Estou devendo uns posts sobre Orgulho & Paixão. Já aconteceu tanta, mas tanta coisa! Desde o pedido de casamento de Darcy para Elisabeta, a recusa muito bem fundamentada da mocinha, até a sequência de sexo dos dois e o rolo das cartas que ainda está em andamento. E Emma, então? Tendo que lidar com Ernesto - que é um fofo e parece que autor decidiu que teremos, sim, um Frederick Wentworth - e com Jorge tentando voltar ao jogo (*pode já ser tarde, aliás*) para que Murilo Rosa não morra na trama. Emma ainda é a minha protagonista favorita de Orgulho e Paixão. Mas não quero falar disso. Quero falar de sexo e das neuroses cada vez mais frequentes em relação a isso.
Estamos no século XXI, não temos os nossos carros voadores, nem colônias na Lua, mas sim uma série de nóias que parecem saídas da Era Vitoriana (1837-1901) parecem ter voltado, ou emergido, com toda a força. Era um período fascinante, sem dúvida, mas cheio de falso e verdadeiro recato, além de muita hipocrisia e violência para todos os gostos. Ora, o sexo, como mecanismo de manutenção da espécie, permanece como uma necessidade, já a prática, a expressões dos afetos e dos desejos, a expressão sexualidade, enfim, é historicamente situada. Bem, parece que vivemos um backlash em muitos sentidos, inclusive na forma como lidamos e falamos, ou não falamos, de sexo.
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A formidável rainha que deu nome a uma Era. |
Como aponta Eni Orlandi, se “todo dizer cala algum sentido (...)”, o silêncio não é um vazio sem história, o não-dito sempre quer dizer alguma coisa na ordem do discurso. Como surgiu a ideia desse post? Veio de quatro lugares: 1. Do confronto entre as duas versões de Sinhá Moça, a de 1986 e a de 2006; 2. Da gritaria de certas mulheres elitistas e moralistas, porque há sexo em uma novela das seis que se passa em 1910; 3. Da conversa que tive com meu marido sobre essa onda (pseudo)moralista; e 4. Desse tweet aí embaixo:
A Emi, do site Shoujo Manga Land, é muito ativa no Twitter e ela fez esta postagem acima. Para quem não entendeu, para quem não viu as antologias citadas, a Cheese! e a Sho-Comi, nos anos 1990-2000, ambas traziam muito sexo, relações abusivas, mocinhas que eram, não raro, estupradas e isso tudo em um pacote cor de rosa. Tais situações eram bem explícitas para revistas dedicadas para o público adolescente. A Cheese! tinha um recorte de idade mais elevado, mas a Sho-Comi seria para um público como o da Betsuma. Para piorar, e gerar escândalo e recriminações, a propaganda dos mangás dessas revistas apareciam na irmã mais nova de ambas, a Ciao, uma revista para a faixa etária de 9 a 13 anos, mais ou menos.
Claro, essas duas revistas são mainstream, pertencem a uma grande editora, a Shogakukan, outras de editoras menores circulavam com material semelhante. Tudo em papel e colocado nas lojas. Havia reclamações, em alguns lugares revistas shoujo e josei terminaram apreendidas. O que a Shogakukan fez? Se impôs uma auto-censura. Pegue uma Sho-Comi do tempo em que Shinju Mayu publicava lá, pegue um exemplar de hoje. É muito diferente. Há ainda conteúdo sexual, que é mais explícito na Cheese!, mas a coisa está em níveis muito mais controlados. E eu considero que para o bem das publicações, especialmente, da Sho-Comi, que mira um público adolescente. Mangás, repito, repetirei sempre, assim como outros tipos de quadrinhos, tem função pedagógica, também.
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Ren-ai Shijou Shugi (レンアイ至上主義), Minami Kanan, Sho-Comi, 2002. |
Só que o que a Emi apontou, e que eu desconfiava, claro, é que muito desse material mais explícito, que celebra alegremente a cultura do estupro, migrou para o formato digital. Na internet, é possível ler o que você quiser sem que tenha que passar em um balcão de loja para pagar. A literatura erótica e pornográfica feminina (*vejam bem feminina, não necessariamente feminista*) floresce no meio digital. Você pode ler no celular e no tablet, sem que tenha que expôr a capa de um livro ou mangá. Como é uma coisa mais restrita, mesmo que de grande circulação, talvez os estragos sejam menores. Como pontuei, essa separação, essa depuração das antologias shoujo fez bem para elas, para seus roteiros e leitoras. Houve um momento em que era uma enxurrada de violência e ficava difícil separar joio do trigo.
