Não tenho Canal Viva, na verdade, não tenho TV por assinatura, nem Netflix, inclusive, mas estava aguardando ansiosamente pela reestreia de Sinhá Moça, uma das novelas que mais gostei de assistir quando criança. A novela foi exibida entre 28 de abril a 15 de novembro de 1986, depois, foi distribuída para vários países com grande sucesso. Assisti, também, o remake de 2006, mas ele nunca me cativou, talvez por manter os problemas da versão original, aquela ênfase na passividade dos negros diante da escravidão e sua dependência dos brancos bonzinhos, e não ter o encanto do original. Sim, neste caso, pesa muito a nostalgia, muito mesmo...
Para quem não conhece o básico da história, estamos no finalzinho do Império (1822-1889), ainda nos tempos da escravidão (1988) - que o Brasil foi o último a abolir nas Américas - e a mocinha Sinhá Moça (Lucélia Santos) está voltando para casa, em Araruna, no Vale do Paraíba, rincão da elite escravista conservadora da época. Filha única do Barão de Araruna (Rubens de Falco), seu pai lamenta não ter um filho homem para herdar suas propriedades (*título de nobreza no Brasil imperial não era herdado*). Ela encontra o advogado Rodolfo (Marcos Paulo) no trem, ela, aliás, viaja sozinha, um escândalo! Ambos se desentendem.
Maquiagem total anos 1980. |
O rapaz é filho do advogado do Barão (Mauro Mendonça) e finge ser tão conservador quanto o pai da moça que passa a vê-lo como um genro em potencial, para o desespero da filha. Só que o moço, na verdade, é o Senhor do Quilombo, uma espécia de Zorro tupiniquim que sai durante a noite abrindo senzalas. Sinhá Moça acredita que o Senhor do Quilombo é o recém-chegado jornalista Dimas (Raymundo de Souza), na verdade, Rafael, um menino que foi companheiro de infância da moça e terminou vendido pelo Barão. Mais tarde, saberemos que Dimas/Rafael é filho do Barão.
Há várias outras subtramas, como a de Ana do Véu (Patrícia Pilar), prometida à Rodolfo e obrigada a viver sem mostrar o rosto até o casamento (*como a Santinha de Paraíso, mas ela iria para o convento*). Há a tensão sexual entre Ricardo (Daniel Dantas), irmão caçula de Rodolfo e visto por muita gente como um cabeça de vento, e a Baronesa (Elaine Cristina), apesar do moço flertar e casar com Ana do Véu. O assédio do Barão à Adelaide (Solange Couto), dama de companhia da protagonista e que termina se casando com um branco (Tato Gabus Mendes) para o desgosto do pai do rapaz. E temos o drama de Bá (Chica Xavier), que foi ama de leite da heroína e teve seu filho vendido pelo Barão. O destino do rapaz, sua identidade, é um dos segredos guardados pelo vilão.
Rubens de Falco e Lucélia Santos revivendo a dobradinha de Escrava Isaura. |
A novela contou com um grande elenco com participações especiais de Ruth de Souza, que tinha participado da versão cinematográfica da história, além de Grande Othelo, Jacira Sampaio, a eterna Tia Anastácia, só para citar alguns. Rubens de Falco e Lucélia Santos, que ficaram marcados por Escrava Isaura, foram obrigatoriamente escalados pela emissora, a Globo, Benedito Ruy Barbosa preferia a jovem Giulia Gam para o papel. Engraçado é que os dois seriam escalados de novo em uma novela de época para reviver a mística de Escrava Isaura no SBT, em Sangue do Meu Sangue.
Apesar desse ponto de atrito, a escalação da heroína, a novela foi um sucesso e um trabalho dos mais relevantes de Benedito Ruy Barbosa e sua filha Edmara, aos meus olhos, pelo menos. Primeiro, porque o romance de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, publicado em 1950, é fraco. Eu li na época do remake da novela, não faltam elementos somente, ele está entre mediano e ruim. Mesmo sabendo que o autor bebeu no filme da Vera Cruz de 1953, tirou ideias direto de lá, um filme dura na média 1h40, uma novela passa dos 150 capítulos. Segundo, porque a trama central e as subtramas se amarravam direitinho, se complementavam. Assim, é triste olhar a pobreza de um Deus Salve o Rei e não lembrar que é possível fazer melhor, sendo novela de época, contemporânea, rural, urbana, ou de fantasia. Enfim, Não me lembro, também, de barrigas, mas é a memória de quem tinha 10 anos. e a trilha sonora é ótima, preciso ressaltar.
