Esta semana, terminei de ler A Letra Escarlate (The Scarlet Letter) na versão da série Manga Classics da editora Udon. Por coincidência, porque escolhi comprar por amar o livro e, não, por conta das autoras, o volume também é adaptado por SunNeko Lee (arte), desta vez sem gatinhos, e Crystal S. Chan (roteiro). A primeira edição do volume saiu em 2015. A Letra Escarlate é um dos clássicos que todo estudante norte americano tem que ler no colegial, há várias referências ao livro em animações, seriados e filmes adolescentes, inclusive, então, colocá-lo em quadrinhos é sempre uma boa idéia, especialmente, porque a obra original é escrita em inglês arcaico e a HQ tende a amenizar essas coisas.
A Letra Escarlate, de Nathanniel Hawthorne, foi publicada a primeira vez em 1850, e inicia quando o narrador anônimo diz ter encontrado um manuscrito contando a história da protagonista, Hester Prynne. A história começa de fato com a protagonista sendo punida por seu crime, adultério. Com seu bebê, Pearl, nos braços, ela permanece por três horas exposta no patíbulo, em seu peito, a letra “A” em vermelho bordada. Na Puritana Nova Inglaterra, a pena poderia ser de morte, mas Hester de recusa a falar o nome do seu parceiro no “crime”, mesmo instada a fazê-lo pelo pastor mais velho da comunidade e seu próprio reverendo, o jovem Arthur Dimmesdale. Hester se mantém impassível até avistar na multidão alguém que julgava ser seu marido, um homem que todos acreditavam ter morrido no mar.
Ela deveria se mostrar contrita e humilhada. |
O marido de Hester, um médico que vivera com os índios por dois anos, assume um outro nome, Roger Chillingworth, e, ao atender a protagonista e sua bebê na prisão, jura que descobrirá quem foi o amante da esposa e se vingará. Hester é obrigada a dar sua palavra de que guardará segredo e não revelará a ninguém que o velho médico é seu marido, um companheiro que não escolheu, mas foi-lhe dado pela família, um homem que nunca a amou, nem foi amado por ela. Já seu amante, o pai de Pearl, é, na verdade, e para grande culpa e tormento da heroína durante parte da história, o seu verdadeiro amor.
Enfim, o livro e o quadrinho cobrem sete anos de história, de 1642-49. No início, as mulheres, em especial, pedem que Hester seja morta, afinal, a presença de uma pecadora na comunidade é uma ofensa a todas as “boas” mulheres puritanas. Sabe aquela história de que fulana é puta e eu, uma mulher decente, preciso ser a primeira a tacar pedras, porque os homens estão olhando? Pois é, neste caso, também a divindade, acreditavam os crentes, observava severamente os seus fiéis. As mulheres sentem-se ainda mais ofendidas, porque Hester, uma excelente costureira, bordou a letra escarlate com tamanho capricho e circundada de rosas que o símbolo de escárnio termina por embelezá-la. Letra, aliás, em uma excelente sacada, é a única coisa colorida do quadrinho.
Esta não é a minha capa. |
Depois de liberta, Hester vive da sua agulha, mas não lhe permitem costurar, nem bordar, vestidos de noiva. Durante os primeiros tempos, sempre que sai pela cidade, e isso não está no quadrinho, ela é antecedida por um menino tocando um tambor para que todos vejam sua vergonha, daí, até os mais pobres rejeitavam sua ajuda com medo de serem contaminados por sua má fama. Com o tempo, Hester ganha o respeito da comunidade pela sua vida correta e por ajudar os necessitados, mesmo vivendo uma vida modesta. Só que a pequena Pearl é uma criança estranha, parece uma pequena fada, que não parece acreditar nos princípios religiosos puritanos (*apesar do esforço da mãe em torná-la uma boa cristã*) e muitos começam a espalhar a fofoca de que a menina estaria possuída por satã.
As autoridades, todos homens, claro, se reúnem para deliberar se tomam Pearl da mãe,afinal, uma pecadora não deve ter o direito de educar uma criança, pois iria contaminá-la. Hester se antecipa ao veredito e vai suplicar, mas, também, lutar por sua filha, dirigindo-se até a casa do governador. Seu marido, o médico, está entre os que estão discutindo o destino de Pearl. Dimmesdale, o pastor, que Pearl diz que sempre a olha com um olhar triste e mantém a mão no coração, também está. É ele que apela para que não tomem a criança de Hester. Com seu ar compassivo e fama de santidade, normalmente, ele consegue o que quer.
