domingo, 24 de setembro de 2017

Comentando Bingo: O Rei das Manhãs (Brasil, 2017)


Segunda-feira assisti Bingo: O Rei das Manhãs, filme muito elogiado e que foi escolhido para concorrer a uma possível vaga na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.  Meu quarto filme brasileiro em sequência.  Livremente baseado na história de Arlindo Barreto, que interpretou o palhaço Bozo entre 1982 e 1986, o filme consegue ser bem convincente seja como biografia, ou como memória dos programas infantis dos anos 1980, e mais do que tudo é um filme muito bem narrado, tocante em alguns momentos, crítico e debochado em outros.  Mérito do elenco e do diretor, o experiente montador Daniel Rezende.

Em linhas gerais, a história é a seguinte: Augusto Mendes (Vladimir Brichta) é um ator que sonha em fazer uma grande carreira televisão brasileira. Filho de uma grande diva do teatro e da TV (Ana Lúcia Torre), divorciado e pai de Gabriel (Cauã Martins), ele trabalha fazendo pornochanchadas e inveja a ex-mulher, que é estrela da principal novela da TV Mundial (Rede Globo). Uma das promessas que faz para seu filho é que seu próximo papel será algo que o filho e seus amigos possam assistir.

Estrelato.
Um dia, quando está prestes a fazer um teste para uma das novelas de TVP (TVS/SBT), ele vê uma fila com homens vestidos de palhaço.  São os testes para um programa infantil importado dos Estados Unidos.  Ele pergunta se pode fazer o teste e termina sendo o escolhido para interpretar o palhaço Bingo.  Augusto, mesmo escolhido, tem dificuldades para encarnar o palhaço com roteiros vindos dos Estados Unidos e se vê ameaçado de perder o emprego. Decide, então, fazer um estágio com um palhaço experiente (Domingos Montagner), refinando o seu estilo.

No estúdio, Augusto mantém uma relação conturbada com Lúcia (Leandra Leal), a rígida diretora que resiste a todas as estratégias de conquista do protagonista, e faz amizade com Vasconcelos (Augusto Madeira), que vira seu parceiro de farras e o apresenta às drogas pesadas.  O sucesso faz com que Augusto se afaste do filho e mergulhe em um mundo de luxo e orgias.  No entanto, algo o atormenta, a obrigatoriedade de permanecer anônimo.  Bingo é famoso, mas Augusto não pode colher os louros desse sucesso.  Com o passar do tempo, as pressões e as drogas começam a atrapalhar a relação de Augusto com o filho e mesmo com o seu trabalho.

De pai amoroso à pai ausente.
Tenho um monte de coisas a comentar sobre Bingo, o problema é como fazer isso sem comprometer o prazer de quem decidir assisti-lo.  Então, meus comentários podem parecer aleatórios, é o risco, enfim...  Trata-se de um filme muito interessante e que consegue captar bem a atmosfera dos anos 1980, época de boa parte da minha infância, com músicas, roupas, maquiagem e seus carros com motor 4,1.  Só que o mundo de Bingo era muito diferente do meu.  As personagens são de classe média.  O telefone, peça que é mostrada como tendo revolucionado o programa do Bingo, era coisa que poucos podiam ter.  

Eu jamais pude sequer tentar ligar para qualquer programa infantil e, se tivesse telefone, seria impensável ligar para São Paulo.  Os preços eram proibitivos.  E isso me fez lembrar de algo que não entra no filme é qualquer discussão sobre economia, em uma das piores décadas para as finanças do país.  Vende-se uma versão idealizada de uma década muito difícil para a maioria dos brasileiros e brasileiras.  Mesmo desempregado, ou vivendo de bicos, Augusto não parece se preocupar com as contas a pagar, ou pensão do filho.  Depois de estourar como Bingo, menos ainda... Augusto deseja o estrelato, ser um ator reconhecido, estar fora do círculo das pornochanchadas, não precisar mostrar a bunda, como sua mãe pontua em determinado momento, mas dinheiro mesmo nunca parece ser um problema.  Fama, sim.