Quer ler coisas muito "smut"? Você pode. Não estou aqui defendendo que sejam colocadas amarras aos desejos, fetiches, ou à imaginação de quem escreve, ou de quem consome, mas as empresas precisam criar linhas editoriais mais específicas e ter critérios claros em relação a elas. Quem entra na página da Harlequin e vai no help center tem guias de como escrever e do que pode ser escrito nas diferentes coleções. Enfim, os japoneses entenderam rápido o que estava acontecendo e fizeram isso, usaram a internet. Continuamos falando de sexo, de afeto, de sexualidade nos shoujo mangá, mas aquela carga mais pesada que existia nos anos 1990-2000 sumiu das revistas mainstream. Curiosamente, há quem olhe para esses materiais e ainda se apavore. Veja bem, analisar é uma coisa, criticar é importante, mas se descabelar e gritar que é o fim do mundo e querer queimar tudo na fogueira, porque não se alinha a sua visão de mundo é outra coisa totalmente diferente. Muito, aliás.
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O problema é o sexo, ou é a falta de culpa por parte da mocinha? |
O fato é que vivemos em tempos altamente moralistas no Ocidente. Tanto o povo de direita, quanto o de esquerda, criam monstros o tempo inteiro. E o sexo está no centro do palco. Falando-se dele (*ou o mostrando*), ou não se falando dele, estamos o tempo inteiro orbitando em torno do dito cujo. É o tal dispositivo da sexualidade, que Foucault tão bem definiu e discutiu. Ele nos domina, ele nos assujeita, ele tornou-se o eixo central da vida do Ocidente durante a tal Era Vitoriana. Daí, muita gente acredita que todo mundo era casto, puro, sem desejo, antes dos anos 1960. Depois veio a depravação e tudo é culpa da televisão, no Brasil, especialmente, da Rede Globo.
As narrativas se transformam, porém o dispositivo da sexualidade está lá enraizado. Antes se defendia que eram somente as mulheres (*decentes*) que não pensavam em sexo e aceitavam o desconforto dos contatos íntimos com um homem em troca do casamento e da realização suprema que era ter filhos. Depois que coisas como Crepúsculo (*é somente um exemplo*) foram atiradas para as adolescentes (*e foram lidas por algumas adultas*) de uma década atrás, temos uma geração de mulheres que parece acreditar que os homens de séculos passados pautavam-se por ideias semelhantes. Todos castos, guardando-se para o casamento, não frequentando bordéis, ou prostitutas, não tendo amantes, ou mesmo estuprando... Enfim, um mundo rosa e feito de algodão doce.
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Maria Vitória e Vicente eram uns amores, mas a noite de núpcias dos dois foi bem decepcionante. |
E quando vejo algumas novelas das seis da Rede Globo, em especial a atual que é demonizada por vários motivos, acusadas em certos círculos de espalhar a depravação no Brasil e levar adiante uma agenda feminazi-gayzista-esquerdista, parece que eu estou vendo a revolta dos habitantes desse mundo cor de rosa ideal. Acompanhei Tempo de Amar, a novela anterior e gostava dela, terminei não escrevendo uma crítica final, mas cheguei a comentar que me incomodava particularmente a falta de libido dos dois italianos que passaram quase toda a novela dividindo um cubículo com as duas portuguesas que eles amavam. Nem leves delírios eróticos os moços tinham. Absolutamente irreal.
Como as sensibilidades modernas são projetadas no passado, a tolerância em relação ao moço bonzinho mulherengo é ZERO. Ele não pode existir, não há aventuras amorosas, não existe mais aquela história do sujeito que tem duas famílias. Se algo acontece, se o mocinho, ou alguém do "lado bom da força" olha para ourta, precisa ser acidente, ou armadilha do vilão. Quando chegamos lá ao enlace de Vicente e Maria Vitória, da noite de núpcias dos dois quase nada foi mostrado. E não peço longas cenas de sexo, mesmo que sugerido, ou erotismo muito marcado, não era o perfil das personagens, as melhores cenas dos dois, as cenas mais românticas, eram outras e sempre me lembrarei daquela lindíssima árvore amarela, entretanto, me ela me pareceu até pouco romântica, tamanho o pudor com que a coisa toda foi conduzida pela direção.