Pearl pode ser tomada de Hester. |
Assim como Chillingworth, você já deve ter desconfiado que o pai de Pearl é o reverendo Dimmesdale. Aproveitando-se da proximidade com o pastor, ele passa a tratar da saúde do moço. Como ele é solteiro (*e se recusa a casar*), ambos passam a morar na casa de uma viúva que aluga quartos. A saúde de Dimmesdale piora cada vez mais, pois ele, às escondidas, se submete a uma série de penitências. Um dia, Chillingworth, usando de um estratagema, tem a comprovação da culpa do pastor e passa a tratar de sua saúde de uma forma especial. Não permite que ele morra, mas ministra drogas que só fazem prolongar seu sofrimento.
Tudo que acontece não escapa aos olhos de Hester que confronta o marido e termina por romper sua promessa para tentar salvar Arthur Dimmesdale. A cena da floresta é belíssima no livro e ficou bem razoável no mangá. Ambos, então, decidem fugir, começar vida nova longe da rigidez da colônia puritana, mas as coisas não acontecem bem como Hester espera. A Letra Escarlate não é um romance com final feliz, não espere isso, mas é uma história grandiosa, comovente, com grandes personagens e a adaptação em quadrinhos conseguiu fazer um trabalho acima da média, eu diria.
Só por cima do cadáver de Hester vão lhe tirar Pearl. |
Enfim, conheci A Letra Escarlate quando estava na faculdade. Um amigo muito inteligente e sensível, que já era professor de inglês, comentou sobre o livro, ele teve que fazer um trabalho sobre ele no curso de formações e professores. A Letra Escarlate era uma de suas obras favoritas. Ele recitou de cor a confissão de Dimmesdale no cadafalso, outra das grandiosas cenas do livro, quando a personagem, delirando, se posta no lugar de punição à noite, durante uma tempestade. Ninguém o ouve e ele carrega um peso enorme, sente-se um covarde e um hipócrita por não ter confessado seu “crime” e aceitado sua punição, que seria a morte.
Mas amar seria um crime? A Letra Escarlate é um livro que questiona a visão religiosa radical dos puritanos e que ajudou a formar a cultura norte americana. Suas personagens passam por estágios nos quais se culpam e questionam se realmente seriam culpados do que a sociedade os imputa. Questionam a fé para saírem mais fortalecidos nas suas crenças, naquilo que realmente importa. Tanto Hester, quanto Dimmesdale, são testados nas suas convicções e, pelo menos aos meus olhos, saem fortalecidos na sua fé, mais cristãos do que quando começaram a história, mas críticos do sistema.
Mas amar seria um crime? A Letra Escarlate é um livro que questiona a visão religiosa radical dos puritanos e que ajudou a formar a cultura norte americana. Suas personagens passam por estágios nos quais se culpam e questionam se realmente seriam culpados do que a sociedade os imputa. Questionam a fé para saírem mais fortalecidos nas suas crenças, naquilo que realmente importa. Tanto Hester, quanto Dimmesdale, são testados nas suas convicções e, pelo menos aos meus olhos, saem fortalecidos na sua fé, mais cristãos do que quando começaram a história, mas críticos do sistema.
Marido cruel e vingativo. |
Muita gente considera Hester Prynne uma heroína feminista. Podem procurar na internet em inglês e vão encontrar Hester como sugestão de fantasia feminista de Halloween. Eu não estava procurando e achei. A protagonista não se curvou aos poderes patriarcais, resistiu e, no final, terminou tomando seu destino em suas mãos. Nas três horas no cadafalso, ela enfrenta com altivez as autoridades e toda a população d a vila. Ela se nega a entregar seu cúmplice, mesmo quando o próprio lhe suplica que o faça. Hester termina por transformar um símbolo de sua humilhação, a tal letra escarlate, em uma fonte de força, coragem e afronta.
Hester no mangá ficou muito bonita. Ela não tem um traço infantilizado como Jane Eyre, que também foi desenhada pela mesma artista. Já, Pearl, sua estranha criança, tem os olhos enevoados, até o momento em que seu pai tem coragem de se apresentar e segurar-lhe a mão em frente a todos. Ali, quebra-se o encanto e ela passa a ter olhos como os das demais personagens, com os contornos internos bem feitos. Foi um recurso muito interessante. Pearl, no quadrinho, é responsável, também, por momentos ternos e de humor. Assim como em Jane Eyre, as artistas trabalharam bem, tanto na arte, como na adaptação do texto original.
