domingo, 12 de agosto de 2018

Gentleman Jack: BBC vai lançar minissérie sobre a primeira "lésbica moderna"



É assim que Anne Lister (1791-1840) é chamada, a primeira lésbica moderna.  Uma mulher rica, muito rica na verdade, independente, sem parentes para tutelá-la, com interesse por inúmeras atividades vistas como pouco femininas (*grego clássico, matemática, montanhismo, mineração, desenvolvimento da indústria etc.*).  Anne Lister celebrou um casamento (*oficialmente não reconhecido, claro*) em uma igreja com sua companheira, Ann Walker, em 1834.  Sobre Lister restou, além dos registros históricos e cartoriais sobre ela, um diário com mais de 4 milhões de palavras, 1/6 do qual em código.  

Nos anos 1980, o código, que combinava álgebra avançada e grego clássico, foi quebrado e descobriu-se que a parte escondida tratava abertamente da homossexualidade da autora.  Lister viveu muitas aventuras amorosas e o fez, pelo menos parcialmente, de forma pública, ou semi-pública.  Seu estilo de vida, que de certa forma afrontava a moral e os bons costumes, só pode se justificar pela liberdade que a riqueza, e para quem acredita que mulheres nunca herdavam na Inglaterra, aviso que se informem, lhe conferia.  Ela não tinha que dar satisfações a ninguém, não havia parente que pudesse interná-la em um manicômio e ela era inteligente (*e rica*) o suficiente para neutralizar quem ousasse atravessar o seu caminho.  

Retrato mais famoso de Lister.
Ao morrer, na Rússia, durante uma de suas expedições, em 1840, Walker trouxe o corpo embalsamado da amada de volta para  a Inglaterra.  Anne Lister deixou em testamento uma pensão para a esposa, Ann Walker, que era rica, também, mas mais vulnerável.  Walker, que tinha um histórico de depressão e outros problemas, terminou a vida internada em um sanatório.  O grosso da fortuna de Lister foi herdada por primos distantes.

Em 2010, a BBC já tinha feito um filme sobre Lister,  The Secret Diaries of Miss Anne Lister, que eu comecei a assistir, mas nunca resenhei.  O filme foca muito nos dramas amorosos da protagonista, em certo amargor que me desagradou, e, não, em sua vida como montanhista ou grande capitalista.  Se entendi bem, desta vez o foco da ação será a vida de Lister com Walker, elas se conheceram no início dos anos 1830 e nas atividades de Lister como industrial e dona de minas em Halifax, assim como a tentativa de seus competidores, todos homens, de prejudicar-lhe os negócios.  

Sally Wainwright já foi premiada várias vezes.
O roteiro e a direção da minissérie, que terá 8 episódios, são de responsabilidade de Sally Wainwright (To Walk Invisible, Last Tango In Halifax, Happy Valley).  Anne Lister será interpretada pela atriz Suranne Jones.  A estréia é em novembro deste ano.  "Gentleman Jack", nome da série, era um apelido depreciativo dado á Lister e que, acredito eu, não deveria ser usado em sua presença.  Lister vestia-se sempre de preto desde muito jovem, era uma espécie de marca registrada e esta cor, salvo em situações muito específicas, era vista no século XIX como masculina, que denotava poder.  Para quem se interessa por história social das cores e da moda, recomendo o livro Homens de Preto, de John Harvey, ele trata muito bem desse aspecto. 

Já concluindo, quando comecei a buscar material para esse post, encontrei um artigo sobre a inauguração de uma placa em homenagem à Anne Lister na igreja da Santíssima Trindade, em York, na qual ela e Ann Walker teriam se casado.  Lister era uma anglicana fervorosa.  A tal placa, ao invés de escrever que Anne Lister era lésbica, colocou que ela era uma pessoa que não se conformava aos papéis de gênero.  Isso quer dizer um monte de coisas, mas não evidencia a orientação sexual de Lister.  Ainda que o casamento com uma mulher sugira que ela seria lésbica, trata-se de uma tentativa, mesmo que por distração, de invisibilizar este aspecto fundamental da personagem.  

A placa da discórdia.
Historicamente, as lésbicas são menos visíveis, que os gays.  Primeiro, por serem mulheres, preciso explicar sobre esse silenciamento?  Acho que não.  Segundo, porque, não raro, sua orientação sexual era vista como fruto da confusão, algo transitório e menos agressivo à ordem patriarcal do que a homossexualidade masculina.  Sem falo, não há sexo, alguns pensam até hoje. Terceiro, porque muitas mulheres lésbicas terminavam se casando e/ou  disfarçavam seu afeto - ou a sociedade fingia não ver - por trás de laços de amizade que eram considerados aceitáveis em um determinado contexto histórico e classe social.  Agora, quando saiam das sombras, quando ousavam efetivamente invadir espaços masculinos, ou se apropriar de práticas, vestuário, ou o que seja que denotava poder e status, a violência poderia explodir.  

Ontem mesmo, tropecei no caso da francesa Violette Morris, que era, claro, uma "mulher má", já que colaborou com os nazistas, mas que, bem antes disso, foi punida pela confederação olímpica francesa, porque adotou vestimenta masculina e tinha relacionamentos com mulheres.  Morris era uma atleta formidável e foi punida por sua orientação sexual e por não se conformar (*aqui cabe*) aos papéis de gênero exigidos de seu sexo.  Uma minissérie sobre ela seria muito bem vinda, mas duvido que seja feita.

3 pessoas comentaram:

Adorei o post, Valéria. Grata por compartilhar. Só tem uma data, você colocou 1934, mas pelo que há na placa, deve ser 1834. Deu um nó na minha cabeça, rs. Estou sempre aqui lendo seu blog e aprendo muito, o Shoujo Café é uma referência para mim.

Interessante como antes do período vitoriano parecia haver menos restrição para essas dissidências sexuais.

Isso é relativo. Acredito que a chave para entender esta personagem é o seu poder econômico.

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