sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Comentando Nise: O coração da loucura (Brasil, 2016)


Ontem, assisti ao filme Nise: O coração da loucura, estrelado por Glória Pires e dirigido por Roberto Berliner.  Trata-se de uma película importante, especialmente, quando estamos comentando as mulheres na ciência, afinal, a brasileira Nise da Silveira foi uma psiquiatra pioneira em várias áreas e que introduziu as idéias de Jung no Brasil.  Analisando em retrospectiva, Nise poderia ter sido o candidato do Brasil ao Oscar, se não tivesse imperado a irracionalidade e a politização no processo de seleção.

O filme se inicia em 1944, quando Nise, ex-presa política e perseguida durante o Estado Novo, é reintegrada ao serviço público.  Trabalhando no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, ela não consegue aceitar a barbárie dos métodos terapêuticos da época, em especial a lobotomia e o eletrochoque.  Alocada no setor de Terapia Ocupacional, uma área de pouco prestígio, ela inicia um trabalho que teria repercussão internacional ao permitir e estimular que os residentes pudessem pintar, desenhar e esculpir.  Seus esforços terminam recompensados com o reconhecimento de Jung e a criação do Museu de Imagens do Inconsciente.

Uma pioneira.
Nise da Silveira nasceu em Alagoas em 1905, foi a única mulher em uma turma de medicina com 157 homens; casada e já no Rio, foi denunciada como comunista e presa por 15 meses, o fato prejudicou sua carreira, mas não foi suficiente para destruí-la.  Reabilitada em 1944, passa a se dedicar a um ramo pioneiro da psiquiatria, a terapia ocupacional.  Nise também, pode ser vista como responsável pela criação dos hospitais-dia, que atendem doentes não reclusos, algo igualmente revolucionário.  Seus escritos e estudos, sua interação com Jung, o diálogo intenso que manteve com a ciência e a arte, seu humanismo em tempos de violência contra os doentes psiquiátricos era a regra, a tornaram uma pessoa única.  Ela merecia mais que um filme, não que o premiado Nise não seja um bom ponto de partida.

O filme é eficaz ao delimitar sua história, dar-lhe como balizas o ano de 1944 e a criação do museu.  A narração não está em ordem cronológica, há liberdade criativa, afinal, é cinema, reorganizan-se fatos, utilizam-se estratégias para criar o drama.  Criam-se, também, os vilões – os médicos que se opõem às terapias humanistas e modernas de Nise – e uma heroína inflexível nas suas crenças, o resto das personagens cumpriu bem seu papel, com destaque para o trabalho do elenco de doentes psiquiátricos.  Não é um filme perfeito, mas funciona.  E olha que na abertura, uma das primeiras cenas, há uma gafe grande.  O ano é 1944 e é dito que o português António Egas Moniz recebeu o Nobel relacionado aos estudos de lobotomia.  O prêmio só seria recebido em 1949. 

Obra de Lúcio Noeman antes e depois da lobotomia.
Para quem não sabe, a lobotomia é uma técnica cirúrgica “(...) que, ao destruir a substância branca dos lobos temporais do cérebro, provoca uma alteração da personalidade. Essa prática, recomendável em casos definidos como extremos no que concerne à agressividade e à dor, provoca uma deterioração cerebral irreversível. Os avanços da psicofarmacologia determinaram o declínio de tais intervenções. No Brasil, o emprego da lobotomia foi abolido em 1955”. (Memória da Loucura)  Certamente Nise teve papel nesta proibição.  

Em relação à lobotomia, algo que se tornou vulgarizado ao extremo, o filme acompanha o drama de Lúcio Noeman (Roney Villela), paciente violento que se transforma através da arte.  Ele se mostra competente escultor e passa por vários avanços ao ser introduzido a outro dos tratamentos de Nise, o convívio com os animais.  A falta de compreensão dos colegas médicos em relação aos modernos tratamentos, porém, faz com que Lúcio tenha uma forte crise e seja lobotomizado.  Sua arte nunca mais será a mesma.

Tesouros.
O filme discute a importância da teoria ocupacional, das idéias de Jung, mas, principalmente, a força e determinação de Nise.  A interpretação de Glória Pires é bem equilibrada, e ela foi premiada no festival de cinema de Tokyo por sua atuação.  A atriz consegue passar a imagem de seriedade, tenacidade e competência que a personagem exige.  Nise acredita nas suas idéias e capacidades, ela sabe que não ocupa o lugar que ocupa, uma mulher em uma profissão de homens, à toa.  Só que tudo é dosado com a ternura e a vulnerabilidade nos momentos certos, como quando Nise está com o marido, o sanitarista Mário Magalhães (Fernando Eiras), ou seus gatos.

Assistindo ao filme aprendi várias coisas.  Não sabia quem era Emygdio de Barros (Claudio Jaborandy), considerado um gênio brasileiro da pintura.  Sua vida poderia dar outro filme.  Também nunca tinha ouvido falar do crítico de arte Mário Pedrosa (Charles Fricks), que não foi o único a apoiar Nise, mas que aparece em vários momentos do filme.  Ele é quem sugere que Nise exponha os trabalhos dos internos atraindo a atenção da opinião pública e, de certa maneira, impedindo que os médicos, seus opositores, consigam obstruir seu trabalho.

