Há quem acredite que seria a sinhá nessa gravura de Debret. Escravas trabalhando não são mulheres. |
Esse post é um desabafo. Sim, ler certas coisas doem meus olhos. Enfim, quando vejo gente, especialmente mulheres, falando/escrevendo que "em outras épocas, era natural que homens fossem provedores, eles eram mais fortes, e as mulheres ficassem em casa cuidando dos filhos (*nunca falam de pari-los, porque só isso já traria imagens de dor, sujeira, medo e morte*) e da casa, porque nossas diferenças físicas impunham isso. Trabalho de mulher fora de casa era prostituição.", penso em quanto é falha a educação desse povo. Faltou aula de História? De Literatura? Faltou o quê?
Imperatriz Eugenie cercada por suas damas de companhia. (Franz Xaver Winterhalter, 1855) Todas as mulheres deveriam viver assim no século XIX. |
Há muita gente que deve achar que somente existiram sinhazinhas e sinhás, burguesas e nobres de séries britânicas, ou princesas de cinema ao longo da História da humanidade. Visitando as amigas, tomando chá, sendo cortejadas por moços bonitos, ou obrigadas a casar com velhos ou devassos, mas, ainda assim, preservadas de qualquer esforço, cheias de jóias e lindas roupas.
Leon Belly (Pintor francês, 1827-1877) - Mulheres orientais imaginadas por homens. Mas esqueça as criadas, mulheres não trabalhavam. |
No Oriente, a mulherada estava toda nos haréns. Nessas terras longínquas, nessa grande massa que reúne boa parte do nosso planetinha, a condição das mulheres sempre foi de repressão e reclusão. E isso vale do Oriente Médio (*Mundo islâmico é só opressão, vocês sabem*), até o Japão. A África? Ah, o que é esse lugar mesmo? Só selva, né? Mas as mulheres ficavam em casa do mesmo jeito. Sequer param para refletir que escravas, criadas, camponesas, mineiras, operárias passaram a existir, desde que as sociedades foram se tornando mais complexas, especializadas e desiguais. Nem estou pedindo para que lembrem das guerreiras, das gladiadoras, vamos ficar somente no trabalho pesado e braçal.
Mulheres lavrando a terra. Les Très Riches Heures du duc de Berry |
Pegue lá as iluminuras medievais, o Les Très Riches Heures du duc de Berry, que tem em todo - absolutamente todo - livro didático de História, e veja as camponesas arando o campo e em outras atividades que deveriam deixar calos nas mãos, fazer suar. Deveria ser trabalho fácil de fazer, leve... Pegue Drebret, Rugendas e outros mostrando escravas trabalhando. Esse povo parece cego. E mesmo as mulheres pobres que não trabalhavam fora do lar, acham que elas ficavam em casa fazendo o quê? Já cuidaram de uma casa (*em tempos pré-tecnológicos, ou tecnológicos*) e das necessidades de uma criança ou várias? Louça e roupa não se lavam sozinhas. Comida não se materializa sobre a mesa. Fralda suja de cocô desaparece se você piscar os olhinhos? Assim fosse. Isso é trabalho, também. Não remunerado, apropriado como dom, mas é trabalho. E não vou falar de mulheres de classe média média para cima, já falei delas antes. Se elas exploram a mão-de-obra de outras mulheres, são exploradas, também.
Rugendas, Lavadeiras do Rio de Janeiro. |
Mulheres não começaram a trabalhar no século XX. Não foi o movimento feminista que as levou para fora de casa, ainda que as feministas e socialistas tenham lutado por melhores condições de trabalho, salários iguais, licença maternidade, enfim. Mulheres brancas de classe média para cima se tornaram mais visíveis no mundo do trabalho no século XX, algumas já estavam lutando por um espaço antes, verdade, mas foi no último século que elas passaram a se organizar melhor e exigir espaços vistos como masculinos. Espaços de prestígio, de poder, de mando. Mas as mulheres não começaram a trabalhar em escritórios, nas salas de aula, nos laboratórios, na frente de computadores. Não foi o trabalho intelectual, o progresso tecnológico, que possibilitou às mulheres um espaço no mundo público e no universo do trabalho, elas estavam lá antes, mal pagas, ou não remuneradas, invisíveis. O cinema, as novelas, os livros que vêem a sociedade vista de cima podem não mostrar, mas mesmo as heroínas de Jane Austen (*que mal mostra os criados, homens ou mulheres*), não a Emma, claro, mas as dos outros livros, deveriam ter que meter a mão na massa, às vezes.
Elin Kleopatra Danielson-Gambogi (Finlândia, 1861-1919) Colheita das batatas. Deveria ser trabalho leve. Coisa de mulher. |
É lamentável ler certas coisas, porque mostra ignorância, classismo. Nem é questão de machismo estrutural, esse que contamina toda a sociedade, é algo mais. E correm para a (*falsa*) biologia, para uma suposta inferioridade física feminina. Assim, a dominação fica fácil. E resta voltar para Sojourner Truth e perguntar "Ain't I a woman?", porque certas mulheres sempre trabalharam duro e pesado, sempre. E eu tenho certeza que eu, mulher não-branca em outras épocas, ou se não tivesse estudado, teria uma carga muito maior para carregar do que os 15 quilos de Júlia por três andares de escada.
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