segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Comentando Lion - Uma Jornada para casa (Lion, 2016)



Sexta-feira assisti Lion, um dos filmes na corrida para o Oscar.  Quando me interessei pelo filme sabia poucas coisas: o protagonista usou o Google Earth para reencontrar a família na Índia e que o rapaz era interpretado pelo Dev Patel de "Quem quer Ser um Milionário?".  Acabei me surpreendendo com o filme por abordar um leque grande de questões como a exclusão social extrema, a adoção, o que é uma família, a busca pelas origens.  É um belo filme, aqui e ali, ele pode parecer um tanto lacrimogêneo, mas como não ser quando você conta a história de uma criança que se perdeu da família e que, 20 anos depois, parte em uma jornada para encontrá-la?  E isso é somente parte de Lion, o filme é bem maior que isso.

O resumo básico da história é o seguinte: Saroo (Sunny Pawar) é um menino de cinco anos que mora com sua mãe e dois irmãos em uma situação de miséria.  Um dia, Saroo convence o irmão mais velho, Guddu (Abhishek Bharate), a levá-lo com ele em seus biscates noturnos.  Eles tomam o trem, o menino dorme e Guddu o deixa em um banco da estação asseverando que voltará para buscá-lo.  O pequeno Saroo acorda e termina entrando em um trem estacionado, cochila e é levado para Calcutá.  São 1600 quilômetros de distância e, para piorar, o garotinho não sabe a língua principal daquela cidade, o bengali.  Saroo só fala hindi.  O menino aprende a sobreviver nas ruas de Calcutá, mas termina sendo resgatado e levado para um orfanato precário.  Depois de alguns meses, Saroo acaba sendo adotado por um casal de classe média alta australiano.  

O pesadelo de acordar sozinho na estação de trem.
Com uma família amorosa e uma boa acolhida, Saroo (Dev Patel) deixa no fundo da memória as lembranças de sua família biológica.  No entanto, vinte anos depois, quando estudava em uma escola internacional de hotelaria em Camberra, o convívio com colegas vindos da Índia faz com que as lembranças sejam reavivadas.  A partir daí, o rapaz mergulha em uma crise, sente ansiedade, culpa em relação aos pais adotivos e medo, até que, finalmente, descobre o caminho para casa com a ajuda do Google Earth.

Dirigido pelo estreante Garth Davis, Lion é baseado em uma história real.  Quando a informação apareceu na tela, fiquei me questionando se seria mais uma grande mistura de eventos e temporalidades como em Hidden Figures, mas, não, ao que parece o filme acompanha os fatos narrados por Saroo Brierley em seu livro A Long Way Home.  Como pontuei lá no primeiro parágrafo, o filme tem grande potencial para fazer chorar.  Eu chorei três vezes, se estivesse mais sensível, teria chorado mais.  Trata-se de um filme engajado, afinal, cerca de 80 mil crianças desaparecem por ano na Índia.  Quantas são encontradas?  Fora isso, pelo mundo a fora, há milhares de crianças aguardando um lar adotivo.  Quantas efetivamente são adotadas?  

5 anos, sozinho e sem falar a língua.
Vi resenhas dizendo que Lion era uma peça de propaganda.  Não, não é, mas ainda que fosse, qual seria o problema?  Volta e meia pipocam em nossos cinemas filmes propaganda de várias causas, não raro questionáveis, como as ações imperialistas ou a superioridade moral-intelectual-religiosa de um povo em relação aos outros, interesses comerciais e a difusão de crenças religiosas muitas vezes estão por traz de algumas películas.  Ora, se Lion ajudar uma única criança a encontrar seu lar, seja o biológico, ou um adotivo, já será ótimo.  O fato é que Lion traz um elenco excelente e que trabalha de forma articulada, destaque para o pequeno Saroo, Sunny Pawar, e não se utiliza de uma narrativa linear, nem de cenas melosas ou exageradas, em especial, na primeira parte do filme.

Só assistindo Lion, entendi o porquê de Dev Patel estar indicado à coadjuvante, ele só aparece em metade do filme, a outra metade é do pequeno Sunny Pawar.  O garotinho reaparece, também, nas memórias do Saroo crescido, lembranças que vão retornando conforme ele inicia sua busca.  Tentem somente imaginar a dificuldade   de achar uma pequena vila na Índia tendo somente um nome que, lá pelas tantas, descobrimos que o pequeno Saroo sempre pronunciou errado.  E toda jornada do Saroo adulto, então um perfeito australiano, ao passado inicia-se com um gatilho gastronômico.  Quando menino, ele sonhava em comer um doce.  Pedia o doce para o irmão Guddu, mas eles não tinham recursos.  Na casa dos colegas indianos de curso, o doce está lá e Saroo redescobre o indiano que habita dentro dele.

O amor entre irmãos pintado de uma forma muito sensível, também.
Falando da primeira parte do filme, como mãe de uma criança pequena fiquei imaginando o desespero de perder um filho.  Fácil imaginar.  Fora, claro, o desespero que é não saber se alguém amado está vivo, ou morto.  O drama de ter alguém desaparecido é algo que congela a vida de uma pessoa, de uma família, pois sempre resta a esperança, aquele fiapo de dúvida.  No caso de Saroo e sua família foram 25 anos de angústia.  Há quem espere muito mais, há quem nunca receba uma resposta.

O Saroo menino consegue passar bem o desespero de alguém que não conhece a língua, uma criatura pequenina perdida em uma das maiores estações de trem do mundo.  Depois de descobrir-se incapaz de comunicar, o silêncio predomina.  Aqui e ali, alguém demonstra apoio ou aversão.  Há a moça fazedora de marmitas que o acolhe, mas pretendia entrega-lo ao amante.  Na hora, eu gelei.  O homem era sinistro.  Imaginei pedofilia ou tráfico de órgãos.  Saroo escapa, mas termina em um orfanato enorme que é um depósito-prisão de crianças, onde maus tratos são frequentes e os pequenos com necessidades especiais não recebem a atenção devida.  Lembrei de Charles Dickens, Oliver Twist, em especial, nesta parte do filme.

