Esta semana, lembramos os cinquenta anos do assassinato de Martin Luther King, sim, o pastor batista, prêmio Nobel da Paz e uma das personagens mais importantes da luta pelos direitos civis dos negros e negras nos EUA. Embora aos olhos de alguns ele não pareça, não mais, ele era um rebelde, um insurgente, alguém que se recusou a aceitar leis injustas, mas, também, se recusou a violência. Quem conhece o ponto de partida para o movimento pelos direitos dos negros nos EUA, deve lembrar que o estopim foi o caso Rosa Parks. Em 1 Dezembro de 1955, uma secretária, negra, de 43 anos, voltava para casa depois de um dia de trabalho, recusou-se a cumprir a lei, isto é, não quis ceder seu lugar em um ônibus cheio para um homem branco. Sabe aquela história do cavalheirismo? Pois é, só vale para as mulheres de sua classe ou grupo social, as outras, normalmente, não são mulheres. A prisão de Rosa Parks detonou um boicote de 381 dias aos ônibus na cidade de Montgomery, Alabama, até que as leis segregacionistas fossem suspensas.
Resistir à leis injustas significa ter no horizonte próximo a certeza da punição. Eu refleti bastante sobre isso ao longo da semana, porque Júlia se recusou a pedir desculpas e sei que terei que ensinar para ela, ou tentar, que devemos saber se desculpar, não podemos nos deixar vencer pelo orgulho, pela teimosia, ou falta de empatia, mas há igualmente momentos em que devemos fincar pé e assumir com isso os riscos da insubordinação. Quando e como não é coisa fácil de discernir, mas sempre exige coragem e força. Comecei falando de MLK, mas o texto é sobre meninas rebeldes e começo pela precursora de Rosa Parks, a adolescente Claudette Colvin, uma garota que o movimento peles direitos civis dos negros fez questão de tentar esquecer. Pensei que tinha escrito sobre ela aqui, mas foi no meu outro blog.
"Este é meu direito constitucional!" |
Claudette Colvin tinha 15 anos, era uma militante da ala juvenil do NAACP, e estava voltando da escola. Os lugares para brancos ficaram cheios e ela e outras mulheres negras receberam ordem de levantar do motorista. Uma das mulheres adultas estava grávida e Colvin decidiu permanecer sentada, também. Ameaçada pelo motorista, ela retrucou que tinha pago a passagem e que era inconstitucional obrigá-la a levantar. Ela foi presa e foi a primeira mulher em Montgomery a resistir às leis segregacionistas em ônibus, nove meses antes de Parks, mas por ser uma menina, que poderia ser taxada de "rebelde", não foi considerada como um símbolo adequado ao movimento de direitos civis.
Na verdade, e isso não diminui Rosa Parks, mas mostra o quanto uma imagem mais conservadora, se presta melhor como propaganda em uma sociedade igualmente conservadora... Meninas devem obedecer, devem ter medo, devem baixar os olhos, devem confiar em algum homem que as defenda. O movimento pelos direitos civis dos negros não queria como modelo Claudette Colvin e ela foi difamada, acusada de ter engravidado solteira, de um homem casado. Ela realmente engravidou ainda na adolescência, mas bem depois do caso. Teve que se mudar e somente muito depois o seu caso voltou a ser publicizado.
A notícia no jornal. |
Difamar meninas corajosas não é algo que saiu de moda. A jovem Emma González, sobrevivente na Stoneman Douglas High School, em Parkland, Flórida. Ela foi co-fundadora, junto com outros estudantes, do movimento Never Again MSD, que defende o controle de armas nos EUA. Filha de uma cubana, com a cabeça raspada, além disso, uma garota, ela se tornou alvo de uma série de acusações por parte dos que são contra o controle de armas. Farsante, atriz contratada, é o mais básico. Um político ligado ao partido republicano a chamou de "lésbica skinhead".
Não sei nada sobre a orientação sexual de González, mas para quem xinga dessa forma, não ser hetero deveria ser crime. E há o skinhead que se remete aos grupos neonazistas, uma ofensa de fato, neste caso. Segundo li em uma matéria, seu cabelo, ou falta dele, passou a ser identificado como um símbolo de resistência, de recusa de se sentar e ficar esperando que as coisas aconteçam, como se espera que uma boa menina faça. O cabelo feminino é alvo de constante significação, atrativo sexual, adorno, fonte de orgulho, sua falta também é alvo de interpretação, doença, rebeldia, sacrifício religioso, punição. O fato é que é impossível olhar para González e não notar seu cabelo. Os conservadores se chocam e temem, ao mesmo tempo. E há o racismo, também, afinal, a moça não tem a cor correta de pele. Espero que González, que viu vários amigos serem mortos, que sabe que aquilo poderia ter sido evitado, não se deixe intimidar, mas deve ser muito difícil para alguém tão jovem passar por todas essas situações.
