racista e acaba sendo ajudado por um colega, o policial judeu Flip Zimmerman (Adam Driver). A farsa vai tão longe que Stallworth consegue, inclusive, enganar o líder da KKK, David Duke (Topher Grace).
Cartaz muito bem humorado. |
O filme me fez pensar, também, em nosso país. Principalmente, numa cena, na qual o Sargento Trapp (Ken Garito), superior do protagonista, diz para Stallworth que a Klan quer mudar sua forma de atuação, infiltrando gente como David Duke na política, e o policial negro retruca que um idiota como ele nunca seria eleito. O sargento ri e responde algo como “Você está sendo muito ingênuo.”. Certamente, Spike Lee inseriu esse diálogo em referência à Trump, mas poderia se aplicar ao nosso país. Vide quantos analistas – eu inclusive pensava assim – que negavam qualquer possibilidade de ver o candidato da extrema-direita eleito presidente e eis que ele conseguiu e com grande apoio popular.
Stallworth engana David Duke. |
O filme fez um sucesso tão grande que ressuscitou a Klan, romantizando suas origens, reforçando seus principais temores e bandeiras, ajudando a construir a simbologia do grupo, inclusive inventando a tal história de queimar cruzes. Sessões de O Nascimento de uma Nação serviam para arrecadar recursos para a KKK. Segundo consta, Griffith nunca se perdoou pelo efeito que seu filme causou. E, sim, trata-se de um grande filme até hoje. Terrível e, ao mesmo tempo, um dos melhores exemplares do cinema em seus primórdios. Daí, o impacto emocional da película sobre as audiências da época e mesmo depois. Mais tarde, os membros da célula da Klan fazem uma sessão privada de O Nascimento de uma Nação, se emocionam e vibram com o heroísmo dos cavaleiros da Klan. Aquela, pensam eles, é sua história e cabe recuperar a dignidade (*e privilégios*) dos brancos em um momento no qual as minorias, especialmente os negros, queriam ter sua voz ouvida.
Topher Grace será indicado ao Oscar. |
Mas a história do homem negro infiltrado foi verdadeira? Sim, o núcleo central da história é aquele mesmo. Stallworth revelou sua história em 2014 através de um livro, Black Klansman. O policial foi o primeiro cadete negro da polícia de Colorado Springs, em 1972. Formou-se em 1974, com 21 anos, e foi colocado para trabalhar no arquivo. Posteriormente, foi escalado para uma missão disfarçado na qual deveria observar a palestra dada pelo líder negro e ex-Pantera Negra Kwame Ture (Corey Hawkins), que faz um dos grandes discursos do filme. A partir daí, ele sai dos arquivos e passa a trabalhar em missões na rua. A infiltração na Klan se dá em 1978. No filme, fica parecendo que tudo aconteceu rápido, em poucos meses, se muito, mas foram anos de trabalho e afirmação para Stallworth. O filme situa a ação em 1972 e podemos ver cartazes de campanha de reeleição de Nixon em uma das cenas.
O verdadeiro Stallworth. |
Há quem não lembre disso, mas uma pesquisa básica resolve o problema. Aliás, no livro O Século Inacabado vol. 1, que traz artigos sobre História dos EUA, é muito interessante ver que mesmo no auge da Klan, nos anos 1920, eles enfrentaram forte resistência especialmente dos católicos de origem italiana e irlandesa. Tentando se infiltrar no norte e no oeste do país, não raro terminavam frustrados, porque, ao contrário do sul, muitos policiais eram de origem imigrante e católicos. Além disso, as comunidades se organizavam para resistir. A Klan chamava a polícia e ela, ou não vinha, e os supremacistas apanhavam, ou vinha e prendia os membros da Klan. Isso, claro, quando não tinham embates com a máfia, também. Eu adoro essa parte do livro, mas voltemos para a resenha.
Cerimônia de iniciação. |
Negacionistas normalmente tentam legitimar seu discurso racista esquivando-se de assumir a violência da extrema-direita contra determinadas minorias. Seria uma questão de preservação da “raça” pura, dos valores cristãos, da família, da honra das mulheres brancas e de sua pureza, não de ódio, embora ele sempre esteja pronto a explodir. David Duke, e repito que Topher Grace está espetacular, incorpora esse discurso mais amaciado, menos caipira e brutal, mas igualmente carregado de falácias e pronto a se materializar em atos de violência. É aquilo, por fora bela viola, por dentro, pão bolorento.
