Se você conhece o Shoujo Café, ou os trabalhos acadêmicos apresentados ou escritos por mim (*Valéria Fernandes da Silva*) sabe que eu defendo que os mangás, assim como outras mídias, tem função pedagógica. eles nos ensinam coisas sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre sentimentos. Eles reforçam valores, eles os questionam. Os japoneses entendem bem esse potencial e não colocam protagonistas adolescentes, que vão para a escola, à toa. É uma forma de criar identificação com o seu público prioritário.
No caso do shoujo mangá, até por focarem com mais frequência nas relações entre as pessoas, e não somente amorosas, a gente acaba refletindo volta e meia sobre nossa própria vida. Se pega lembrando do passado. Derrama uma lágrima. Faz umas pontes, às vezes, meio loucas, com alguma experiência vivida. Lembro de uma entrevista que traduzi da Takemiya Keiko em que ela fala de uma carta que recebeu de uma leitora que compreendeu que não estava só na sua dor graças à leitura de Kaze to Ki no Uta. Ela sofria abuso sexual em casa. Era anos 1970 e o mangá de Takemiya Keiko teve uma função terapêutica, ajudou a garota a pedir socorro.
Enfim, a Mariana Finello, que faz parte do grupo do Shoujo Café no Facebook, postou um texto do fórum da editora francesa Akata. Eu traduzi, porque ele é importante. Primeiro, porque trata disso que eu apontei no primeiro parágrafo, a função pedagógica dos mangás. Segundo, porque aponta que o shoujo mangá sofre preconceito na França. E não pensem que a França é boazinha com as mulheres quadrinistas, porque não é. Mangá vende, eles publicam, mas imagino os narizes torcidos de alguns para o material feito por mulheres e para mulheres. Terceiro, precisamos parar de desprezar o shoujo mangá de romance escolar. Eu, que já fiz isso, li e fiquei ainda mais cônscia da importância desse tipo de mangá.
A maioria do material shoujo produzido é romance escolar. A gente olha e pensa "de novo!", mas esquece dos fatores apontados no primeiro parágrafo, isto é, o material é para adolescentes e eles e elas vão para a escola. Mesmo que lembremos que boa parte do que se produz é mais do mesmo, esquecível, isso é a regra dentro de qualquer indústria cultural. Poucas obras realmente se destacam e são lembradas por anos e anos, tornam-se clássicos, por assim dizer. Agora, nada disso impede que o mangá "feel good" (*o termo foi usado no texto francês, aliás*), não vai falar ao nosso coração, aos nossos sentimentos, nos aliviar, nos alegrar, nos curar.
E vamos, por favor, parar de desprezar sentimentos e materiais que falam deles. Isso é típico da cultura machista que cria as tais masculinidades tóxicas que a gente critica, isso é típico de quem despreza o que é feminino, dentro dos padrões dos papéis de gênero atuais. Coisa de mulherzinha? Sim, e daí? Percebem o X da questão? Nem tudo precisa ser um manifesto feminista super transgressor e engajado, e, se não for, não quer dizer que o material não seja bom, sincero e tenha, sim, sua função social. Segue o texto traduzido. Não sei se ficou tão bom quanto deveria.
A importância do Shoujo de Romance Escolar
Esta manhã, no correio, recebemos uma carta para Kaori Hoshiya. Uma carta infelizmente escrita em francês, e que será difícil de transmitir, mas ... O conteúdo desta correspondência foi, no entanto, particularmente tocante. A pessoa expressa, depois da leitura de “Don’t Worry Be Happy!”[1], uma confiança suficiente para se dirigir à autora, e pedir alguns conselhos. Sem revelar o conteúdo desta carta, a leitura se remete a um trecho da obra:
"Ser vulnerável nos torna mais humanos e mais divertidos".
Em torno desse trecho, ela faz uma pergunta essencial: nós realmente temos que admitir quando nos sentimos mal? Há nesta carta uma espécie de pedido de ajuda. Estou profundamente convencida de que através da leitura de “Don’t Worry Be Happy!”, a leitora foi capaz de encontrar força, coragem e conforto. E isso me leva precisamente ao ponto que quero abordar.
Nós frequentemente nos esquivamos, mas o mangá shoujo é um "gênero" ainda mal amado, muito denegrido, incompreendido. Aqui, na Akata [a editora], é uma categoria editorial que defendemos, especialmente, e reservamos algumas surpresas agradáveis a partir de então (incluindo ficção científica em estado puro). Mas entre aqueles que também querem defender o shoujo, lemos, finalmente, muito desprezo diante de um tipo muito específico: o "romance escolar". É uma pena e triste. Claro, ainda faltam muitas coisas, e há muito o que fazer para explorar o "mangá shoujo". Tantas coisas ... Mas querendo defender o shoujo na sua diversidade, isso não deve ser feito em desrespeito de toda uma parte desta demografia (apesar da sua sobre-representação, deve-se admitir). Para mim, as coisas são claras: o romance escolar, mesmo com leveza, com histórias de amor, com sua maneira sincera, e com personagens saudáveis, pode salvar vidas. Esta carta é a prova perfeita. E além disso, é exatamente para afirmar que criamos este rótulo "Shoujo Feel Good". Sem dúvida, de certa forma, o shoujo mangá de romance escolar pode ser parte, se escolhido, em um trabalho emocional e educacional na adolescência.
Então, sim, ainda que ainda existam muitas facetas do shoujo no cenário editorial francês, continuaremos a defender com unhas e dentes essa demografia, em sua diversidade. O que também significa continuar a publicar "comédias românticas com estudantes do colegial", chamados "clássicos". Clássico, sim, mas saudável e positivo. Defender o shoujo, também passa por ali. Então, vamos parar de denegrir sistematicamente o shoujo com romance escolar.
E para aqueles que fazem a pergunta, obviamente responderemos a este e-mail. Porque é precisamente esse tipo de carta que nos dá força e coragem, motiva-nos a continuar na mesma direção. É normal, essencial e talvez vital que essa pessoa seja respondida.
[1] Hoshi to Kuzu ~Don't Worry Be Happy~ (ほしとくず -Don't worry, Be happy-) é uma série em quatro volumes publicada na revista Betsuma. A protagonista, Anzu, é uma menina pobre, mas ambiciosa. Ela deseja ter uma carreira de sucesso e, para isso, deve começar sendo presidente do conselho estudantil. O problema é que ela tem que competir com o igualmente ambicioso Yamabuki, um garoto egocêntrico que acaba conseguindo a presidência do conselho obrigando Anzu a se conformar em ser vice. Tem scanlations até o volume #2, talvez, mais.
1 pessoas comentaram:
Devo ser um mutante. Adoro shoujo de romance escolar.
E leio no metrô, no ônibus. E vejo muito gente com uma cara meio torta tentando entender o que é aquilo que eu estou lendo. Capas rosinhas, com flores, com personagens bonitinhos. Obviamente, deve rolar aquele julgamento básico "coisa de gay", mas eu nem ligo, e pelo menos ninguém disse nada até hoje.
Sempre torci muito para que mais séries shoujo e josei cheguem aqui, mas acho que vou ter que economizar pra comprar lá fora mesmo, porque sai muito pouco coisa no Brasil.
Postar um comentário