Quinta-feira assisti, finalmente, ao filme Maria Madalena. Primeira produção a tratar da segunda mulher mais importante do Novo Testamento (*a primeira é Maria, Mãe de Jesus, claro*) e que recentemente se tornou a mais controversa figura dos primórdios do Cristianismo. Queria escrever que assisti a um grande filme, que o diretor de Lion, Garth Davis, entregou outro filme excepcional, carregado de sentimento, no entanto, o que eu assisti foi uma película monótona boa parte do tempo e que não despertou em mim as emoções fortes que eu imaginava ter em um filme sobre Maria Madalena. Não é ruim, tampouco é bom, evita todas as polêmicas possíveis, e como diz a própria Bíblia “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.” (Apocalipse 3:16) O que eu quero dizer é que dificilmente este filme será lembrado. Dificilmente e este é o preço que se paga pela timidez, ou pela covardia.
Maria Madalena começa 33 E.C., último ano da missão de Jesus Cristo na Terra, na vila de Magdala, e acompanha o dia-a-dia monótono da personagem título (Rooney Mara), uma mulher solteira, já está passando da idade de casar, trabalhando como pescadora junto com outros membros de sua família e que sofre a pressão do pai (Tchéky Karyo) e, principalmente, do irmão mais velho (Denis Ménochet), para contrair matrimônio. Ela resiste, sente um vazio espiritual enorme, e é acusada pelo irmão de trazer vergonha para a família e estar possuída por demônios.
Um dia, um profeta chamado Jesus (Joaquin Phoenix) passa por Magdala. A jovem decide segui-lo, mesmo contra a vontade de sua família, e é aceita no grupo dos apóstolos. Sua presença causa apreensão em Pedro (Chiwetel Ejiofor) e recebe boa acolhida de Judas (Tahar Rahim), que acredita que logo virá o reinado do Messias. A partir daí, acompanhamos os últimos meses de vida de Jesus, a crescente confiança que ele deposita em Maria Madalena, os ciúmes de Pedro e os primórdios da Igreja Cristã.
Chamada para ser pescadora de mulheres. |
Reitero que não vi nada de novo ou excepcional no filme sobre Maria Madalena. Nada que não tivesse lido em livros acadêmicos, ou matérias de revistas ou jornais. Pouca coisa se inventou de fato para além das fontes bíblicas, recorreu-se pouco aos apócrifos gnósticos, à tradição, ou mesmo à imaginação. Aviso logo de saída que esta resenha é escrita por uma historiadora feminista que, apesar de sua formação cristã e também por causa dela, considera todas as personagens do filme como uma dupla construção discursiva.
Ela queria uma experiência religiosa mais profunda, que as práticas tradicionais não ofereciam. |
Quem temia que este Maria Madalena fosse uma abordagem feminista da personagem, esqueça, salvo se o simples fato de colocar uma mulher seguindo Cristo como apóstolo, algo que a própria Bíblia apresenta, é muito feminista para você. Se você espera uma película com alto potencial explosivo como o excelente A Última Tentação de Cristo, esqueça também, não há absolutamente nada de subversivo de verdade neste filme, muito menos de erótico na relação de Jesus com Maria. Nada. Fiquei feliz de ver uma relação genuína entre mestre e discípula e, não, aquela coisa clichê de homem e mulher centrais em um filme/livro/whatever precisam ter um envolvimento amoroso. Agora, o que o filme faz muito bem é retirar emoção de acontecimentos que eu transformaria em momentos de catarse, se eu fosse a responsável pelo projeto.