Os internos.
Que mais falar?  O elenco é composto por excelentes atores, como Fabrício Boliveira, que interpreta o jovem Fernando Diniz, um dos internos.  Roberta Rodrigues faz a enfermeira Ivone.[1]  E há a transformação do enfermeiro Lima (Augusto Madeira), que praticava bullying contra os internos, era violento e se recusou, no início, a cooperar com a Dr.ª Nise, em um aliado.  Ele não se torna um anjo, continua um cara vulgar, mas ele passa a acreditar nos métodos da protagonista.  É uma situação meio clichê, claro, o homem que se insubordina contra uma mulher em posição superior, mas o filme trabalhou bem esse elemento repetitivo.

Algo que não gostei, e não gostei mesmo, foi não darem o cartaz devido ao artista Almir Mavignier (Felipe Rocha), um dos principais aliados de Nise.  Foi ele quem sugeriu que ela montasse um atelier de pintura e forneceu o material necessário.  São dele as fotos do encontro entre Nise e Jung no 1º Congresso Mundial de Psiquiatria em Zurique.  Foi ele que ajudou o interno Raphael Domingues (Bernardo Marinho), o segundo mais genial dos pacientes de Nise, a se expressar.  No filme, sequer o sobrenome de Almir Mavignier aparece, não se tem a dimensão da importância dele.  Fora isso, criaram a personagem de Georgiana Góes, Marta, para cumprir uma função clichê de musa de Raphael, tirando de Mavignier o seu papel.  

Romance inexistente e desnecessário.
O filme não precisava de um romance, Marta não existia, ainda que a sugestão para que Raphael pintasse um burrinho tenha realmente sido feita por um assistente.  Quem vai para a Europa é o próprio Mavignier.   Por que não lhe dar o cartaz devido?  Aliás, achei verbete da Wikipedia sobre ele em alemão e não em português.  Estranhíssimo.  Outra coisa que me desagradou, foi a cena de sexo entre dois internos que caiu de paraquedas em um determinado momento do filme.  Ela não se liga com o que vem antes, tampouco se conecta com o que vem depois.  Me pareceu uma cena grosseira e que não serviu sequer para ilustrar que os internos tinham vida sexual, porque a afetividade, algo que na época era negado que os esquizofrênicos tinham, já estava mais que assentada na narrativa.

O filme cumpre a Bechdel Rule?  Cumpre, sim.  Nise, Ivone, Marta, Adelina Gomes (Simone Mazzer), Eugênia (Luciana Fregolente), Carmem (Zezeh Barbosa), todas, em algum momento interagem entre si.  A conversa pode ser sobre algum homem, um interno, mas nem sempre é.  De resto, há um diálogo interessantíssimo entre Nise e o marido, ela feliz por receber a resposta de Jung, apesar dele achar que ela era um homem. “Até Jung é machista”.  Sim, o machismo é estrutural e Nise era uma exceção em sua época, uma importante exceção.  Sabem de uma curiosidade?  Nise e o marido decidiram que não teriam filhos para poderem se dedicar às suas carreiras.  Algo um tanto incomum para a época, mas que reforça a singularidade desta cientista brasileira.  Nise deveria ser bem feminista para a sua época.

A verdadeira Nise.
Terminando, foi um bom filme.  Contido na medida certa.  Me interessou mais que Aquarius, por exemplo, ainda que a atuação de Sônia Braga seja mais arrebatadora do que a de Glória Pires.   Nem poderia ser diferente, aliás.  Aquarius é, também, um filme mais arrojado, criativo, ainda que Nise consiga ser muito mais coeso e tenha um roteiro melhor amarrado e personagens que realmente fazem diferença e tem vida própria dentro da trama.  É um filme sobre Nise, mas não um filme egoisticamente fechado nela.  Recomendo.  

A sua maneira, Nise pode ser tão inspirador quanto Hidden Figures, afinal, esta nossa cientista brasileira fez história e brilhou em uma carreira que, na época, era majoritariamente masculina.  No finalzinho do filme, a própria Nise aparece e, bem, é impossível não lamentar que Glória Pires não tenha posto um sotaque alagoano na personagem, o sotaque que a própria Nise, bem velhinha mantém.  Nenhum dos nordestinos do filme, aliás, tem sotaque algum, todos usam um registro carioca quase neutro, sem se arriscar.  Uma pena!

[1] Há quem reclame que o filme não deu o devido cartaz ao fato de Nise ser militante do PCB.  Desculpem, mas o maior problema do filme, e que descobri somente agora, foi omitir que a Enfermeira Ivone era a grande Ivone Lara, falecida no último dia 16/04.  Em um trecho de uma matéria, olhem só: "Enfermeira e assistente social formada, Dona Ivone foi pioneira também na saúde pública. Terapeuta ocupacional, trabalhou como assistente da psiquiatra Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o tratamento de doenças mentais no Brasil ao utilizar a arte como terapia."  Um filme sobre uma mulher que ignora outra de grande importância e magnitude.  Ivone Lara foi sambista e mulher da ciência, precisa ser lembrada pelas duas coisas.



2 pessoas comentaram:

Assisti esse filme ano passado. É mesmo muito bom. Fiquei surpresa por Nise da Silveira não ser uma figura conhecida no país. Surpresa e um pouco triste, afinal o trabalho dela não foi pequeno.

É tudo tão lindo no filme! Gloria Pires merecia o Oscar

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