terça-feira, 17 de abril de 2018

Parece que Li-Shang não estará no live action de Mulan e o texto não é sobre isso é sobre o Mito da Donzela Guerreira.


Eu devia estar escrevendo meu gigantesco texto sobre Orgulho & Paixão, ele está aqui aberto.  Eu devia continuar minha pesquisa sobre a quadrinista mexicana Yolanda Vargas Dulché, que eu descobri ontem e estou aqui de queixo caído.  Só que ontem anunciaram, quer dizer, o NerdAsians no Twitter estava subindo pelas paredes, porque o Li-Shang – que eu esperava ver materializado em um lindo ator asiático no live action de Mulan – não vai estar no filme.  OK.  Eu também estou muito, muito, muito brava, se for verdade. Agora, houve confirmação mesmo?  Porque eu escrevi sobre essa coisa lá atrás, em março de 2017.  Só que a galera, o The Mary Sue inclusive (*e eu vou escrever umas duas palavrinhas sobre o texto delas comparando o Prof. Bhaer e o Mr. Darcy, Ah, se vou!*), estão lamentando que o "príncipe" mais LBTQIA  (lesbian, gay, bisexual, transgender, queer/questioning, intersex, and allies) da Disney vai ser cortada.  Horror!  Horror!

Não sei, acho que cai no mesmo caso dos meninos ocidentais que curtem BL por falta de representatividade no meio dos quadrinhos, ou das meninas ocidentais que acreditam que o shounen da Jump precisa representar suas agendas feministas, quando, na verdade, o produto é pensado para garotos japoneses e meninas daquele país que curtem fazer fanzine BL com as personagens masculinas.  Pode me odiar, mas é basicamente isso.  E se a gente entende consegue se relacionar com o material, criticá-lo até, sem cair em armadilhas.

Mulan salva Li-Shang e a China.
Voltando para a relação Li-Shang e Ping/Mulan, e eu vi umas cinco ou seis vezes o desenho nos últimos meses por causa de Júlia, eu percebo como um reforço da heteronormatividade.  Aliás, eu conheço trocentos pares semelhantes, já que o molde é o mesmo, o mito da Donzela Guerreira.  Explicando. Temos uma moça que assume uma identidade masculina.  Ela esconde tudo o que pode denunciá-la em seu corpo.  Corta os cabelos, amarra os seios, usa roupas mais largas, ou está sempre vestida (*a cena do banho coletivo, que existe em Mulan, é recorrente*).  Ela é valente, ela é destra nas armas, ou em alguma arte que seja considerada masculina.  E eis que há o cara mais bonitão – e normalmente menos babaca que a média – do entorno da mola que estabelece uma relação próxima com essa mulher que esconde sua identidade.  

No início, o sujeito que, normalmente, é mais velho (*ou mais alto, ou mais forte, ou mais experiente*), desenvolve uma relação fraternal em relação à heroína que ele acha que é um rapaz.  É como se fosse seu irmão caçula.  Daí, caraminholinhas (*um esbarrão aqui, um olhar ali, um toque de mãos que a moça retira rápido*) começam a deixar o sujeito nervoso.  Ele nunca olhou para homem algum.  O que é isso?  O que papai iria pensar?  E os coleguinhas?  Em certos casos, há até outras mulheres, ou uma que ele acredita amar.  Só que o diabinho fica atentando.  Ele descobre a verdade.  Temos a explosão, ele fica furioso, a moça precisa ser punida, afinal, ela usurpou o lugar masculino, ela o fez pensar "bobagens".  Só que, ao mesmo tempo, vem o alívio.  O moço não é gay.  Sua natureza não tinha se enganado.  Era uma mulher o tempo inteiro.  Seu corpo e seu coração já sabiam.  Viva!!!!!!  E temos o selo de heteronormatividade e uma história bonita e/ou trágica nas mãos.

