sábado, 5 de agosto de 2017

Novelando: 'As pessoas confundem feminismo com femismo ou acham que nenhuma mulher pode rebater a outra': Será que é isso mesmo?


Faz tempo que não escrevo nenhum texto sobre novela, porque, no momento, não estou assistindo nenhuma.  Novo Mundo me tentou, mas algumas coisas que vi me deixaram muito irada (Ex.: Leopoldina e José Bonifácio).  Não consegui.   Só que eu leio as colunas, especialmente, a do Nilson Xavier e do Maurício Stycer do UOL, e sei que há duas produções recebendo muitos elogios no momento, por motivos diferentes, aliás, Malhação e A Força do Querer.  A primeira, parece inovar e trazer discussões interessantes, a segunda, a mais importante da Globo, conta com uma Gloria Perez inspirada que conseguiu juntar ingredientes conhecidos de forma convincente e apaixonante.  Resultado?  A Globo que vinha patinando no horário das 21h, recuperou audiência.  Mas vamos ao motivo do meu texto, a esperada surra na mulher malvada da trama e a defesa que Isis Valverde fez da cena:
Eu sou super feminista. Mas as pessoas acabam ou confundindo feminismo com femismo - essa coisa de rasgar sutiã, bater em homem - ou achando que nenhuma mulher pode rebater a outra. (...) isso não é feminismo, acolher uma pessoa que faz uma psicopata. Ela envenenou uma pessoa ao longo da novela, tentou matar outra, arma situações para outras pessoas se darem mal, não tem sentimentos pelo outro. Ela foi atrás da surra, ninguém foi atrás dela.
Primeira coisa, eu acredito que Isis seja feminista, dado que há uma ampla gama de feminismos possíveis, o que não quer dizer que ela não possa estar equivocada em algumas coisas, por exemplo, femismo não existe.  A primeira vez que ouvi, ou melhor, li, a palavra "femismo" foi no Orkut, ou seja, gíria de internet.  Normalmente, usado por gente, não raro homens, que queriam separar as boas feministas das feministas malvadas.  Sabe, você é desconstruído demais para usar "feminazi" e ficar mal na fita, então busca um termo mais palatável?  Só que o que seria "femismo" uma suposta pregação da superioridade feminina, do domínio das mulheres sobre os homens.  

Joyce acerta as contas com Irene com a ajuda de Ritinha.
Olha, em nenhum lugar do mundo hoje, e talvez nunca na História desse planetinha, mulheres controlaram grande parte da riqueza, do poder político e militar, criando leis que privaram os homens de seus direitos mais básicos, da sua própria humanidade.  Posso citar montes de países onde isso acontece conosco, mulheres, nos dias de hoje.  Daí, uma coisa é alguém escrever em um fórum um monte de sandices, outra coisa, bem diferente, é ver isso se concretizar no mundo real.  Por outro lado, contem os feminicídios (*há um caso recentíssimo, o da violonista Mayara*) e depois tentem procurar os homens oprimidos ou sendo castrados à dentadas por “femistas” militantes.  Não vão achar, porque, repito, femismo não existe.

Enfim, o que está acontecendo na novela?  Joyce (Maria Fernanda Cândido) é uma dondoca fashionista amorzinho, como tantas criadas pelas novelas, e tem problemas com o marido, Eugênio (Dan Stulbach), um homem cheio de sonhos não realizados.  Jpyce não compreende as necessidades dele.  Sim, eu vi o primeiro capítulo da novela, era isso que estava desenhado lá.  Daí, entra em cena a mulher mais jovem, Irene (Débora Falabella), que seduz (*sim, ela é a ativa*) o vulnerável Eugênio, enquanto se faz de amiga de sua esposa.  Descoberta a coisa toda, Joyce e Ritinha (Isis Valverde), sua nora, batem em Irene no banheiro.  Sim, mais uma vez em um banheiro.  De novo, um momento catártico que alavanca ainda mais o IBOPE, pois a novela já ia muito bem sem isso.  

