Sexta-feira, saí de uma consulta e fui assistir "Eu, Tonya" (I, Tonya), filme sobre a vida da patinadora norte-americana Tonya Harding da infância até que foi banida do esporte. Estava na dúvida entre O Insulto, primeiro filme libanês indicado ao Oscar, e o filme sobre a patinadora. Os dois começavam mais ou menos no mesmo horário. Enfim, acabei dando preferência para a produção que falava de uma mulher, ou mais de uma, se pararmos para pensar que a produção foi indicada para o Oscar de Melhor Atriz (Margot Robbie) e de Atriz Coadjuvante (Allison Janney), levando este último com justiça.
O que me fez ver "Eu, Tonya" foi a resenha que a Lola fez para o seu blog, tinham tentado me convencer antes, mas em vão, ela puxou as cordinhas certas, por assim dizer. O filme é muito bom, tem ótimas interpretações, mas, como eu suspeitava, apesar a ironia e do humor negro que o permeia, ele tenta nos fazer ter simpatia pela protagonista. Suas virtudes com patinadora (*ela era uma das melhores MESMO*) são ressaltadas, sua vida foi muito dura, ela pertence aquela parcela da população americana que costumam chamar de “white trash” (*lixo branco*) e os traços complicados de seu caráter são apresentados como se fossem fundamentais para que ela tenha se tornado o que se tornou, uma das melhores patinadoras artísticas de todos os tempos. Não é um filme maniqueísta, não é isso que eu estou falando, mas ele, na sua dubiedade, tem lado, o de Tonya.
Mamãezinha querida. Ela nega alguns dos incidentes. |
Vou resumir o filme rapidamente, espero não produzir uma resenha muito longa. "Eu, Tonya" é um mockumentary, isto é, um falso documentário em tom de humor (*negro*) e ironia que mistura entrevistas com os atores caracterizados e partes dos acontecimentos que eles e elas estão narrando. O filme brinca com o conceito de verdade o tempo inteiro. Começamos com Tonya aos três anos de idade sendo levada por sua mãe, LaVorna, para o ringue de patinação e apresentada para aquela que seria sua treinadora por quase toda a carreira, Diane Rawlinson (Julianne Nicholson).
Apesar da recusa inicial, Harding era muito jovem, ela acaba ficando e vence seu primeiro campeonato aos quatro anos, apesar de competir com meninas com o dobro de sua idade. A partir daí, temos a rotina de abusos sofridos por Tonya, pois sua mãe, uma garçonete que investe tudo o que ganha na filha, parece acreditar que torturando e humilhando a menina, conseguirá fazer dela uma campeã. Ela precisa ser dura, competitiva, encarar cada uma das outras patinadoras como inimigas. É isso, ou será punida. O adestramento funciona.
A menina Mckenna Grace faz um grande trabalho como a jovem Tonya. |
O pai de Tonya, o único na família que era gentil com ela, vai embora e ela fica à mercê de sua mãe. É obrigada a abandonar a escola para se dedicar exclusivamente ao esporte, mas, apesar de seu talento, é vista como caipira e grosseira (*redneck*), cafona, pouco refinada para um esporte no qual as meninas precisam ser princesas. Aos 15 anos, ela conhece aquele que será seu primeiro marido, Jeff Gillooly (Sebastian Stan), como não suporta a rotina de abusos da mãe, termina indo morar com o sujeito, ele, também, um abusador. Mas o que Tonya conhecia além da violência? Quem ama, pune. E a coisa vira uma rotina.
A carreira de Tonya avança, mas seu talento não é reconhecido pelos juízes, ou assim o filme quer que acreditemos. Eles preferem, na opinião da patinadora, atletas menos competentes, simplesmente, porque elas reproduzem os papéis de gênero desejados. Só que Tonya é a única patinadora norte-americana a conseguir fazer um movimento dificílimo, o triple Axel. Insatisfeita com sua treinadora, que seria castradora demais, Tonya abandona Rawulinson, mas, ainda assim, não consegue o pódio.
Not ladylike enough. |
Que resumo longo este. Ainda bem que o que comentei é História, basicamente, qualquer pesquisa conduzirá você ao atentado contra Nancy Kerrigan, que era uma das melhores patinadoras do mundo. Na época do atentado, eu tinha dezessete anos, não havia internet, ou redes sociais, nos alimentávamos das notícias da TV e dos jornais de forma passiva, por assim dizer. E como patinação não é esporte importante, aqui, no Brasil, o que interessava era o escândalo mesmo. A minha imagem de Tonya Harding foi moldada aí. Uma patinadora competente, que tinha sua vaga olímpica, mas que participou de uma conspiração contra a outra principal estrela da patinação norte-americana. O filme limpa Harding de qualquer participação no planejamento da ação, uma marretada no joelho de Kerrigan.
Olha, não sei como alguém pode ser tão idiota... quer dizer, deve estar cheio de gente assim por aí. |
O filme mostra muito bem a forma discriminatória como os juízes, que tem muito poder, avaliam as atletas. Já tinha me questionado sobre isso antes pensando mais em países. Uma brasileira precisará ser muito boa para ser notada em um esporte como ginástica artística, por exemplo, os erros de uma russa, ucraniana, americana será menos fatal, salvo nos embates entre elas mesmas. Antes de ver o filme, na época das Olimpíadas de Inverno, tinha lido sobre a patinadora negra francesa Surya Bonaly. Ela era muscular, explosiva, gostava de fazer acrobacias. Ela foi o único patinador - homem ou mulher - a fazer um backflip e pousar em um pé só em uma olimpíada. A manobra foi proibida. Bonaly acreditava que era discriminada por não parecer uma princesinha, mas não acreditava (*assisti uma entrevista dela*) ter sofrido racismo. Eu não apostaria nisso...
