Sexta-feira, assisti Dunkirk, que, por aqui, deveria se chamar Dunquerque. Estou em licença médica e não pretendia ir ao cinema, mas meu marido, que geralmente não me chama para essas coisas, me fez o convite duas vezes. Aceitei. Ele estava curioso, mais do que eu, aliás, para conferir um filme que vem sendo cumulado de elogios. Ele detestou o filme. Sorte minha que não fui eu a convidar e insistir, pois teria que ouvir as lamúrias e reclamações. De minha parte, considero Dunkirk muito menos impactante do que as críticas – a maior parte delas – me sugeriram. Saí decepcionada. Se fosse fã do Nolan, coisa que não sou particularmente, talvez pudesse ser complacente. mas, como não sou, não vou passar a mão na cabeça. Vamos ao resumo.
1940. Dunquerque, França. Cerca de 400 mil soldados ingleses, franceses, holandeses, belgas e indianos estavam encurralados pelos alemães no seu avanço rumo a Paris. A saída era o mar e os britânicos se esforçaram para evacuar o máximo de soldados possível sob bombardeio da Luftwaffe. Entre 26 de maio e 4 de junho, mais de 338 mil soldados foram evacuados pela marinha e por civis que atenderam ao chamado do Primeiro-Ministro Churchill e se lançaram ao mar para levar os soldados para casa.
Aguardando o resgate ou a morte? |
O filme, que tem uma narrativa não-linear, acompanha simultaneamente os esforços do Comandante Bolton (Kenneth Branagh) para embarcar em segurança o máximo de soldados possível, a tentativa desesperada de três jovens soldados de estarem entre os felizardos, um barco civil e sua tripulação em sua travessia rumo à Dunquerque, e o esforço de três pilotos da RAF, um deles Tom Hardy, que só reconheci no final, em tentar proteger os soldados e navios dos ataques da Força Aérea Alemã. No fim das contas, um grande fiasco militar, transformou-se em um milagre que alimentou o nacionalismo britânico e a disposição para resistir aos nazistas.
Vamos lá, eu esperava um filme grandioso, angustiante, afinal, quase 400 mil sujeitos estavam encurralados e sendo torturados pelo bombardeio alemão, mas não tive nada disso. Como não era o objetivo do filme, ou assim, eu o li, desenvolver as personagens e seus dramas, mas focar na ação de resgate, Dunkirk não me permitiu criar particular afeição por nenhum dos sujeitos do filme. Antipatia, sim, o primeiro cara que o barco civil resgata do mar é um mala sem alça da pior qualidade. Como disse meu marido, a guerra mal começou e aquele homem já estava daquele jeito? Destruído? O infeliz causa mais problemas do que os alemães, por assim dizer.
Kenneth Branagh garantindo a retirada. |
Mas eu até consegui gostar um tiquinho do soldado francês, de quem eu queria saber mais (*Seria ele judeu?*), só que o filme não me contou nada sobre ele, e, talvez, do Sr. Dawson (Mark Rylance), o comandante do Moonstone, o barco civil, e ex-combatente da I Guerra. De resto, todas as personagens são meio genéricas. Mesmo Kenneth Branagh faz muito pouco, apesar da sua grande importância que é garantir o embarque seguro dos soldados. Das cenas do filme, a dos soldados dentro do barco encalhado foi particularmente irritante. Eles não reagiram ao fogo alemão, queriam tapar um número absurdo de buracos para conseguir navegar e, quando vemos o exterior, o barco já se encontra sabe-se lá quantos metros dentro do mar. A maré encheu, verdade, mas foi um exagero que não ajudou em nada para que a sequência se tornasse memorável. Da mesma forma que a longuíssima sequência do pouso do heroico piloto Tom Hardy não tem o impacto que deveria. E foi criticada por ser, bem, um tanto incoerente (*Crítica da Exame*), e como era um filme realista...