Cartaz do filme de 1953. |
De resto, ainda que seja uma história bem contada, com personagens cativantes, grande elenco, ela é cheia das marcas de Benedito Ruy Barbosa. Temos os brancos salvadores. Aliás, é raro uma novela, qualquer novela, ir até a farta historiografia nacional e ver o papel de negros e negras no processo de fim da escravidão. É o quilombo, ou nada. Não sei até quando as novelas nacionais continuarão reforçando a ficção de que os brancos foram responsáveis pela abolição - em todos os seus aspectos - enquanto os negros e negras esperavam passivamente pela ação de seus salvadores. Acho que somente Pacto de Sangue tentou olhar de forma mais ampla a questão, mas os protagonistas eram brancos e o folhetim meio que foi esquecido.
Para piorar, a condenação da revolta dos escravos, porque o Senhor do Quilombo é todo "paz e amor", também funciona como uma crítica aos movimentos populares (*Lembram do senador de O Rei do Gado*). Gente humilde precisa de guias, não pode ser deixada a sua própria vontade. E a morte de Justino (Antônio Pompeo) passa esta mensagem. O autor também gosta dessas coisas, recrimina a passividade e a cumplicidade (*vide o Capitão do Mato do brilhante Tony Tornado*) dos subalternos, mas oferece como única alternativa racional que sejam guiados por salvadores bancos, cultos e ricos. E, sim, temos a redenção do vilão fazendeiro, como é de praxe nas obras do autor. Duvida? Pegue a mais recente, Velho Chico.
Rodolfo e a protagonista escondidos no Quilombo. |
O Barão tinha seus defeitos, mas era um visionário, queria libertar os escravos paulatinamente (*Sabe "Abertura, lenta, gradual e segura"*), porque já tinha encomendado uns imigrantes brancos... os jovens é que tinham pressa! Faltava-lhes visão política. Daí, você escolhe a continuação da História do Brasil, segundo Benedito Ruy Barbosa. Temos Os Imigrantes, que eu considero a melhor novela de Benedito, porque ele fica se repetindo depois, ou Terra Nostra, porque, bem, nessa obra ele simplifica Os Imigrantes e pega somente o Antônio italiano para contar sua "nova" história.
3 pessoas comentaram:
Não sabia que iriam reprisar a novela, vou ver se dou uma olhada se o horário permitir, mas aposto que deve acabar aparecendo pela internet. Não sou tão chegada na novela da Sinhá Moça, assisti a versão de 2006 e concordo com as suas criticas e apontamentos. Gostaria de saber se você chegou a assistir as novelas baseadas em Helena de Machado de Assis? Tenho interesse nessas versões antigas, já que nunca fizeram um remake, sei que existe uma da globo e uma da extinta rede Manchete, mas eu não era nascida na época e nunca assisti nenhuma reprise se é que chegaram a ser reprisadas. No máximo consegue-se encontrar vídeos curtos das novelas no youtube e algumas montagens com músicas russas, acho que a versão da Globo fez bastante sucesso na Rússia na época junto com Escrava Isaura.
Mas eu gosto que os coronéis do Benedito são complexos, a novela não passa pano para as atitudes horríveis e cruéis do Barão e mesmo assim ele é um personagem com contradições e camadas. O Bruno de o rei do gado é um homen sensível em suas contradições humanas.
Complexos, sem dúvida, mas sempre celebrados. O Barão, no fim da novela, é perdoado por todos e celebrado pela sua inteligência, ao contratar imigrantes mesmo, supostamente, sendo contra o fim da escravidão. Olha, ele celebra os patriarcas, especialmente, esses ricos e poderosos.
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