Pediram-me para comentar o episódio 3 da 11ª temporada de Doctor Who, uma das séries de ficção científica mais longevas da TV mundial, tendo estreado em 1963. Esta temporada tem algo de especial, porque pela primeira vez o Doctor é interpretado por uma mulher, a atriz Jodie Whittaker. Começo dizendo que não assisto Doctor Who, se vi dois ou três episódios foi muito, e ainda que eu tenha visto alguns méritos no episódio "Rosa", afinal, há a questão da representatividade, tanto na seleção da personagem histórica, quanto no fato do roteiro ser de uma mulher negra, de resto não vi nada nele de realmente excepcional.
Montgomery, Alabama, 1955, véspera do famoso incidente no qual a costureira Rosa Parks (Vinette Robinson) se recusa a ceder seu lugar no ônibus para um passageiro branco, vai presa, deteonando-se o grande boicote aos ônibus promovido pelos negros. Acontecimento determinante para o fim da segregação dos transportes na cidade e para a luta pelos direitos civis dos negros em todo o país. A nave TARDIS, chega até Montgomery, atraída por uma estranha emanação de energia, e a Doctor e seus companheiros - Graham O'Brien (Bradley Walsh), Ryan Sinclair (Tosin Cole), e Yasmin Khan (Mandip Gill) - decidem investigar. Terminam por descobrir que um viajante do tempo, Krasko (Joshua Bowman), deseja impedir o confronto que foi fundamental para a luta pelos direitos civis dos negros nos EUA.
A equipe. |
Primeira coisa que me incomodou muito, a Doctor fala a todo tempo sobre não atrapalhar, ou interferir, no fluxo dos acontecimentos, na História, mas todos na equipe parecem nada preocupados com usos e costumes locais, ou mesmo roupas. O grupo de quatro forasteiros, dois deles pessoas de cor, está totalmente deslocado da Montgomery de 1955 e parecem não se esforçar nada para não parecerem alienígenas. Ou seja, falam, mas não fazem nada de consistente a respeito.
O hotel é só para brancos. |
Segundo ponto, esse me incomodou ainda mais, por mais que Rosa Parks tenha um papel importante e do caráter de homenagem do episódio, a coisa ficou personalista demais. Uma pessoa pode fazer diferença, adiantar um processo histórico, ou atrasá-lo? Sim, eu, como historiadora, não descarto isso, no entanto, existe um processo histórico que está em andamento e que é maior que os indivíduos. Vou dar dois exemplos distintos que uso com minhas turmas.
A emoção de Sinclair é absolutamente justificada. |
Entendem meu ponto? As mudanças nas leis norte-americanas, a ação de diversos grupos organizados de negros e simpatizantes desde, pelo menos os anos 1920, a existência de várias lideranças influentes, havia todo um contexto para além de Rosa Parks. A luta pelos direitos civis dos negros tem vários elementos, vários agentes, alguns anônimos, há, também, os que foram esquecidos. A própria ação de Parks, e eu já fiz um texto para meu outro blog sobre isso, não foi inédita, pelo menos outras três mulheres, uma delas na mesma cidade e pouco tempo antes, já tinham agido da mesma forma. Qual foi a diferença, então? O contexto mais amplo, a teia de acontecimentos.
Parks se recusa a levantar. |
Parks e King são heróis dos direitos civis que merecem ser lembrados e venerados, não discuto, eu admiro os dois. Só que a história super-centrada no acontecimento pontual, quando nenhum dos viajantes do tempo parecia fazer qualquer esforço para se misturar, não desceu. As artimanhas do vilão foram bem bobinhas, também. Como não conheço a série, fiquei me questionando se era só aquilo a tecnologia deles, porque todo mundo, salvo a Doctor, parecia desarmado e vulnerável a qualquer um, mesmo um policial de meados do século XX. De resto, a cena final do ônibus, teve duas interpretações excelentes, a de Vinette Robinson, como Parks, e a de Bradley Walsh. O'Brien que tinha sido casado com uma mulher negra, e como um homem decente do nosso tempo se sente profundamente aviltado com o que estava vendo e, ainda assim, não deveria interferir.
O cansaço físico era menor do que o de sempre ceder. |
P.S.: Acabei de ver que caiu Rosa Parks no ENEM. Coincidência interessante.
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