A revolução do telefone.
E é essa ambição que conduz a personagem.  Havia vários programas com ou de palhaços nos anos 1970-80.  Pururuca e Torresminho, Carequinha, o próprio Fofão era uma espécie de palhaço.  Nenhum deles parecia realmente preocupado em mostrar-se, eles encarnavam a personagem.  O Bingo do filme desejava ser reconhecido como Augusto Mendes, daí o anonimato ser tão pesado para ele.  A questão do anonimato também perseguia a mãe do ator e seu modelo como profissional.   A relação dos dois é muito bonita no filme. Ana Lúcia Torre interpreta a grande diva do teatro e primórdios da TV que envelhece e é esquecida, relegada a se tornar jurada de programa de calouros.  A mãe real de Arlindo Barreto era jurada do programa Flávio Cavalcanti, um dos mais importantes da TV nos anos 1970.

É o narcisismo que empurra a personagem, que lhe dá energia para lutar por um papel de palhaço, enfrentar os grandões da Mundial (Globo), a diretora, enfim.  Ele quer ser famoso, ele quer que suas ideias sejam reconhecidas e quer usufruir dos lucros.  Ao tentar aproveitar os frutos do seu trabalho, mesmo não podendo revelar que é Bingo, que Augusto mergulha em um processo destrutivo de drogas e orgias.  Vladimir Brichta consegue se mostrar muito competente em todos os momentos dos ternos aos mais destrutivos e depravados do seu palhaço.

Um homem cheio de ideias.
Falando em ternura, o filme trabalha muito bem a relação do pai com o filho.  Não é artificial, nem forçado.  Importante também frisar é que para valorizar o afeto entre pai e filho não há qualquer demonização da mãe (Tainá Müller).  Augusto a inveja, afinal, ela tem um papel de destaque na principal novela da TV Mundial, mas ela não é tratada como leviana ou uma mãe que não ama e se preocupa com o filho.  É uma boa lição para outros roteiros.  Para valorizar um dos pólos não é necessário desqualificar o outro.  E, outro detalhe, apesar de toda a ligação entre Augusto e sua mãe, a sogra não ataca a ex-nora.  Ela conhece o filho que tem, o ego gigantesco que alimentou.

Com a fama, a relação entre pai e filho se torna difícil.  Bingo é o palhaço favorito de todas as crianças, mas deixa de ter tempo para o filho.  As noitadas, as orgias, as drogas, terminam roubando o tempo que era do menino que nem tem a alegria de poder contar que é filho do principal palhaço do Brasil.  Agora, se eu tivesse que apontar uma cena desnecessária do filme, a única, aliás, é colocarem o menino conseguindo ligar para o programa do Bingo e se lamuriando no ar.  Pode ter sido um dos delírios de Augusto?  Sim, mas não parecia.  Sempre que o ator delirava por estar sob o efeito de drogas, não nos ficava dúvida do que estava ocorrendo.

O americano dono da marca ficou satisfeito
sem saber o que Augusto estava falando.
Pelo que andei lendo, Arlindo Barreto foi o segundo Bozo.  O primeiro ator a interpretar a personagem, Wandeko Pipoka, também teve problemas com drogas.  Já Arlindo, que nega ter sido demitido como a personagem do filme, acaba incomodando com seu descontrole, imagino que Luís Ricardo, outro que encarnou o Bozo e de quem me lembro bem, o substituísse em seus momentos de crise.  Aliás, falando em descontrole, foi espetacular a cena vingança contra a TV Mundial quando Bingo ficou em primeiro na audiência.  Aliás, foi preciosa a participação de Pedro Bial fazendo as vezes de Boni, o todo poderoso da Globo que chegou a fazer um presidente (*1-2*), Collor de Mello.  Augusto foi rejeitado e espezinhado na campeã de audiência e se vingou.  Agora, se ele saísse só de cuequinha vermelha (*marca da personagem*) na rua no início dos anos 1980, iria preso.

Já tentando ir para o final, li pelo menos uma crítica em relação à personagem de Leandra Leal, que é a diretora do programa, a verdadeira Lúcia era uma produtora, evangélica e muito rígida.  Enfim, a crítica que li e perdi, dizia que ela era exagerada e artificial.  Bem, os confrontos com Bingo parecem ser exagerados.  Por mais bizarros que fossem os programas infantis da época, o nível de duplo sentido e tudo mais apresentado no filme parecem excessivos, ou talvez minha memória esteja falhando.  Agora, como personagem, Lúcia é absolutamente plausível.  

