Ontem, o Príncipe Harry casou-se com Megan Markle. Irrelevância? Sim e não. Markle me era absolutamente desconhecida antes que anunciassem o tal casamento. Acompanhei as primeiras polêmicas sobre comentários racistas feitos pela imprensa inglesa, coisas na linha "ela servia para ser amante, não esposa" até a entrevista com sua insignificância imperial, dom Bertrand de Orleans e Bragança, afirmando que não autorizaria jamais tal casamento (*para o qual nem foi convidado*) e que o matrimônio teria maior impacto se a noiva fosse princesa e não fosse divorciada (*e, provavelmente, fosse branca*). Agorinha vi a matéria da Deutsche Welle sobre a pavorosa cobertura da TV pública alemã para o casamento. Ela foi racista e sexista.
Li também falas de diversas mulheres antifeministas (*e que utilizam todos os espaços e lugares de fala pelos quais as feministas lutaram para despejar suas atrocidades*) criticando a moça, porque ela se ajustou a todas as exigências para se tornar princesa, que seria uma hipócrita, como todas as feministas, porque por um macho - e esse parece ser um de grande valor simbólico e real, com o perdão do trocadilho - até a mais ativista das mulheres se dobra. Sim? Não? Estou me lixando. Há, também, algumas feministas que estão demonizando a moça, porque ela casou (*casar não pode, você deixa de ser feminista se se casar*) e parou de trabalhar, como se ela, uma mulher rica e com um patrimônio invejável, fosse ser sustentada pelo marido. Aliás, nunca recomendo que mulheres se deixem sustentar por seus maridos, companheiro e sei lá o que seja, que abram mão de sua carreira, quando pobres, ou de classe média, isso pode dar muita dor de cabeça no futuro, mas Markle tem recursos que a maioria de nós não tem e escolheu (*escolher pode, viu? A maioria dos feminismos é categórico nesse aspecto*), muito provavelmente, com os olhos bem abertos e, talvez, com o coração. O fato é que, basta ler sobre a monarquia britânica para saber que para entrar para a família real é preciso fazer concessões.
Foto de noivado da futura rainha, 1947. |
Quem assistiu The Crown, a primeira temporada, sabe que até um homem, caso do esposo da Rainha Elizabeth, precisa fazê-lo. Megan Markle inovou na cerimônia, algo muito importante em termos simbólicos, foi ter entrado sozinha na Igreja. Foi escolha dela, não é? Por qual motivo uma mulher precisa ser entregue por um homem para outro homem? O pai dela estava impossibilitado e uma das conversas mais irritantes da imprensa de fofocas era quem a levaria ao altar... Achei muito interessante a resposta: ninguém. Só seria melhor se ela entrasse com a mãe. Será que é possível ser feminista e não ter redes sociais, emprego regular e pintar as unhas de cores berrantes? Não sei, mas deve ser muito ruim ter Sua Majestade Lilibeth mandando na sua vida. Ela pode não ser a Rainha Vitória, mas deve ser difícil de aturar. Mas, no século XXI, se ficar muito puxado, Markle pode pular fora desse barco. Outra coisa que as lutas feministas ajudaram a garantir.
De resto, vi matéria de um site de esquerda dizendo que só nós, aqui, no Brasil, nos preocupávamos com o tal casamento real. Filhos, eu não sou monarquista, mas redes de TV do mundo inteiro estavam cobrindo o evento. Companheirada, a Monarquia Britânica não é somente fonte de gastos, ela é uma máquina de fazer dinheiro poderosa. Atrai turistas, vende jornal. é quase um zoo humano de elite. Então, se boa parte dos britânicos acredita que o regime vale a pena, ou que melhor deixar assim, porque vai dar trabalho mudar, que eu tenho com isso? Ofereçam análises melhores, porque li uma que era igualzinha a de Dom Bertrand, que somos no fundo monarquistas, afinal, temos vários reis e rainhas e princesas... Acredito eu que aconteça em todo lugar, mas há gente que crê que é somente aqui e, bem, isso nada tem a ver com ser monarquista, ou republicano. Mas cada um com seu cada um...
