Por conta das celebrações dos 200 anos da morte de Jane Austen, queria ter podido fazer uma série de posts relacionados à autora, filmes, quadrinhos, séries. Não tive tempo para nada disso, enfim, mas faz alguns dias que concluí a leitura da adaptação de Orgulho & Preconceito, i.e. Pride & Prejudice, da série Manga Classics e preciso escrever uma resenha. É a terceira desta coleção, aliás, já que resenhei Jane Eyre e The Scarlet Letter no mês passado. Trata-se de um material com o objetivo de apresentar os clássicos obrigatórios escolares (norte-americanos) para jovens leitores. Enfim, queria já marcar na introdução a minha impressão geral: decepcionante.
Cinco irmãs. |
Para quem não conhece Orgulho & Preconceito (*é possível isso????*), trata-se do livro mais famoso de Jane Austen, um dos mais lidos e vendidos em língua inglesa e adaptado sabe-se lá quantas vezes. Enfim, o livro original foi escrito por uma Jane Austen quase adolescente, entre 1796-97, com o nome de First Impressions, rejeitado pelo editor, e publicado em 1813 com algumas revisões. No livro, Elizabeth Bennet, uma jovem inteligente e perspicaz, mas que termina por julgar mal o Sr. Darcy, um jovem rico e solteiro que, por sua vez, parece orgulhoso demais, pomposo demais para apreciar a vida do interior da Inglaterra e a companhia das pessoas da região.
"Não é bonita o suficiente para me tentar" |
Há várias outras personagens, claro, como as quatro irmãs de Elizabeth Bennet, começando por Jane, que se apaixona pelo melhor amigo de Darcy, Bingley. Jane tem seu romance atrapalhado por Darcy e pelas irmãs de Bingley. Uma delas, Caroline, tem uma queda por Darcy e tenta prejudicar a imagem de Elizabeth aos olhos dele. Mas quem consegue mesmo atrapalhar a relação dos dois é Wickham, outrora amigo de Darcy e um sujeito bonitinho, mas ordinário. Há, também, Mr. Collins, que herdará a propriedade dos Bennet e poderá lançar Elizabeth e suas irmãs em uma situação de penúria, e Chartlotte, melhor amiga de Elizabeth que termina aceitando um casamento de conveniência para deixar de ser a solteirona da família. Enfim, ouçam o Shoujocast sobre Orgulho & Preconceito que ele é muito bom.
Mr. Darcy pisaria no pé de uma dama? |
Indo para o quadrinho, mais uma vez, o roteiro é de Stacy King. Curiosamente, a roteirista que a meu ver foi tão competente nos dois últimos mangás que li, dessa vez fracassou. Sim, sim, eu sei que toda adaptação é uma nova obra, que não precisa, nem deve ser absolutamente fiel ao original, o problema é que, em muitos aspectos, Orgulho & Preconceito foi desfigurado. Fora isso, o Darcy do quadrinho me lembrou em vários momentos o de Laurence Olivier no filme de 1940, isto é, o sujeito já estava lambendo o chão em que Lizzie pisava antes mesmo do primeiro terço da história. Já Elizabeth Bennet, em vários momentos passa a idéia de ser uma cabeça de vento, apaixonada por Wickham e incapaz de ver um palmo adiante do seu nariz. O bom senso da personagem foi erodido.
Jane ficou muito linda nessa página. |
Muito bem, quanto ao roteiro, algumas coisas que me incomodaram: Caroline Bingley praticamente desaparece. Toda a sequência da carta, doo passeio pela sala, Caroline tentando chamar a atenção de Darcy e tentando fazer com que ele, em vão, desprezasse Elizabeth foi cortada. A mãe e as irmãs de Elizabeth também não aparecem indo à Netherfield para pedir o baile. Tudo limado, mas muito espaço para cenas inventadas e devaneios de Lizzie. A frase “Todo o selvagem sabe dançar”, foi-se embora, ambém. Darcy pisa no pé de Elizabeth quando os dois estão dançando. Imaginem Mr. Darcy, serve qualquer um, o original, ou o das múltiplas adaptações, nervoso ao ponto de pisar no pé de alguém? Pois é... E as pessoas se tratando pelo nome? Nada de Mr. ou Miss boa parte do tempo... Lamentável.
Elizabeth percebe que fez bobagem. |
De resto, já que Lizzie é imprópria em um sentido bem negativo, por assim dizer, no quadrinho, a protagonista é chamada à atenção por Lady Catherine de Burgh, chamada de Mrs. De Burgh em dado momento, sabe-se lá por qual motivo, por não usar seu cabelo preso. Sim, Lizzie usa o cabelo solto boa parte do tempo, tal e qual uma garotinha. Além disso, se recusa a dizer sua idade para Lady Catherine. Já lá pelas tantas, quando Darcy volta a se declarar para Elizabeth, cai uma chuva torrencial. A referência imediata é o filme de 2005.
Combo declaração na chuva e camisa molhada. |
Com a chuva, os dois saem correndo para um caramanchão e Darcy vai se despindo, dá o casaco para Lizzie se proteger e termina sem colete, gravata e com a camisa molhada aberta. Referência, também, para a minissérie de 1995. O problema é que o Darcy desse quadrinho é tudo, menos interessante. Ele é desenhado de uma forma tão estranha, super alongado, meio vampiresco (*não no sentido sexy do termo*), enfim, a cena só fica esquisita mesmo. Imagina a mocinha voltar encharcada e o mocinho praticamente pelado de um passeio, enfim...