O amigo que empurra augusto para o abismo.
Não havia essa coisa de evangélico não praticante nos anos 1980.  Éramos minoria e tínhamos que ter um comportamento público exemplar.  O caso de Lúcia é agravado por ela ser mulher.  Como mulher ela precisava ser ainda mais séria, como profissional de sucesso no meio de homens e crente, ela precisava ser rígida.  A forma como ela coloca Augusto no seu devido lugar, mesmo interessada por ele, acaba rendendo ótimas cenas.  Aceita sair com ele e o carrega para a igreja (*e ele toma LSD para suportar o culto sem que ela saiba*).  Se ele não se consertasse, ela não aceitaria nenhum relacionamento com ele, mas quando ele cai, ela vai lá e lhe estende a mão.  Enfim, apesar dos exageros do filme no comportamento de Bingo e de Lúcia, gostei bastante dela.

A única personagem real do filme que aparece com seu próprio nome é Gretchen, interpretada pela competente Emanuelle Araújo.  Sim, Gretchen e outros cantores e cantoras adultos frequentavam programas infantis nos anos 1980 e as apresentadoras, não raro, usavam pouca roupa e posavam para revistas masculinas.  No geral, não havia reclamações, ou elas não eram visibilizadas.  Não havia internet e, como pontuei, os evangélicos eram só uma minoria, não um grupo de pressão como hoje. E, sim, Emanuelle Araújo está muito bem, ela é uma artista muito versátil e eu descobri isso já na época de Cordel Encantado, novela da Globo.

Emanuelle Araújo é um furacão.
Bingo, apesar das várias personagens femininas com nomes, não cumpre a Bechdel Rule, eu diria.  Se alguma das mulheres conversa entre si, e não me lembro de nenhuma cena específica, é sobre Bingo.  De resto, o filme é competente em apresentar personagens femininas sólidas e até certo ponto complexas, ao mesmo tempo em que explora de forma correta a forma objetificada como as mulheres eram (*Não mais?*) tratadas na TV, nas pornochanchadas, e outras mídias.

Fechando, eu queria Bingo com mais dez minutos.  A conversão de Augusto ficou clara no filme, exigência de Arlindo Barreto em cuja vida a história é baseada, mas não foi desenvolvida com o mesmo vigor que o arco da queda, por assim dizer.  Não estou pedindo que Bingo fosse um filme religioso, mas um melhor desenvolvimento seria bem-vindo.  Fora isso, não sei se para conseguir o reconhecimento das plateias atuais, ou por desconhecimento mesmo, a igreja de Lúcia é neopentecostal.  O verdadeiro Arlindo converteu-se e tornou-se pastor da igreja batista e, bem, nos anos 1980, igrejas batistas eram tudo, menos aquilo que é mostrado no filme.  De resto, Arlindo Barreto foi o responsável, acredito eu, por abrir espaço para que palhaços pudessem atuar como evangelizadores e esteve por muitos anos à frente da Tenda da Esperança.  Seria legal terminar com isso.

Sempre em atrito com os superiores.
Bingo: O Rei das Manhãs é um filme assumidamente adulto e bem estruturado.  Talvez adulto demais em certos aspectos, o que limita o seu público (*e torna inviável que seja usado em igrejas, também, apesar da conversão da personagem*), um Bingo menos desbocado e pornográfico poderia puxar mais gente para o cinema.  Acredito que esse fator o torne menos viável para o Oscar.  Não sei se foi a melhor escolha, ainda que seja um filme excelente.  E, sim, Bingo não engana ninguém e se sai melhor que Aquarius nesse quesito.  Agora, acredito que ele não conseguirá entrar na seleção final, salvo se a estrela de Daniel Rezende, indicado previamente pela montagem de Cidade de Deus, tiver um brilho muito forte em Hollywood.

Enfim, foi a intenção dos realizadores chocar em muitos momentos e contaram com o brilho de Vladimir Brichta e a competência do resto do elenco.  É um filme triste, também, porque mostrou Domingos Montagner, morto faz um ano, como o palhaço que ensina a função para o protagonista.  Montagner começou sua carreira como palhaço e, bem, vê-lo atuando me emocionou um tanto.  Também derramei uma lágrima no fim, mesmo com a correria da conversão, a redenção de Augusto foi emocionante.  E não falo do aspecto religioso somente, mas de ter recuperado a autoestima, a dignidade, a saúde, o amor do filho.

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