O detector de mentiras. |
Agora, se Zimmerman precisa se reconciliar com suas origens, o protagonista, Stallworth deve repensar os seus conceitos em relação a sua negritude. Ser policial é ser um inimigo para muitos dos elementos dos movimentos negros da época. O discurso do pantera negra Kwame Ture faz sentido para ele. Ao mesmo tempo, ele não consegue abraçar os ideiais da namorada, Patrice, uma ativista e crê que é possível mudar o sistema de dentro. Difícil, mas ele amava ser policial e, sim, ele tenta fazer a sua parte. É um embate importante que permite que Stallworth, que diz para seus examinadores que nasceu em uma família estruturada e conservadora, coisa que muitos negros não tinham, possa olhar para além de seu mundinho. E não pensem que ele não sentia o racismo na pele, ele simplesmente não tinha uma visão politizada da questão como Patrice e os outros jovens ligados aos Panteras Negras, ou ao movimento “Black is beautiful”. E uma curiosidade, John David Washington é filho de Denzel Washington e bonito e talentoso como o pai, eu acrescento.
A importância das organizações estudantis negras. |
A escolha de Harry Belafonte, já bem idosos, foi uma homenagem de Spike Lee, porque o ator participou ativamente da luta pelos direitos civis e marchou ao lado de Martin Luther King. Acredito que as lágrimas de atores e atrizes na audiência eram reais. Aliás, em algumas cenas, tanto no discurso de Kwame Ture, quanto no testemunho de Jerome Turner, a câmera foca no rosto de homens e mulheres negros, a maioria jovens, mas alguns já maduros. As expressões são muito convincentes. Há atuação, mas há, por certo, sentimento envolvido. Ao capturar essas reações e coloca-las em um filme de ficção que transita entre vários gêneros – policial, comédia, drama, suspense, documentário – Spike Lee produziu uma obra de grande impacto.
Menção à Angela Davis, uma das maiores lideranças negras feministas norte-americanas. |
Reforço o visível, porque em fases anteriores, como as lideradas por Luther King (1929-1968), ou mesmo Malcolm X (1925–1965), as mulheres não estavam a frente do movimento. Participavam, eram presas, vide Rosa Parks, mas o protagonismo era masculino, mesmo quando elas tinham posições de liderança, seu papel era subestimado, ou elas eram ignoradas quando era importante negociar com as autoridades. Em seus funerais, não raro eram descritas como “doces”, “de fala mansa”, “nunca raivosas”, “apoiadoras”, enfim, imagens femininas subordinadas e acolhedoras. O movimento dos direitos civis nunca teve interesse em acabar com todas as formas de opressão. O que aconteceu no caminho? A ascensão do movimento feminista.
Um dos destaques é o figurino de Marci Rodgers. |
Já as mulheres da Klan, estão sempre em posições subordinadas. Connie compartilha dos mesmos ideais de seu marido, sua função, no entanto, é servir quitutes e bebidas e se afastar. Quando há a cerimônia de iniciação dos novos membros da Klan, esposas e namoradas aguardam do lado de fora. Uma mulher não pode ser um “cavaleiro da Klan”, esse não é seu lugar. Como a organização assume um discurso de retorno ao paraíso perdido defendido pelos que acreditam na “ideologia de gênero”, cabe às mulheres se conformarem ao seu papel subalterno. Connie sabe que deve servir à organização e aguardar que, um dia, eles lhe deem alguma função para além do quarto e da cozinha. Outras, talvez, se contentem somente com isso mesmo. E acredito que o filme não cumpre a Bechdel Rule, pois quando duas mulheres com nomes conversam é sobre algum homem. De qualquer forma, as mulheres têm papel importante na película, mas o filme, como o nome mesmo diz é sobre um, na verdade, dois homens.
Connie tem sede de ação. |
Acredito que já cobri os principais pontos, se comentar mais, serão spoilers mais do que qualquer coisa. Cabe pontuar, entretanto, que a investigação real de Stallworth não resultou em ações que impediram atentados, mas na localização de sujeitos da organização racista infiltrados em altos cargos do governo e das forças armadas. Os planos da Klan foram frustrados, mas a missão ficou em segredo. Algo que o filme mostra é Stallworth jogando fora seu cartão de membro da Klan, o policial, na verdade, guarda o documento em um lugar de honra como prova de que realmente enganou os racistas. Uma cena do filme que ficou ótima e foi criada para ele é quando Stallworth foi escalado para segurança de David Duke e pede uma foto com o racista. Fiquem atentos à sequência.
Emocionante participação de Harry Belafonte. |
O filme fecha com uma homenagem à Heather Heyer, morta pelo neo-nazista James Alex Fields Jr. que atirou seu carro contra uma passeata pacífica. Heyer foi a única vítima fatal, mais de 30 pessoa sforam feridas. Infiltrado na Klan termina com um R.I.P., não o famosos “Rest in Peace” (Descanse em Paz), mas com “Rest in Power” (Descanse no Poder). E se eu tivesse que definir o filme em uma palavra usaria “poderoso”. Espero que ganhe muitos prêmios e inspire muita gente.
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