Outro caso, Caminho das Índias, Melissa acerta as contas com Yvone.
Novela trabalha com repetição, é típico do gênero.  As pessoas querem ser surpreendidas, mas, ao mesmo tempo, esperam caminhar em um terreno seguro quando abraçam um folhetim.  Os maus precisam ser punidos, os bons contemplados.  O importante é que as tramas repetidas pareçam novas e sejam arranjadas de forma inteligente.  Daí, conta o talento do autor, ou autora, que deve acrescentar seus toques pessoais, assim como do elenco envolvido.  Todo mundo que vê novela reconhece a grife de Sílvio de Abreu, Glória Perez, Valter Negrão, Walcyr Carrasco etc.  Cada um deles têm seu estilo próprio.  Há espaço para inovação?  Sem dúvida, mas sem fugir das características básicas de um folhetim.  Não adianta, e eu defendo que o naufrágio de Babilônia se deu mais por causa disso, colocar um monte de temas fantásticos, que geraram algumas boas cenas e não ter uma trama forte de sustentação.  Estabelecido isso, passemos ao ponto principal.

Nem todo os clichês de novela são saudáveis, são positivos, mas, alguns, são particularmente repetidos.  Exemplo?  O uso da briga de mulher por homem (adúltero), ou de mulher apanhando em novela como recurso dramático catalisador das paixões e da audiência. A novela atual nem precisava, repito, pois vai muito bem na audiência, mas por qual motivo não colocar mulheres se engalfinhando?  É um clichê que reforça rivalidade feminina?  Sim, é, afinal, o que importa é ter um homem para chamar de seu.  

Uma das "brigas" mais lembradas, em Celebridades.
Novelas, assim como o cinema, os quadrinhos, são tecnologias de gênero, conceito criado por Teresa de Lauretis, isto é, “o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais” que criam homens e mulheres dando-lhes contornos próprios e hierarquizando-os.  Novelas são narrativas que produzem sentidos, servem de filtro para compreensão do mundo e das relações sociais, e naturalizam diferenças entre homens e mulheres, ora questionando o que está dado, mas, normalmente, reforçando certos aspectos consolidados no imaginário de uma determinada época.  

Espero que não tenha ficado difícil de entender, resumindo: toda mídia é pedagógica.  A própria Glória Perez, em entrevista, disse que novela não deveria educar, mas em um país precário como o nosso, educa. Acolher psicopata, como disse Isis Valverde, e nem sei se seria o caso da tal Irene, nada tem a ver com feminismo, mas discutir o uso desses clichês rasos para reforçar representações sociais a respeito das mulheres e homens, tem. A malvada "que tentou roubar meu homem", que se fingiu ser minha amiga, a vadia, tem que apanhar.  Já o homem, se possível, quero de volta.  Outro as aspecto não menos importante é que sempre que olho para essas cenas, normalmente, uma mulher bonita, feminina, montada sobre outra, igualmente bonita e feminina, isto é, todo mundo dentro dos padrões, penso que se trata de uma espécie de isca erótica, também.  E, como se repetem, elas funcionam, e alimentam o próprio sucesso do clichê batido.

Melina e Diana em Passione.  Dessa, não lembrava.
Normalmente, nesses barracos de novela, é deixado de lado que quem tem que manter a fidelidade, é quem está na relação.  Ah, mas ela apanhou, porque fingiu ser amiga.  Gente, trata-se de uma variação já vista do adultério novelesco no qual, enquanto as mulheres se engalfinham, normalmente, o homem responsável, já que era o marido, noivo, ou namorado, assiste e, não raro, ainda termina com uma das duas.  A novidade, novidade mesmo está em outro lugar.  Joyce, que nada tem de barraqueira, precisou de ajuda e contou com a nora para subjugar Irene.  Foi assim, não foi?  Detalhe interessante é que a personagem da Isis Valverde, tem caráter altamente duvidoso, mas ficou indignadíssima com o acontecido, assim como o filho de Eugênio e Joyce, o Fiuk (*um dos motivos para eu não ver a novela*), ele mesmo, um sujeito que traiu a noiva com a personagem de Isis.  Não devemos cobrar coerência de novela e há gente que age desse jeito mesmo, de qualquer forma, indignação seletiva é algo muito comum em nossos dias.