Por outro lado, Dunkirk tem uma bela fotografia e se esforça por tornar poética uma situação desesperadora. Como estava do lado de um especialista em aviões, então, sei que a reconstituição dos mesmos e dos navios era perfeita. Meu marido ficou se derramando pelos Spitfire, Stuka e outros. Explicou-me que os tais Hurricane, citados pelo Sr. Dawson, eram aviões obsoletos e tudo mais. Hoje, é possível fazer tudo em computação gráfica com um realismo absurdo. Mas eis que o filme economizou em mostrar os aviões em ação, assim como os próprios soldados desesperados. Em nenhum momento, eu vi os quase 400 mil homens na praia. Parecia pouca gente. Os aviões da Luftwaffe eram escassíssimos e não vi ninguém despedaçado, nem de relance.
Tommy, o mais importante dos três meninos que só queriam viver. |
O que eu quero dizer? As cenas foram demasiado limpas. Não peço violência em níveis pornográficos como a sequência inicial de O Resgate do Soldado Ryan, para mim, a parte mais significativa do filme de Spielberg, mas ficou parecendo guerra para não assustar criança, para reforçar a imagem idílica dos combates que muitos alimentam enquanto jogam videogame. A narrativa não-linear pode ser taxada de inovadora, o filme todo está sendo louvado, aliás, mas, também, atrapalhou a compreensão em alguns momentos. Tanto meu marido, quanto eu, chegamos a achar que havia dois grupos de aviões da RAF, quando, na verdade, era o mesmo trio. Esse corte, vai e volta, tirou o impacto do que poderia ser uma sequência de combate aéreo realmente interessante. E mais, a opção pela narrativa não-linear fez com que as mesmas cenas fossem repetidas por vários ângulos. Ajudou a contar a história? Não. Foram poéticas? Aos meus olhos, não, mas poesia não é meu forte mesmo.
Vou citar, agora, as duas sequências de impacto, duas que realmente se aproximaram do que eu esperava ver em um filme tão celebrado. O destróier atingido pelo torpedo com os soldados resgatados no porão e tentando escapar. Esta cena foi realmente angustiante e bem executada. A segunda, já no finzinho do filme, quando o grupo de bobocas do barco encalhado que eu comentei, estão em alto mar e vão ser resgatados por um navio da Marinha Real Britânica, mas vem um ataque dos aviões alemães. O navio vai à pique, o mar se enche de óleo e incendeia. Há muita gente na água e vocês imaginam no que vai dar. Mas são as duas cenas que eu consigo citar como ótimas. Se o combate aéreo não fosse fragmentado, talvez tivesse uma terceira.
O filme ignora os indianos que lutaram em Dunquerque. |
Enfim, apesar dos muitos e quase unânimes elogios, Dunkirk também foi criticado de forma consistente por suas omissões e escolhas. A primeira, já insinuei lá em cima que havia indianos entre as tropas encurraladas. Não há soldados britânicos que não sejam brancos, fora isso, optaram por um elenco quase homogêneo, os sujeitos, no geral, são brancos, esguios e de cabelos escuros. Vi um texto de uma pessoa reclamando que não conseguia distinguir entre os três jovens soldados que querem sobreviver, porque, bem, eles são quase trigêmeos. Eu até reconheço o francês, ele tinha cabelo encaracolado, mas mesmo os extras são de uma monotonia só.
Por exemplo, todos os caras dentro do barquinho são brancos de cabelos escuros. E eles eram escoceses, highlanders. Praticamente não há louros, só vi o filho do Sr. Dawson, um dos pilotos da RAF (*que só depois de muito tempo tira o capacete*) e o Kenneth Branagh, nas tropas, nenhum que se destacasse. Já no finalzinho, em uma tomada aérea vemos um ruivo, um sujeito bem “ginger” mesmo, mas é só. Entendo a economia nos diálogos, a narrativa não-linear, mas não a eliminação dos soldados de cor e mesmo esta opção pelo mesmo tipo físico de homem branco, não tem defesa.