Kerrigan merecia mais atenção. Mesmo vítima, ela foi perseguida pela imprensa. |
Quando Tonya, mais tarde, volta para o esporte pensando nas Olimpíadas de 1994, ela aceita ser moldada pela treinadora. Ela se submete a uma rotina que tenta transformar sua imagem: nada de heavy metal, esmaltes de cores berrantes, é preciso emagrecer um pouco (*não se trata somente de voltar à forma, mas de afinar a silhueta*), fazer balé. Lembrei de Yuri!!! On ICE (ユーリ!!! on ICE) aqui. Só que Tonya não era uma princesa, seu treinamento físico – e nesse momento a treinadora vira para a audiência e conversa conosco – era duríssimo, ao estilo Ace Wo Nerae (エースをねらえ!). Isso era mais ao estilo Tonya do que o polimento ao qual ela foi submetida. Só que ainda estava valendo a frase que praticamente abre o filme e é da treinadora "Assim como as pessoas ou amam a América ou não são grandes fãs. Tonya era totalmente americana ". Daí, ser tão fácil amá-la, ou odiá-la.
Tonya realmente não sabia? Para a justiça, ela não ajudou a planejar o atentado, mas não o denunciou. |
Uma criança que é agredida sempre por pessoas que deveriam amá-la e protege-la não crescerá acreditando que amar é agredir? A relação abusiva entre Tonya e seu marido é construída dessa forma. Só que a patinadora aprendeu a ser violenta, também. Ela apanha, aprendeu que quem ama pune, mas reage, porque aprendeu, também, que se não fosse agressiva não conseguiria se tornar a melhor do mundo. Mas é uma sociedade patriarcal, de hierarquias. A mãe domina a filha, que aprende que isso é amor. A esposa, outrora a filha constrangida, acredita que o marido bate nela por amá-la. Ao mesmo tempo, Tonya recorre à desculpa “Não foi minha culpa!”. Assim, talvez, não apanhasse, não fosse punida.
Um casaco de pele não torna você uma dama. |
De qualquer forma, Tonya – que conta a sua verdade, repito – não é flor que se cheire. De qualquer forma, a maior punição de todas foi a dela. O incidente com Kerrigan, que a justiça apontou que foi planejada pelo guarda-costas, Shawn Eckhardt (Paul Walter Hauser), e pelo marido da patinadora, rendeu para a patinadora o banimento do esporte. Três anos de prisão condicional, multa e a perda de sua carreira. Se a cena do tribunal corresponde ao que foi dito realmente, Tonya pediu para ser presa e que a deixassem continuar patinando. Ela perdeu tudo, por assim dizer.
Que dupla de atrizes! Espero que Margot Robbie emplaque outro grande papel. |
Outro ponto positivo do filme são as atuações. As duas atrizes principais foram indicadas, uma levou o Oscar, mas todas as atuações são convincentes. E fique para o início dos créditos, são mostrados os rostos das pessoas reais por trás do filme. Allison Janney virou LaVorna e Shawn Eckhardt, que teve a ideia do atentado contra Kerrigan, realmente acreditava que era um superagente... Difícil acreditar que um cara assim exista. Margot Robbie aprendeu a patinar para o filme e, pelo que disse a Lola, tiveram que usar de truques de efeitos especiais para reproduzir o triple axel, porque não conseguiram uma patinadora que conseguisse fazê-lo par ao filme. Agora, há uma cena em que ficou evidente que era uma dublê, assim, tão evidente que me lembrou a dublê musculosa que substituía a Sarah Michelle Gellar em Buffy. De resto, valeu. Fora esse detalhe, as cenas de patinação ficaram muito boas mesmo.
Tonya mais velha dando o seu depoimento. |
6 pessoas comentaram:
Quando eu tinha +ou- 11 anos assisti essa Olimpíada de AlbertVille e foi a partir daí que comecei a me interessar por patinação artística, achava lindo. Acho foi transmitida pela extinta rede Manchete. E não lembro o ano, mas lembro bem desse escândalo envolvendo as duas patinadoras e lembro da Tonya como a ''vilãzinha''! Mas era criança e não entendia muito sobre isso. Só que nunca esqueci essa história pq virei fã desse esporte. E amei saber que fizeram um filme sobre esse caso e com a Margot Robbie, atriz que eu amo!
Foi a Manchete quem transmitiu, sim. Foi a primeira vez que assisti uma Olimpíada de Inverno e foi lindo.
Muito boa a resenha, querida Valéria! Fiquei curiosa com algumas coisas: primeiro, por que o backflip foi proibido? Por ser muito perigoso? (tudo nesse esporte parece muito perigoso!).
E em qual cena do filme fica evidente ser uma dublê? Eu vi o filme duas vezes e não reparei!
Ah, vc não viu a série The Office? Então, "mockumentaries" estão muito na moda... Eu gosto!
Ontem vi MOLLY BLOOM e gostei bastante. O começo me lembrou I TONYA. E tem uma hora que a personagem pergunta: que atleta olímpica não tem um pai super exigente e ditador? Dureza, né?
Lola, bem no final do filme, a Tonya dá um giro e fica girando por muito tempo. Ali, ela ficou bem diferente. Era uma dublê. Mas eu não tenho como rever agora, só se baixasse o filme.
O backflip foi proibido por ser perigoso demais, mas concordo, tudo me parece perigoso, também. E lembro da reclamação da patinadora francesa, que lhe diziam que patinação não era um esporte acrobático, enfim...
Nunca vi The Office, não. Só cenas soltas.
Outra coisa interessante para mim é que a história dela e o filme trata desse assunto de mãe abusiva, apesar do contexto lá dos EUA ser diferente do Brasil na maioria das vezes.
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