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Lena terminou perdoando a traição de Giuseppe. |
Daí, quando Darcy e Elisabeta tiveram sua primeira noite juntos, fiquei realmente surpresa da direção tornar tudo tão interessante, romântico e ao mesmo tempo erótico e apimentado na medida que o horário das seis atual permite. Nada foi insosso, eu diria. Primeiro, Elisabeta melhorou muito depois de umas primeiras semanas difíceis. Acho que foi um esbregue que ela tomou do Jorge na sua primeira ida a São Paulo que inciou o processo. A personagem amadureceu e se tornou independente na medida certa. Ela ama, mas não quer casar. É uma mulher livre e, sim, elas existiam na década de 1910, vide lá a minha resenha da biografia de Rosa Luxemburgo em quadrinhos.
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A pessoa postou em um grupo de Facebook restrito e postou no UOL, então, quer que a coisa seja pública. |
Só que isso, o amor materializado em sexo sem culpa, deixou umas coleguinhas de grupos de Jane Austen revoltadíssimas. Como assim uma mulher fazia sexo antes do casamento em 1910?! Como assim?! Nem todas, a maioria provavelmente não, mas algumas faziam e gostavam, ou faziam e se arrependiam. E posso citar exemplos históricos, começando pela irmã caçula de D. Pedro I, Ana de Jesus, quase contemporânea da própria Austen, que fez, gostou, e ainda conseguiu casar (*grávida*) com o homem que amava. A maioria das princesas, vocês sabem, casavam com quem lhes era imposto, com raras exceções. No mais, voltando para a novela, a sequência foi toda foi muito bonita também. Um meio termo entre o excesso de castidade e comedimento, e os exageros de outras épocas.
Foi-se o tempo em que em uma novela como Salomé (1991), Patrícia Pillar fazia a dança dos sete véus ao pôr do sol e terminava com os seios desnudos. Fora as cenas de sexo as quais, hoje, talvez só aparecessem na novela das nove, mas eram relativamente comuns em algumas novelas das seis. Sim, eu também acho que não era bem apropriado para o horário, como lá no caso das revistas shoujo com mangás super-sexualizados, mas vivíamos os anos pós ditadura e a censura tinha sido abolida. Gerou-se quase um vale-tudo nas nossas TVs, basta pegar qualquer vídeo falando sobre programas de auditório, ou infantis da época, aliás, era uma tendência que vinha desde meados da década de 1980, pelo menos.
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Patrícia Pillar ficou quase nua no primeiro capítulo de Salomé. |
Agora, é preciso ressaltar que as novelas das seis sempre foram muito mais comedidas que as do horário das oito e mesmo das sete. Só que, em comparação com nossos dias, elas foram muito depuradas. A novela Ciranda de Pedra de 1981 foi muito mais fiel ao livro que a de 2008, a qual modificou a orientação sexual de Letícia, que deixou de ser lésbica, e saiu distribuindo finais felizes para todo mundo, inclusive quem deveria morrer. A atenuação dos conflitos, dos dramas é uma tendência que não me parece benéfica para as tramas das seis. A novela que está no ar, Orgulho e Paixão, é agradável, bem escrita e dirigida, mas poderia ser mais interessante se fosse mais realista em certos aspectos. Ela só consegue ser mais intensa quando assunto são os amores e os desejos, quer dizer, intensa para o que tem sido a média das tramas das seis. O resto é tratado com a excessiva leveza que o horário não precisava abraçar.
Já caminhando para o final, estou assistindo Sinhá Moça de 1986 e olhando o remake de 2006, ao mesmo tempo. Pontuei umas coisas no meu último texto sobre como a primeira trama me parece mais realista, começando com a mocinha montando atravessada na sela, coisa que as produções modernas brasileiras e internacionais costumam ignorar, e humana em alguns aspectos. Eis que estamos terminando a fase em que os protagonistas passam um tempo no quilombo. Rodolfo rouba Sinhá Moça do trem e os dois seguem para a comunidade de escravos fugidos e lá se casam. Pelos cálculos da trama, passaram um mês escondidos e em idílio amoroso. A mocinha está grávida e não sabe. É igual em ambas as novelas.