Markle e a Mãe. |
Enfim, para mim, se existe algo de relevante a respeito do "Casamento Real" é isto que vejo nessa foto aí em cima. A felicidade no olhar dessa mãe. Todas as fotos do rosto da mãe da noiva, me pareceram comoventes. Eu consigo ter empatia e acredito que para muitas pessoas de cor [1], súditos da Coroa Britânica, isso deve ter um peso enorme. Porque até algum tempo atrás seria absolutamente inaceitável. Impensável que uma mulher negra pudesse entrar para a família real. Talvez, nem amante. Se você é republicano, bem, ainda assim é representatividade e não é pouca, não.
Claro, que não podemos esquecer do seguinte, Harry nunca será rei. Teria que acontecer uma tragédia como a do White Ship (Que serviu de base para Os Pilares da Terra*) ou a que se abateu sobre a família de uma das irmãs do Príncipe Philip para que ele fosse para o topo da fila. Será que a Monarquia Britânica, e muita gente deve ter engolido mal a entrada de Markle na família, seria tão complacente se ele fosse o herdeiro? Duvido. Só que, exatamente por isso, arranjou-se um espaço para atualizar a monarquia. O que eu quero dizer? A Monarquia, seja a britânica ou qualquer outra na Europa, precisa cultivar e inventar tradições [2] e, ao mesmo tempo, parecer antenada com os novos tempos. Pelos flashes que vi, foi uma bela cerimônia, para quem curte essas coisas, claro, e mais negra do que se imaginava. Representatividade importa e até a Rainha da Inglaterra sabe disso. A Monarquia precisa permanecer viva, não esse fantasma que é a casa imperial brasileira, e atualizada com os novos tempos. O show não pode parar. Se parar, talvez, as pessoas comecem a refletir sobre sua necessidade.
Um dos pontos altos foi a apresentação do The Kingdom Choir, regido por uma mulher. |
Enfim, já caminhando para o final. Alguém brincou que havia mais negros no casamento real do que na novela Segundo Sol, aquela que mostra toda a branquitude da Bahia. Daí, tropecei em um texto do The Guardian, jornal britânico, comentando o causo. E eles descem a lenha: "The story takes place in in Bahia state, where nearly 80% of the population identifies as black or mixed race according to the Brazilian Institute of Geography and Statistics. Yet just three of the show’s 27 actors are black; none of them play a main character and none appeared in the first episode." (A história se passa no estado da Bahia, onde quase 80% da população se identifica como negra ou mestiça, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. No entanto, apenas três dos 27 atores do programa são negros; nenhum deles interpreta um personagem principal e nenhum apareceu no primeiro episódio.)
Confesso que adoro quando essas vergonhas se tornam internacionais, porque é uma forma de expor o racismo entranhado entre nós, essa coisa que é negada cotidianamente, mas que está presente em todo lugar, especialmente, em nossas novelas. TVs são concessão pública e deveriam ser socialmente responsáveis, coisa que a rede Globo parece não ser. De resto, deixo o vídeo da Gabi, qu fala muita coisa legal sobre a questão:
Concluindo, por conta do casamento real, o site MdeMulher fez uma excelente matéria intitulada "Meghan Markle é negra?". A matéria discute como no Brasil e nos Estados Unidos o ser negro é percebido de forma distinta, historiciza a questão ao falar de política da "uma gota" (de sangue) nos EUA e dos esforços para o embranquecimento da população no nosso país. Fala de colorismo e de como é difícil definir certas fronteiras e questões. Enfim, vale muito a leitura. Até usa um quadro famoso que usei na prova trimestral que estava me matando de corrigir.