Pearl sempre pareceu fascinada pela letra escarlate. |
Já Dimmesdale não me agradou no início. Apagado, sem expressão. Depois, entendi que fazia parte da composição da personagem culpada, quando ele recupera a sua força, ganha um pouco mais de presença. Ainda acho que SunNeko Lee precisa aprender a desenhar uns homens mais interessantes, mas ela passou a mensagem de forma adequada. Já Chillingworth foi construído de forma sombria, volta e meia com uma serpente, recurso comum em mangás e animes, atrás dele para enfatizar sua vilania, o fato de estar a espreita, pronto para o bote, e, também, para ilustrar o fato de ter Hester (*aparentemente*) sob seu controle. Em termos de narrativa de mangá, a coisa funcionou bem. Assim como recomendei Jane Eyre, recomendo A Letra Escarlate. Aliás, recomendo o livro, também.
Apesar das muitas adaptações da Letra Escarlate para o cinema e a TV, inclusive uma adaptação moderna com Easy A com a Emma Stone, eu só assisti uma delas, a de 1995. Trata-se de uma adaptação ruim do livro, daí, ter sido detonada na época de sua estréia, mas um filme mediano no geral e com alguns momentos bregas bem indignos. Agora, o problema maior, talvez, tenha sido menos a heresia de mexer em uma história tão amada, para torná-la uma peça feminista militante (*ruim*), mas de ter sido confrontado pouco depois com um filme que se passava na mesma época e abordava muito melhor as mesmas temáticas, As Bruxas de Salém (The Crucible).
Vários motivos para amar o Dimmesdale de Gary Oldman. |
Ainda assim, o filme ofereceu uma das melhores atuações de Gary Oldman que eu já vi (*fora que ele está lindo e sexy, também*). Daí, apesar de detestar muita coisa na película, ela tem um lugar no meu coração. Gary Oldman fez um excelente Arthur Dimmesdale, ainda que invertendo uma questão importante, no filme, ele quer confessar e Hester – que parece uma mulher empoderada do final do século XX – não permite que ele confesse, o que o condena à culpa. No livro, Dimmesdale foi covarde e esse foi o seu pecado verdadeiro. De qualquer forma, o ator conseguiu passar a angustia da personagem, na época, eu me comovi com aquele Dimmesdale tanto quanto com o original.
Já terminando, há várias personagens históricas que são citadas ou parecem na Letra Escarlate. Citada, não no quadrinho, é a líder religiosa Anne Hutchinson que questionou a forma obtusa como os puritanos viviam a religião. Trata-se de uma personagem importante na história do protestantismo, especialmente, nos Estados Unidos. Ela não é morta, mas é expulsa da colônia e tem que ir para outra, onde aceitava-se a diversidade de práticas, já que não se arrepende de defender outra leitura do cristianismo. Já, Ann Hibbins, apresentada no quadrinho como “irmã” do governador, tenta levar tanto Hester, quanto Dimmesdale e Pearl a adorar “o homem de preto” que habita a floresta. O diabo, enfim. Lembram do filme A Bruxa? Pois é...
Pearl se torna "humana". |
Talvez a crítica de A Letra Escarlate seja ao fato de uma bruxa morar na casa do governador e as autoridades procurando o pecado e a bruxaria na pequena Pearl. De qualquer forma, Ann Hibbins será executada por bruxaria em 1656. Ela foi a terceira mulher enforcada (*protestantes geralmente não queimavam bruxas*) em Boston por esse crime. No entanto, sumiram as provas de bruxaria contra ela. Parece que sua condenação está muito mais ligada, a uma perseguição a uma mulher rica e que não aceitava uma posição submissa. Entre as acusações que sobraram contra ela está a de usurpar a autoridade do marido e de ser “grosseira” com carpinteiros que a tinham lesado. Ela os processou e ganhou na justiça uma indenização, mas se recusou a se desculpar com os sujeitos pelo seu “destempero”. Os carpinteiros que a roubaram, a acusaram por causa disso e, talvez, tenha sido o ponto de partida para sua perseguição e condenação por bruxaria.
É isso. E, sim, considero que Hester Prynne a sua maneira é uma personagem feminista e das boas, por isso mesmo, não precisavam mexer nela no filme estrelado por Demmi Moore. Bastava deixar a Hester do livro aparecer. Devo resenhar outro volume da coleção (Orgulho e Preconceito) nos próximos dias, mas não vai ser um texto de elogios, não...
2 pessoas comentaram:
Adoro esse livro. Recomendo a todos.
Amo este livro. Recomendo o filme mudo de 1926. É uma adaptação muito linda e mais fiel ao livro. Gostaria mesmo do mangá mas, diferente de você, achei o traço da Hester muito infantilizado. Me incomoda um pouco. Obrigada pela resenha, espero achar o mangá 😊
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