Jesus existiu? Não existiu? Dada sua importância histórica, isso me parece irrelevante. |
Seria uma oportunidade muito boa de mostrar que as mulheres tinham papel importante na vida de Jesus, mesmo que Maria Madalena tenha certa proeminência, que, no caso do filme, já está dada no título. Também sabemos que Madalena não era a única mulher que seguia com o grupo, o Evangelho de Lucas fala das mulheres que o acompanhavam e sustentavam (Lucas 8:1-3), ou seja, Jesus não tinha recursos próprios, algo que outras passagens pontuam e não recusava que mulheres de posses o ajudassem. Só que isso continua subversivo demais para o cinema. No caso desse filme, se economizou até nos apóstolos, nem sequer temos os doze, imagina colocar mais mulheres com nomes e falas...
Judas era o mais devoto entre os apóstolos no filme. |
Aos olhos do irmão, Madalena também parece ser mais devota do que seria decente para uma mulher. Provavelmente, os roteiristas foram buscar as bases para essa parte em certos ramos do Judaísmo Ortodoxo, que isentam as mulheres de várias obrigações que seriam dos homens, mas, ao fazê-lo, na verdade, as proíbem de desempenhar uma série de funções. Em alguns casos, até ouvir a voz de uma mulher, seu canto ou oração pode ser considerado religiosamente inadequado. De qualquer forma, não pensem que Madalena é uma Yentl, uma mulher que questiona ativamente suas limitações, ela só quer o direito de viver de forma devota, aparentemente em celibato, de poder orar em voz alta sem ser repreendida ou tomada por endemoninhada.
Domingo de Ramos. |
A Maria Madalena que acompanha Jesus e os apóstolos é silenciosa e discreta. Ela não eleva a voz, ela não entra em contendas teológicas, ela se choca quando vê os apóstolos discutindo entre si como se fossem soldados,ainda que o filme não discuta ativamente a política da época, ou a possível ligação de alguns discípulos de Jesus com o grupo dos zelotes, militantes que lutavam para expulsar os romanos da região. Falando nos apóstolos, já pontuei que não temos nem os doze canônicos aparecem no filme. Dos que se fazem presentes, destacam-se Pedro e Judas, dois outros que tem nomes são Mateus e Felipe. Acho que André foi citado em uma cena. Os outros sequer tem falas. Quando vi Judas a primeira vez, pensei que fosse João ou Tiago. Esses dois famosos apóstolos não são sequer citados. Será que não havia recurso, ou espaço na tela, para colocarem os doze mais Madalena?
Pedro queria uma revolução terrena, depois, passa a se preocupar com o destino do grupo. |
O filme também não investe na premissa, que é particularmente atraente para alguns, de que Madalena foi esposa, ou amante, de Cristo. Esta ideia é alimentada principalmente pelo evangelho gnóstico de Filipe, que foi encontrado em Nag Hammadi, no Egito, junto com vários outros fragmentos, ou livros, a maioria tardios, século III, que tinham sido escondidos. Ainda assim, cabe interpretação. Por exemplo, o fato de Jesus beijar Madalena nada quer dizer, porque o hábito é descrito no Novo Testamento e, mais tarde, gente como Tertuliano (*se bem me lembro, mas não vou atrás do livro do Peter Brown agora*) condena o fato, por razões de decência, de que homens beijassem mulheres e vice-versa. Como o Reino está próximo, ou assim criam os cristãos dos primeiros séculos, muita gente deveria estar se lixando para certas regras do cotidiano. Daí, vocês encontrarem textos do Novo Testamento – alguns atribuídos à Paulo – reforçando convenções sociais como uma forma de impedir que a comunidade de cristã fosse mal vista.
Mulheres trabalhavam e trabalham duro, mas seu trabalho é, muitas vezes, ignorado. |
Voltemos ao filme, nele transparece o ciúme de Pedro, ele se sente ameaçado por essa relação mais próxima entre Maria e Jesus, que parece desequilibrar as hierarquias dentro do grupo. Pedro exercia uma função de liderança e, ainda que não clame para si este lugar, Maria Madalena goza de uma intimidade de espírito, por assim dizer, com o Messias que os homens não têm. Ele não queria levá-la e alega decoro, porém, o Pedro do filme não me pareceu particularmente machista, ou misógino, era alguém que temia perder o poder que cria possuir.