A cena das borboletas é linda. 
Saroo é adotado e o filme mostra sua família ávida por dar amor e atenção ao pequeno.  Nicole Kidman recebeu merecida indicação pela interpretação de Sue Brierley, mãe extremada que não faz acepção entre filhos biológicos ou adotivos, que não lamenta a chegada de um segundo menino com transtornos mentais e compreende a busca do filho.  Uma das cenas de Kidman e Patel, em especial, é muito interessante para discutir o verdadeiro (*se é que ele existe*) significado da maternidade.  Adoção não deveria ser substituição, um filho ou filha adotivo não deveria ser acolhido para ocupar um lugar vazio.  

Esta foi uma cena que me fez chorar, porque, bem, minha percepção da adoção é idêntica à da personagem.  Eu também desejava adotar, ter uma criança biológica ou uma adotiva sempre me pareceram a mesma coisa, o exercício da maternagem seria a parte importante.  A personagem de Kidman anula a idéia de filho verdadeiro como aquele que é gerado, todos os filhos são verdadeiros. Fora isso, ela e o marido viam o mundo superpovoado.  Procriar para quê?  Há tantas crianças precisando de um lar.  Mas Sue encontrou quem compartilhasse o seu sonho, eu, não.  Enfim, se Nicole Kidman levar o Oscar de melhor coadjuvante, eu fico contente, mas acho que não vai ganhar, acredito que seja Viola Davis.

A dificuldade de lidar com um filho com transtornos mentais.
Em nenhum momento do filme fica claro se os Brierley sabiam que Mantosh (Divian Ladwa), o segundo filho adotivo, tinha transtornos mentais.  Ele é acolhido da mesma forma, com a mesma intensidade, mas o que fica claro é a dificuldade no relacionamento entre Saroo, que tem dificuldades em aceitar o novo irmão, e Mantosh.  Saroo conseguiu aproveitar todas as oportunidades de uma vida de privilégios, Mantosh, não.  Saroo o vê como uma fonte de sofrimento para os pais adotivos e culpa o rapaz, pior ainda, se culpa por desejar reencontrar sua família de origem, rever seu amado irmão Guddu.

Lion não é um filme difícil, tampouco é um dramalhão, mas toca em vários assuntos espinhosos que parecem ficar em segundo plano quando a propaganda vem com “ele reencontrou a família usando o Google Earth”.  Isso é somente parte do filme e devo dizer que a segunda parte, a de apresentar um jovem bem-sucedido e aculturado, mergulhando dentro de si e colocando em risco seu futuro, o romance com uma garota legal, Lucy, papel que exige pouco da excelente Rooney Mara, e prejudicando sua relação com a família.  A segunda parte mostra um sujeito deprimido boa parte do tempo e ver gente deprimida é algo que pode contaminar a gente, também.

Rooney Mara talvez seja boa demais para o papel.
Só para fechar, a explicação do nome do filme – Lion (Leão) – vem no final.  Não darei spoiler, mas é algo curioso e que aponta para a falta que uma educação formal faz às pessoas.  O filme até faz algo que não me agrada geralmente, isto é, colocar as personagens reais para aparecerem em tela.  O Saroo de Dev Patel é muito mais bonito (*E como esse menino está bonito*) que o original, mas foi bom saber que o menino adotivo não virou as costas nem para a família biológica, que o perdeu, vejam bem, não o entregou para adoção, nem para a adotiva.  Foi interessante, também, ver o agradecimento da mãe biológica por terem cuidado de seu menino, por lhe darem condições de uma vida muito melhor.

Lion foi indicado a vários prêmios e ganhou o Bafta, prêmio do cinema inglês de melhor ator coadjuvante (Patel) e roteiro adaptado.  Estava indicado a mais três prêmios.  O filme concorre ao Oscar de melhor filme, ator e atriz coadjuvantes, roteiro adaptado, trilha sonora, e fotografia.  Eu acredito que tenha chance em roteiro adaptado, nas outras categorias imagino que sejam favas contadas.  Dev Patel não deve levar o prêmio de ator coadjuvante, ele deve ir para Mahershala Ali por Moonlight, que eu espero assistir na sexta-feira.

Finalmente, Saroo encontra o caminho para casa.
Que mais falar?  Não sei se o filme cumpre a Bechdel Rule, mas ele tem várias personagens femininas com nomes e que até trocam algumas palavras.  Também não é um filme feminista, ainda que ao colocar em cheque a questão da maternidade biológica compulsória, ele possa se aproximar das discussões feministas.  Aproximar, porque, bem, a personagem de Kidman só consegue se compreender como mãe, esta é sua missão.  Já a Lucy, de Rooney Mara, talvez passe uma mensagem mais forte no sentido da autonomia e autoestima.  Ela ama Saroo, mas ele não parece enxergá-la por causa de sua obsessão.  As decisões da personagem são bem melhores do que as que encontramos em muitos filmes e livros por aí.

De resto, é um filme sobre família, reencontro com as origens, adoção, persistência.  É um filme bonito e bem executado e para lhe dar menos de 4 estrelinhas de 5, alguém precisa ter muita má vontade.  Normalmente, vi críticas ruins de gente que odiou “Quem quer ser um Milionário?”.  Como eu gostei do filme e não acredito que apresentar uma causa nobre seja problema, dou minhas 4 estrelinhas e meia para Lion.  Outro filme melhor que La La Land, mas esta é só a minha opinião.

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