Agora, e se o homem é o traído?  Depende.  Se o homem é o traído e a novela é de época, continua valendo as surras na adúltera, seu assassinato, como lavagem de honra. Exemplo?  Gabriela.  E escrevi sobre isso, José Wilker interpretou tão bem o seu papel de homem traído que lava a honra com sangue e fica depressivo depois, que deu pena.  Sim, tadinho, ele era mau, mas amava a esposa de verdade.  Em novelas atuais, e as sensibilidades mudaram, é preciso marcar, se torna cada vez mais improvável cenas como as de A Próxima Vítima, com a Isabella, personagem de Cláudia Ohana, sendo espancada e esfaqueada pelo Marcelo (José Wilker), que tinha duas famílias, além da amante, mas ele era homem, ele podia. A mesma personagem foi espancada e atirada da escada pelo marido, Diego (Marcos Frota), no dia do casamento.  Ohana se recorda que não aguentava mais apanhar tanto na novela, mas ela merecia, era a vilã... Já na segunda versão de Irmãos Coragem, o promotor Rodrigo (Giuseppe Oristânio), uma personagem boazinha, chegou a agredir a esposa, Potira (Dira Paes), por ciúmes.  Eu não esqueço.  De lá, anos 1990, para cá, o mundo mudou um tiquinho, mas só um tiquinho.  


Ainda assim, em um país no qual homens matam mulheres por ciúme, vingam-se em crianças por frustração, não aceitam um divórcio ou moças podem terminar com um braço quebrado por dar um “não” em uma balada, ainda se pode abrir exceção em uma ou outra novela, se a vilã for muito malvada.  Vide Carminha de Avenida Brasil, que apanhou do amante e do marido.  Mas ela mereceu, não mereceu?  Será que a mulher que apanha do marido, aquela sua vizinha, ou conhecida, também não mereceu?  Será que a namorada assassinada não provocou?  Enfim, no nosso mundo real, as violências contra as mulheres se multiplicam e estão em todos os jornais.

Já terminando, repito que briga de mulher, na verdade, mulher batendo em mulher, se tornou um clichê super explorado nas telenovelas brasileiras.  Para algumas pessoas, é o momento esperado para vibrar e torcer. Mulheres batendo em mulheres, porque se forem homens, pode “dar ruim”.  No fim das contas, reforça-se que mulheres não são confiáveis, são pérfidas, querem tudo o que é da outra (*especialmente, o macho e o lugar social que ele proporciona*), que mulher não poder ser amiga de mulher.  “Ah, mas a Ritinha ajudou a Joyce! Olha só a sororidade!”  Trata-se somente de uma cortina de fumaça para legitimar e continuar reforçando tanto o discurso de que mulher má tem que apanhar, quanto de que não se deve confiar em outra mulher.  Ou vocês acham que quando descobrirem que o filho de Ritinha é do outro teremos beijos e acolhimentos?  

Só para reforçar o caráter erótico e voyerístico desse tipo de cena.
Alguns clichês parecem ser sempre reiteradas, mudam de forma, mas retornam com outra roupagem.  As novelas brasileiras podem fazer melhor que isso e algumas fazem, mas mulher apanhando é legal e parece permanecer dolorosamente na moda.  Mais que isso, vivemos em um momento de backlash e já tivemos na mesma novela uma noiva rejeitada - a que foi trocada pela Ritinha - fazendo falsa denúncia de agressão.  O que ainda virá?  Mas Isis Valverde tem que defender sua novela, seu papel, a emissora. Talvez, nem seja o que ela pensa, talvez seja. Quem se importa? Ela já cumpriu seu papel nesse jogo sujo.  Pior, ela mesma já foi a mulher má em uma história meio parecida, mas, bem, a vida imita a arte, não é mesmo?  

1 pessoas comentaram:

A Globo há anos usa os mesmos tipos de recursos para ganhar audiência, inclusive os ofensivos a mulheres, homossexuais e negros. A prova maior disso são os quadros do Zorra Total como, por exemplo ,o quadro do assédio no ônibus. Ainda que dê audiência ou que pessoal reclame só quando o caso chega a extremos como o relacionamento abusivo do BBB q algo é efetivamente feito. Sendo que para tanto é preciso muita indignação não só dos telespectadores como dos funcionários e da sociedade brasileira como um todo.Há anos que não assisto novelas da Globo tampouco seu jornalismo, mas sempre q tomo conhecimento tento me posicionar e comentar em páginas relacionadas buscando algum resultado. Contudo, nesse caso de "brigas de mulher" em novela acredito q demorará anos para esse clichê criado pela própria emissora seja repensado, pois infelizmente dá audiência e agrada muita gente.

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