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Sinhá Moça, 1986. |
A novela de 1986 não mostra nenhuma situação sexual, mas mostra uma intimidade entre os protagonistas, Rodolfo e Sinhá Moça, que não percebi na novela de 2006. As mesmas cenas, os mesmos diálogos, mas o desejo é evidente na versão mais antiga, com uma carga de desejo que a novela mais recente eliminou de todo. A de 2006 é somente romântica e um tanto sem sal. Daí, peguei duas imagens. Na novela de 1986, o capítulo é o 106. Rodolfo sem camisa, sentado com Sinhá Moça entre suas pernas. A mesma cena na novela de 2006, capítulo 118, Rodolfo está completamente vestido, suas acomodações parecem melhores e o casal está em uma pose muito mais casta.
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Sinhá Moça, 2006. |
Quando trabalha na roça do quilombo, Marcos Paulo aparece sem camisa, suado e descabelado. Danton Mello parece sempre arrumadinho, limpinho e com a camisa bem abotoada. Há outra cena que me saltou aos olhos também. O diálogo é o mesmo, porém o tom é totalmente diferente, assim como a ambientação. Rodolfo (Marcos Paulo) está trabalhando no campo, suado e sem camisa. Sinhá Moça (Lucélia Santos) vem atrás dele. Ela fala que o pessoal do quilombo toma banho no Rio, o tom é quase de convite (*Vamos?*). Ela diz que ele está suado. Ele se desculpa. Ela diz que gosta e os dois se beijam apaixonados. Na versão de 2006, o diálogo é o mesmo, salvo por Rodolfo meio que reclamando de estar trabalhando tanto. O mocinho está todo alinhadinho e o casal sentado em um banquinho. Seguem as mesmas falas e temos um beijinho bem casto.
Vinte anos e tantas mudanças. Desde padrões de masculinidade e feminilidade novelescas, passando por essa obsessão por limpeza, e eu lembro de pelo menos duas intervenções - A Padroeira e Torre de Babel - porque os grupos de pesquisa reclamaram que as novelas eram sujas, até a questão do desejo suprimido e das situações com sugestão sexual cortadas. Pelo menos, diferente de outras mídias, as novelas das seis cortam sexo e violência, e não somente o primeiro. De qualquer forma, Orgulho e Paixão tem se saído melhor no que tange ao lidar com sexo e desejo, em mostrá-lo de forma inequívoca e romântica, do que Sinhá Moça 2006 e Tempo de Amar. Mas é um processo e eu sei que se cismassem de fazer um remake de outra das minhas novelas favoritas, O Direito de Amar, a coisa perigaria a ficar insossa como a versão de Sinhá Moça de 2006.
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Já vi o povo reclamar de tudo, mas nunca vi ninguém reclamando da camisa molhada fanservice do Colin Firth que não está no livro. |
Não sei se o texto foi competente em condensar meus pensamentos. Queria falar de backlash, falso moralismo (*daquele tipo que persegue exposições de museu e artistas*) e mudança nas sensibilidades. O que era aceitável em uma época, pode deixar de ser em outra. O que era esteticamente adequado em um momento, pode deixar de ser. Material histórico (*filmes, novelas, quadrinhos*) são menos uma leitura do passado e muito mais uma expressão do tempo em que são criados. A coisa, claro, tende a piorar se projetamos neles nossos (pre)conceitos e ignorância histórica. Por exemplo, e a amiga Lina me lembrou disso, Jane Austen virou um ícone dos conservadores. Por conta disso, há gente que não consiga perceber seu humor, sua crítica social e o quanto sua família Bennet era um tanto disfuncional...
Concluindo, o pessoal transava, ou não transava, antes do casamento em 1910? A resposta seria, alguns sim, alguns não. E daí? Por que sexo, especialmente, sem culpa lhe incomoda tanto? E, por favor, deixe Jane Austen em paz, porque eu acho que ela teria é vergonha de certos fãs e não daria a mínima para a novela.
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Pra quem não sabe, essa novela é de época, sim, mas passou às 23h. |
ATUALIZAÇÃO: Cada vez que eu leio alguém dizendo que a Globo coloca conteúdo sexual em demasia em suas novelas de época, me pergunto qual foi a última novela das seis que a criatura assistiu, ou se não está confundindo novela das 11h, uma Liberdade, Liberdade, com novelas das seis da tarde. Sério! É viagem demais.
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