A relação muito próxima com o mestre faz com que Pedro tenhas ciúmes. |
O fato é que os apóstolos não creram e Pedro tenta calá-la. O filme não mostra os apóstolos se encontrando com Jesus, mas aponta para o esforço inicial de Pedro de organizar uma igreja. É como se a igreja que Pedro almejasse, não precisasse do Cristo ressuscitado para existir, ou não tivesse como lidar com ele. Como o filme é um tanto fragmentado, já tínhamos quase umas duas horas de projeção, não se volta ao assunto.
Judas se frustra. Maria fortalece sua fé. |
O que eu quero dizer é que enquanto Rooney Mara estava linda e parecendo uma asceta; Chiwetel Ejiofor parecia querer sempre passar uma imagem de dignidade e liderança; o Jesus de Joaquin Phoenix parecia oscilar entre o meio chapado e meio aterrorizado; o Judas de Tahar Rahim parecia cheio de vida, de felicidade, até que termina fazendo tudo errado, ou certo, afinal, Jesus deveria morrer na cruz. E se em um filme sobre Maria Madalena, eu sou obrigada a dizer que gostei mais de Judas, efetivamente, o filme não me atingiu como deveria. Só fiquei consolada de não estar só nesse sentimento.
Não se enganem com quem insinua que existe romance entre Jesus e Maria. |
Caminhando para o fim, Maria Madalena cumpre a Bechdel Rule. Há várias mulheres com nomes e falas. No início, temos as cunhadas de Madalena, depois, as mulheres com as quais interage durante a pregação de Cristo. Essas mulheres falam mais de si, de seus problemas, mesmo que os homens estejam envolvidos. E há a outra Maria, a mãe de Jesus (Irit Sheleg), ou, pelo menos aos meus olhos, a mulher mais importante do Novo Testamento. Madalena conversa com a Maria quando ela se junta ao grupo em Jerusalém. Elas conversam sobre o Messias, claro, Maria fala da infância do filho e de seus medos (*apócrifos como referência*), mas fala dela própria, de sua missão, e de Madalena. Falando em Maria, mãe de Jesus, apesar dos tons pobres do figurino, algo bem coerente, aliás, mantiveram o azul – cor cara, cor difícil, cor de fixação complicada – no seu manto. Mais uma tentativa de reforçar e, não, questionar tradições em um filme que é tudo, menos ousado.
Maria, mãe de Jesus. |
A meu ver foi um filme bem chapa branca, evitando, ou tentando não desagradar grupo algum. Não emocionou, não tocou, não marcou, querem um filme religioso de impacto, vejam Silêncio, que é do ano passado. Espero que alguém decida falar de Maria Madalena novamente, mas com mais criatividade, com mais coragem, afinal, aquela que foi reconhecida como “apóstola dos apóstolos” merece muito mais destaque. Mérito do filme é romper com a história da Madalena prostituta e não embarcar na narrativa da Madalena-esposa, mas isso ainda é muito pouco.
1 pessoas comentaram:
Estou curiosa quanto ao filme porque também sou historiadora, feminista, e que estuda o Catarismo, que tinha restrições as mulheres, mas que quando uma delas resolvia se juntar a religião (chamo de religião), e levar uma vida austera, podia pregar, não era uma freira, mas estava em pé de igualdade com os outro pregadores do Catarismo, então um filme sobre uma das mulheres mais controversas do cristianismo tem um "bip" logo a minha cabeça.
Infelizmente as fontes sobre as mulheres da época são escassas, tenho alguns livros, incluso O Zelota, mas esse foca mais no masculino, que falam das mulheres e a importância delas na comunidade judaica arcaica. E tenho minhas crenças, que procuro não deixar interferir porque caso contrário acho que jamais me deixariam entrar no Vaticano! Muito bom seu comentário sobre o filme, irei assistir o mais rápido possível!
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