Fogo no Mar, a cena mais terrível do filme para mim. |
De minha parte, reforço que eliminar os soldados indianos, orientais e negros que deveriam estar nas tropas britânicas em prol de uma massa branca e sem diversidade é deixar de oferecer uma lição de História, especialmente, aos racistas. Quem grita contra o imigrante, o outro, o sujeito que não é como nós, esquece que os impérios coloniais usaram soldados de suas possessões em suas guerras, ou seja, eles deram o seu sangue na I e na II Guerra e sabe-se lá em quantos outros conflitos. Curiosamente, os únicos negros do filme estão nas tropas francesas. Sim, da mesma forma que Dunkirk é um filme limpinho é, também, um filme racista na medida que apaga os não-brancos que lutaram e morreram bravamente na Europa resistindo contra os nazistas.
Outro ponto que está sendo criticado, é a forma como os franceses são representados, como se eles nada tivessem feito. Eles ajudaram a conter os alemães, eles estavam lutando para defender seu território em uma batalha perdida. O articulista da revista Exame (*link lá em cima*) pontua isso e fala de como Dunquerque ajuda a sedimentar uma ideia que foi vendida pelos alemães e pela República de Vichy (*a França colaboracionista*) de que os britânicos abandonaram a França a sua própria sorte. Sim, se não mostraram com propriedade que ficar na praia seria uma carnificina (*porque os alemães não iam ter condição de capturar todo mundo, então...*), que os franceses ajudaram e se sacrificaram, enfim, o filme tem pouco efeito de revisitar um dos momentos mais dramáticos da II Guerra na Frente Ocidental.
Tom Hardy faz o piloto que salva o dia. |
Aliás, essa versão dos britânicos que abandonam a França sem olhar para trás, está no livro didático que meus alunos usam. Eu é que paro e explico que era se retirar ou não haveria como continuar lutando. O filme não se propõe a desmontar essa ideia e deveria. De que os alemães poderiam ter massacrado todos, mas ficam brincando de apertar e afrouxar, imaginando que os britânicos aterrorizados buscariam o armistício, ou mesmo a rendição. Mas é aquilo, se nem as personagens – exceção para o Sr. Dawson e seu filho – tem uma história, um passado, memórias, o inimigo sequer tem rosto. Não mostrar os alemães é uma forma de desumanizá-los, mas como o filme é econômico na destruição e no desespero, não vejo sucesso no recurso que, normalmente, é usado com monstros em filmes de terror e alienígenas.
O filme não cumpre a Bechdel Rule. Normal, seria muito estranho enfiar personagens mulheres em uma película como Dunkirk, há umas duas enfermeiras, uma delas com falas e está mais que OK. Agora, foi mérito do filme, olha um ponto indiscutivelmente positivo a meu ver, colocarem mulheres entre os civis que foram ao resgate. Imaginei que em um filme que elimina centenas de soldados indianos e negros, poderiam eliminar, também, as civis que foram nos barcos, mas elas estão lá.
Harry Styles, Aneurin Bernard e Fionn Whitehead, os três soldados quase idênticos. |
Terminando, quando o navio do Sr. Dawson está chegando na Inglaterra e são divisadas umas escarpas, na verdade falésias, brancas e o soldado, Tommy, o principal dos três moços que só queriam viver, pergunta se era Dorset (*acho*), é explicado que, não, é Dover. Uma canção muito famosa foi composta na época “The White Cliffs of Dover”, falando do sentimento de rever a pátria, a segurança, em um momento tão tenebroso quanto aquele que os britânicos e a Europa estavam vivendo. Os soldados capturados em Dunquerque, perto dos 40 mil, no geral permaneceram presos até o fim do conflito, depois de obrigados a marchar até a Alemanha, os sobreviventes foram submetidos à trabalho escravo.
Justiça, Dunkirk não é uma patriotada, como eu temia, mas não me tocou. Um momento tão fenomenal merecia um filme a altura, inovações narrativas são bem vindas, mas uma história estruturada é o fundamental. Tem visual e espero que até o ano que vem as premiações percebam que, bem, sem o visual sobra pouco do filme. De 5 estrelas, 3. Não é ruim, e é curto, aliás, mas está muito longe de ser esse filme fantástico que muita gente está vendendo por aí. Aguardo o Churchill de Gary Oldman para ver se me sinto mais feliz.