Lydia não segura a língua. Veja o uso do SD (super deformed). |
Vamos para o quesito arte, agora. O desenhista, agora, é um homem, Po Tse, que, infelizmente, desenhou todas as adaptações de Jane Austen para a coleção. Há alguns pin-ups muito bonitas. Lizzie e Jane são super fofas em alguns quadros, mas a arte é mediana mesmo, e não parece aquilo que a gente vê na média dos mangás Harlequim, isto é, gente que sabe desenhar fazendo um trabalho de segunda. Po Tse não tem a prática de desenhar esse tipo de história, ou precisa amadurecer muito como artista.
Mr. Collins é desenhado assim, às vezes, com traços ainda mais simplificados. |
Vejam Mary, ali, no fundo. |
Detalhes problemáticos. Darcy tem a aparência fantasmagórica, descarnada. Ele parece um ser sobrenatural, não um ser humano. Bem, se isso conta como aspecto positivo, o Darcy desse quadrinho está desconectado de qualquer ator que tenha encarnado a personagem. O roteiro leva às referências – Laurence Olivier, Colin Firth e Mathew Macfadyen – o traço, não. Agora, Wickham, que aparece muito no quadrinho, mais do que deveria, também tem a aparência alongada, demasiado esguia, só que, ao invés de ser moreno, é louro e tem aquela barba rala colocada normalmente em personagens masculinas meio cafajestes. Vide o Flynn de enrolados. Talvez, tenha sido o modelo dele, aliás.
Wickham, já casado, tenta agarrar Elizabeth. |
A arte do quadrinho recorre a todos aqueles clichês visuais que muita gente associa diretamente aos mangás. Então temos SDs, tirinhas (4koma) plantadas para dar alívio cômico e personagens que são desenhadas de forma distorcida e humorística o tempo todo. Por exemplo, Mr. Collins, o primo clérigo que vai herdar a propriedade, é desenhado como uma caricatura cômica o tempo inteiro. Ele não parece gente, por assim dizer. Já Mary Bennet, a irmã intelectualmente afetada de Elizabeth, é colocada com imensos óculos e sempre, sempre mesmo, usando um capuz. Ela parece um espectro se arrastando pelos quadros. Só no finalzinho, ela aparece vestida como uma moça normal. Mas, aí, já é o momento em que se fala do efeito benéfico que o casamento de Jane e Elizabeth teve sobre as irmãs Mary e Kitty.
Jane e seus três chapéus estranhos. Tudo dentro de casa. |
Falando em capuzes, bem, Po Tse não deve ter feito grande pesquisa sobre figurino e costumes. Já citei Elizabeth, moça feita, de cabelo solto. Além disso, o artista também não sabe que moças solteiras, naquela época específica, não cobriam a cabeça em casa. Jane é a vítima preferencial. Ela aparece linda na primeira parte do mangá, no final, quando Bingley volta para cortejá-la, ela aparece com uns chapéus e véus que vão do esquisito, passando pela touca de dormir, até o excessivamente comportado. Tudo dentro de casa. Queria assustar o moço?
Aqui, o uso das personagens deformadas funcionou. |
Já Lady Catherine de Burgh se parece muito com o sobrinho. Tem o mesmo aspecto fantasmagórico, ou vampiresco, enfim. Agora, na sua primeira aparição, ela parece estar usando um vestido do final do século XIX e, não, do começo. Assim, não diria que a arte é relaxada, ela é somente irregular, mesmo e não houve grande preocupação em ser fiel à época.
Primeira aparição de Lady Catherine. |
É isso. Se Stacy King, a roteirista, acerta ao falar que Jane Austen inventou a personagem tsundere – que desdenha, mas quer comprar, às vezes, agressiva e arrogante – ela não soube se aproveitar disso no seu quadrinho. O seu Darcy é inseguro demais, caloroso demais, bandeiroso demais em relação à Lizzie. Já a protagonista, ela terminou sendo um tanto idiotizada. É possível ver a original nela, mas é possível, também, ver uma pessoa muito diferente e isso ficou bem ruim.
Devaneios de Elizabeth. |
Como é a mesma dupla que faz Emma e Razão & Sensibilidade, não comprarei os dois volumes. É uma pena que o bom trabalho de Stacy King não tenha se repetido em Orgulho & Preconceito. Pena mesmo. Queria que essa resenha fosse uma homenagem à Jane Austen, mas o mangá não conseguiu transportar a grandeza de Orgulho & Preconceito para outro formato. Aqui há uma entrevista com a roteirista explicando a adaptação de Orgulho & Preconceito. É importante ressaltar que, sequencialmente, é a mais antiga das que eu li feita por Stacy King. Agora olhem as imagens abaixo:
Não conhecia esta adaptação de Orgulho & Preconceito, ela é da editora Seven Seas. O traço é muito mais bonito, aparentemente equilibrado e agradável. Vou tentar conseguir. Infelizmente, não tem formato digital. De resto, assim que tiver um tempinho, vou resenhar um mangá Harlequin que me surpreendeu pela qualidade do traço e a boa história. Isso é raro, raríssimo mesmo.
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