“A Redenção de Can” (1895): No quadro de Modesto Brocos, uma idosa negra agradece aos céus pela “purificação racial” da família. Este quadro diz muito sobre o Brasil até hoje. |
É isso. Espero que o texto tenha sido útil. Que tenha ficado claro que a discussão do casamento real é periférica e, não, central, que há várias coisas em jogo quando estavam noticiando o enlace de Harry e Megan Markle. Racismo, sexismo, antifeminismo, elitismo, enfim, um prato cheio para mil análises. E sei que o texto pode desagradar um montão de gente, mas confesso que não me importo. Precisava escrever.
[1] Antes que alguém venha me repreender pelo uso de "pessoas de cor", o termo ainda é usado em inglês e eu o utilizei tentando sugerir que a identificação pode ir além daqueles que são negros. Estou plenamente ciente das discussões de como o termo invisibilizaria as diferenças entre os não brancos, que seria datado, e, mais importante ainda sob meu ponto de vista, se eu digo que há pessoas de cor, logo, branco não é cor, é norma, assim como ser heterossexual. Se nada é dito, por exemplo, sobre uma personagem, certamente ela é branca e hetero. Mas acredito que é válido em alguns casos usar o termo sem que ele seja ofensivo em si mesmo. Eu prefiro dizer que sou pessoa "de cor", e ter cor é legal, do que "parda", porque "papel pardo" era aquela coisa feia que minha mãe usava para encapar meus livros e cobrir as belas cores das capas no tempo de escola. Estamos entendidos sobre o termo? Assim espero.
[2] Para o aprofundamento das discussões sobre a questão das "tradições" recomendo o livro A Invenção das Tradições, de Eric Hobsbawn. Se quiser algo mais mastigado, recomendo o vídeo de Paulo Rezzutti chamado Tradições Inventadas e a ideia de continuidade. É uma boa introdução.
4 pessoas comentaram:
Nossa, que comentário legal sobre o Casamento Real e racismo. Foi um ótimo texto! Muito legal ler sobre como é necessário reinventar, fazer a manutenção da realeza, para q essa não padeça. Isso tudo me faz lembrar algo que a senhora escreve no comentário do filme "Jackie", onde Jacqueline Kennedy Onassis diz que é necessário tradição e manutenção da realeza, para que ela exista\se mantenha (ela diz algo assim no movie, eu ñ sei. Eu só sei que lendo o texto me lembrei do filme "Jackie" e o comentário q a senhora fez, pois os Kennedys foram uma espécie de realeza americana.)
Muito bacana esse seu post sobre o casamento, Valéria. Assim como você exemplificou no texto, eu sou uma das pessoas que considerei desnecessária a transmissão do casamento na rede televisiva. A princípio, não considerei um conteúdo de extrema importância para transmissão em Tv aberta e cheguei a pensar se não seria uma das muitas tentativas da rede globo de desviar nossa atenção das problemáticas politico-econômicas que rondam nosso país.
Gostei porque pude ter um outro ponto de vista.
Gostei também porque sou leiga em termo de idiomas, então não costumo ler jornais internacionais, e, como você, também considero interessante quando polêmicas como a da novela Segundo Sol chegam a conhecimento e críticas fora da nossa casinha porque escancara essa utópica - mas não impossível - "sociedade igualitária e que respeita as diferenças" que se divulga sobre nós.
Sobre o casamento, compreendo agora que pode ser realmente uma estratégia de "marketing" pra manter a boa imagem da realeza britânica. Gastar e produzir dinheiro. É isso. O capitalismo mostrando suas garras e devorando as conquistas das minorias para ganhar mais e se manter sobre todos nós.
TV e internet pra quê? E o "namorado" de uma amiga da família que quando viu o casamento na TV a desligou revoltando com o "absurdo".
Gostei muito do texto (muito obrigado pelas referências!) e fiquei surpreso com o tema sendo tratado aqui porque conheci o blog por causa dos doramas
Ótima discussão!
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