ATUALIZAÇÃO: Uma amiga me passou um link no qual o diretor disse que queria filmar sem roteiro. Agora, percebo que não foi má vontade ou falta de poesia da minha parte o que eu vi e não vi no filme. Mas ele é gênio, então pode. (*SQN*)
ATUALIZAÇÃO: Uma amiga me passou um link no qual o diretor disse que queria filmar sem roteiro. Agora, percebo que não foi má vontade ou falta de poesia da minha parte o que eu vi e não vi no filme. Mas ele é gênio, então pode. (*SQN*)
4 pessoas comentaram:
Não pretendo ir ao cinema assistir a DUNKIRK. Seu comentário reforça opiniões negativas de dois experts somnianos que já o haviam assistido.
É uma pena porque o episódio tem muito para um grande épico cinematográfico – haveria uma infinidade de aventuras, dramas e tragédias, efetivamente acontecidas, a ser dramaticamente exploradas.
Disseram-me que não há introdução histórica sobre o que está ocorrendo. Portanto, quem não tem informação anterior ficará sem noção do que resultou naquilo.
...
São raríssimos os filmes sobre campanhas ou batalhas que se mostrem razoavelmente fiéis e cinematograficamente atrativos. Entre esses pouquíssimos, citaria TORA, TORA, TORA , O MAIS LONGO DOS DIAS , UMA PONTE LONGE DEMAIS e NADA DE NOVO NO FRONT.
Pobres indianos!! Serviram de bucha de canhão pros colonizadores !!!
Holandeses em Dunkirk ?? Milagre!!! Curiosamente Hitler tomou a Holanda em poucos dias!!! Não sei pq milagre os soldados holandeses conseguiram chegar em Dunkirk, belgas até entendo, estavam do lado das forças anglo-francesas.
Li que os soldados franceses que escaparam com os ingleses de Dunkirk, foram repatriados pelos ingleses depois na Bretanha pra tentar deter os alemães.... tudo em vão...
"Disseram-me que não há introdução histórica sobre o que está ocorrendo. " Exatamente um dos pontos que ressaltei. Nestes dias de extrema ignorância histórica, era essencial uma breve recapitulação dos antecedentes do episódio. O filme é ao mesmo tempo primário e pretensioso: os soldados alemães se manifestam apenas como tiros e explosões, a Luftwaffe é representada por meia dúzia de aviões, nesses aspectos parece um filme de baixo orçamento ao invés de uma grande produção.
Adorei seu texto! E é interessante que você aponta exatamente os mesmos problemas que eu tive com o filme.
Mas sabe que eu até gostei da narrativa com três pontos temporais? Minha maior reclamação mesmo é a falta absoluta de empatia que os personagens geram em quem está assistindo. Eu fiquei decepcionadíssima com o tratamento dado àquele soldado francês, ali dava um drama muito bom. Aliás, todas as oportunidades de dramaticidade foram largadas pelo caminho. E nem acho que a duração do filme atrapalhou; quem já assistiu a "Band of Brothers" sabe que dá para acontecer bastante coisa em apenas 50 minutos.
Também senti falta da sangue. Naquele primeiro bombardeio na praia, eu esperava ao menos umas manchas na areia. Parecia "Disney death scene". Na minha sessão tinha umas meninas de colégio assistindo empolgadas por causa do Harry Styles, e me pergunto se a limpeza da película era para ter censura baixa e pegar esse público mais jovem.
No mais, eu considero o Nolan um diretor de técnica quase impecável - tenho certeza que "Dunkirk" estará indicado em todas as categorias dos Oscars técnicos. Digo até que merece alguns, especialmente no som (o "grito" dos aviões da Luftwaffe voando baixo era de arrepiar os cabelos). Mas o homem precisa de um bom roteirista urgente! De preferência uma pessoa de cor, porque pelo que eu vi, o diretor não fez nem um mea culpa pelo whitewashing das tropas britânicas.
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