A vítima ousa erguer sua voz e se torna alvo dos mais vis ataques. |
Malala é celebrada no mundo inteiro e é muito fácil entender o motivo. Ela é uma rebelde, mas tem a atitude correta diante da mídia. Ela sempre aparece usando o véu (*assim o muçulmano devoto médio não se sente ofendido*), ela passa uma imagem de mártir, ela lutou por uma causa justa para a maioria das pessoas, afinal, é preciso ser muito detestável para defender na cara dura que meninas não podem estudar, Malala tem uma família estruturada, também. É quase vendida como uma nova Gandhi. Ela é uma rebelde, sem dúvida, valente, com certeza, mas muito fácil de digerir. Mas e Ahed Tamimi? Você a conhece?
A mais jovem prêmio Nobel da Paz. |
Ahed Tamimi tinha 16 anos quando deu um tapa no rosto de um soldado israelense, na porta da casa dela, em Nabi Saleh, um vilarejo localizado na Cisjordânia, em dezembro do ano passado. A mãe dela, Nariman, filmou a cena - transmitida ao vivo na internet. Elas eram todas militantes pela causa palestina e há várias fotos de Tamimi desde a infância nos protestos. Não sei se ela acredita na solução de dois Estados, ou a de um único Estado, o Palestino. Eu não saberia precisar qual é a posição de Tamimi e sua família, só sei que o que estão fazendo com ela é de uma crueldade grande demais.
Segundo a BBC, as imagens mostram três mulheres palestinas e dois soldados israelenses armados. Ahed parte para cima de um deles e o agride com empurrão, chute e tapa. Exige que eles saiam dali. Os soldados não reagem. Mãe e filha foram detidas dias depois. Ahed foi presa numa ação da força de segurança israelense na madrugada. E a mãe dela foi presa quando foi à delegacia para saber como a filha estava, e está sendo acusada de agressão e de incitar a violência. A prima Nur Tamimi é acusada de violência. No mesmo dia em que Ahed bateu no soldado, o primo dela, Mohammed, levou um tiro na cabeça. A bala que atingiu o adolescente de 15 anos era de metal, revestida de borracha, e foi disparada por um soldado israelense. Mohammed perdeu parte do crânio.
Não é essa a imagem que se espera de uma vítima, ainda mais, uma menina. |
O caso da adolescente atraiu atenção internacional. Há muitos menores palestinos presos em Israel. O que difere Tamimi é que ela é mulher, parece altiva, se recusa a se curvar, a pedir desculpa, quer ser um símbolo e sabe do potencial que tem. Ela não usa véu e ostenta uma imensa cabeleira vermelha que, bem, é um símbolo de rebeldia em si mesmo. Duvido que a imprensa islâmica explore sua imagem como poderia explorar, afinal, Tamimi parece tudo, menos a muçulmana devota, uma Malala, talvez. Ela é, acima de tudo, uma garota rebelde, não a vítima da vez.
Provavelmente nem concordo com tudo o que Tamimi defende. Eu acredito que a proposta dos dois estados deve prevalecer, mas não sei se é o que ela acredita, mas não posso deixar de vê-la como um símbolo de força, de coragem, daqueles que incomoda, porque, bem, porque a sociedade não espera e não quer que meninas briguem, lutem, façam ouvir sua voz. Elas ficam melhor como vítimas, chorando, tremendo. Tamimi merecia muito mais atenção do que tem, mas nunca a terá. Seus direitos estão sendo repetidamente desrespeitados, inclusive há acusações de assédio sexual, mas quem se importa? Ela é só uma menina que se comportou muito mal, ao se insurgir contra um abuso de autoridade.
Ilustração feita sobre uma foto de Tamimi Ahed. |
Terminando, talvez você possa estar imaginando que, bem, eu sou uma exagerada, que Tamimi está, sim, sendo tratada como merece, que a lei é justa e blá-blá-blá, mas, assim como no Brasil, a "justiça" é mais célere com alguns, ou só é aplicada para certas pessoas. O Haaretz, um jornal israelense, levantou um caso semelhante ao de Tamimi. Vamos lá! Hebron é um lugar explosivo em Israel (*mais que a média e recomendo Crônicas de Jerusalém do Guy Delisle para uma leitura quadrinesca do caso*), com vários confrontos entre os judeus dos assentamentos e os palestinos. Yifat Alkobi é uma mulher adulta judia que, em pelo menos duas ocasiões, agrediu soldados. Em uma das vezes, ela esbofeteou um deles, na outra, arranhou o rosto de um militar. Motivo? a troco de nada, ela costuma atirar pedras em palestinos. Ela é super conhecida no lugar, foi fichada, pagou multa, pegou pena de trabalho comunitário, mas nunca foi presa, ou arrastada de sua casa na calada da noite. O que a difere de Tamimi? A lei não seria a mesma? A diferença é que uma é judia, a outra uma menina palestina que não se dobrou. E, ao que parece, mesmo pegando oito meses de cadeia, sua pena saiu em 24 de março, e tendo que pagar uma multa.
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