Tony Ramos e Bruna Lombardi na versão da
Globo de Grande Sertão Veredas.
Mulan-Li-Shang (Mulan), Riobaldo-Diadorim (Grande Sertão: Veredas), Avigdor-Yentl (Yentl), Filipe-Doralice (Cordel Encantado), Drue-Connaught (To Touch the Sun) e posso engrossar a lista com outros exemplos da literatura, do cinema, da animação etc.  Toda a tensão homoerótica se evapora quando descobrimos a verdade.  Claro, que ela pode se sustentar por mais tempo se não a sabemos, mas o mito da Donzela Guerreira sempre se conclui com a descoberta.  No modo tradicional desse tipo de história, a moça precisa morrer, ou, pelo menos, seu "eu" masculino tem que desaparecer.  Pensem em A Princesa e o Cavaleiro (リボンの騎士).  

Mulan, o desenho da Disney, não a lenda, rompe com isso, porque sua identidade é revelada bem antes do final da película e é como mulher que a jovem se torna heroína da China. Só que, tal e qual na lenda (*que tem várias versões*), ela rejeita um cargo de ministro do rei e volta para casa levando as insígnias de sua vitória para seu pai, razão de seu sacrifício.  Não vou ser má, quer dizer, vou, sim, mas apesar de Mulan, no desenho, enfrentar o maior vilão de todos, o patriarcado, ela volta para casa e o confirma.  Mas não é resenha de Mulan, certo?


No mangá, Oscar lamenta não ter nascido homem
e poder amar Rosalie.  Isso é queer o suficiente para vocês?
E EU AMO ESSE TIPO DE HISTÓRIA, mas da parte do moço não consigo ver nada de queer, não, o centro de toda a questão é a mulher travestida, a protagonista.  Talvez, eu seja velha.  Talvez, eu seja hetero demais.  De resto, A Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら), que a JBC irá lançar em breve, não é o mito da donzela guerreira porque todos (*menos Fersen, ele é meio lento*) sabem que Oscar é uma mulher desde o início.  Ela é uma mulher fazendo de forma competente o trabalho de um homem.  Ela é uma mulher andrógina que faz outras mulheres suspirarem por ela (*isso, sim, é queer*).  Claro, que assim como Sílvio Santos coloca as filhas para fazerem e acontecerem no SBT, ela só conseguiu estar ali, em primeiro lugar, porque papai conseguiu que o rei a nomeasse para o posto de capitão da guarda real, mas ela faz justiça ao espaço que ocupa e vai além do que o pai esperava dela, inclusive rompendo com sua tutela e com sua classe social.  E Oscar não morreu por ter sua identidade revelada, nem abdicou de sua vocação militar (*o anime torce as coisas*).  

Outro exemplo de subversão do modelo, ainda que mais bobinho, é HanaKimi (花ざかりの君たちへ/Hanazakari no Kimitachi e).  Sano descobre desde o primeiro dia que Mizuki é uma garota se passando por garoto em uma escola masculina.  Ninguém sabe, ninguém pode saber, ele precisa proteger o segredo dela e assim o faz, sacrificando durante boa parte da série o seu desejo pela moça. E a garota fica pisando em ovos, porque ela não sabe que seu companheiro de alojamento no internato sabe de tudo o TEMPO TODO.   Heteronormativo do mesmo jeito, mas é uma história legal.  E, detalhe, para quem não conhece HanaKimi, a autora fez um final de qualquer jeito e, por pressão dos fãs, teve que produzir um segundo último capítulo.  Caso raro, raríssimo.
Tensão sexual aos montes em Hanakimi.
Terminando, desde março de 2017, está rolando essa história de que não teremos Li-Shang, nem músicas, no live action de Mulan, o que me faz crer que esse longa não vai me agradar.  Mas não acho adequado que se comece a projetar que isso é uma perseguição às personagens gays, ou bissexuais, porque, bem, minha percepção de Mulan é que se trata, de novo, do Mito da Donzela Guerreira. Se há subversão, ela reside na personagem feminina, ela é a protagonista e não podemos esquecer.  A personagem masculina, seu interesse romântico, só está lá para ter sua natureza heterossexual confirmada e reiterada no final.  

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