O último programa que assisti em 2016 (*o derradeiro episódio vi esta semana passada, já no Rio*) foi o docudrama da BBC chamado Six Wives with Lucy Worsley exibido em dezembro de 2016. Eu decidi pegar esta série de três episódios por dois motivos, primeiro, por me interessar por biografias em geral, não raro aquelas deliciosas fofoquinhas que ajudam a dar cor e sabor às análises mais sérias; segundo, porque a proposta era ver as seis esposas de Henrique VIII (*que nem aparece no título*) a partir delas e, não, dele. Olha, só por essa proposta, eu já pagaria para ver, porque, bem, elas, as rainhas, só o foram por serem casadas com Henrique VIII, então, seria fantástico se os docudramas trouxessem algo mais. Foi uma decepção.
Sempre abrindo com a frase "Divorced, beheaded, died. Divorced, beheaded, survived" (Divorciada, decapitada, morta. Divorciada, decapitada, sobreviveu.), os
três capítulos nos contam o dramáticos acontecimentos (*porque foram mesmo*) da vida
das seis esposas do Rei Henrique VIII (1491-1547), um dos monarcas mais polêmicos que a Inglaterra já teve: Catarina de Aragão (1485-1536), Ana Bolena (1501/07-1536), Jane Seymour (1508-1537),
Ana de Cleves (1515-1557), Catarina Howard (1523-1542) e Catarina Parr (1512-1548).
O objetivo da historiadora Lucy Worsley era desconstruir a imagem
tradicional dessas mulheres, oferecendo um outro olhar que se contrapusesse,
acredito eu, ao dos docudramas de David Starkey, seu rival, feitos em
2001. Tendo assistido a ambas as séries,
tenho que deixar registrado que a de Starkey é muito superior e não somente por
ter mais um capítulo.
Seis esposas. |
O
primeiro problema com Six Wives with Lucy Worsley é que a série tem somente
três capítulos. Muito pouco,
especialmente, se você concentra praticamente todo o episódio 1 em Catarina de
Aragão. Este episódio, aliás, é o melhor
de todos, a começar por terem escalado uma atriz loura, Paola Bontempi, para o
papel da princesa espanhola. Um dos
erros comuns – e esse foi cometido no docudrama de 2001 – é colocarem uma
morena no papel de Catarina de Aragão. É
espanhola, é morena. Em Ana dos Mil Dias, escalaram Maria Calas, a cantora de ópera grega, para o papel, por exemplo. Só que todas as
fontes sobre a princesa filha dos reis católicos – Isabel de Castela e Fernando
de Aragão – a descrevem como loura. As casas reais casavam entre si, então esses estereótipos são totalmente furados. Morena mesmo, só Ana Bolena.
Parece
que Worsley tem particular predileção por Catarina de Aragão. OK, eu também gosto bastante dela. Por conta disso, quis mostrá-la como ativa,
uma rainha guerreira, e uma mulher que foi amada e amou, afastando-se da imagem
de mulher amargurada que alguns querem colar nela. Tudo bem, mas isso não é novidade para quem
lê sobre os Tudor ou assiste documentários.
Será que o contraponto era com a série The Tudors? Eu só assisti ao primeiro capítulo e um dos
motivos que me afastou da série foi a forma grosseira como Henrique VIII tratou
a esposa, contrariando o que as fontes diziam para a época, antes do caso com Ana Bolena.
Só
que foi uma boa abordagem de Catarina, o problema mesmo foi a forma como Ana
Bolena foi tratada. Goste-se de Ana
Bolena, ou não, ela foi uma mulher formidável.
Apostou tudo e perdeu tudo. Recusou-se
a ser amante e exigiu ser esposa.
Conseguiu levar o rei mais católico da Europa a romper com Roma. Prometeu-lhe um herdeiro, não conseguiu
cumprir a promessa. Percebeu que o amor
do rei era volúvel e que, como esposa, ela não deveria contrariá-lo, mas uma
mulher como ela, de língua ferina e fortes ideias, isso era tarefa difícil. Queria exclusividade, algo que teve quando
era amante, mas ao tornar-se esposa, deveria se curvar “às necessidades” do
marido, algo que Catarina de Aragão sempre fez.
A
Ana Bolena de Worsley fica espremida entre uma Catarina de Aragão muito forte e
uma Jane Seymour pintada como capacho.
Não tem um capítulo próprio e aparece pouco no episódio 1. Não é possível avaliar bem as contradições de sua personalidade riquíssima, a abordagem é muito suoerficial, enfim. A novidade,
pelo menos para mim, é a consulta à coleção de cartas de amor de Henrique e Ana
Bolena da Biblioteca do Vaticano. Ninguém sabe como elas chegaram lá e era a primeira
vez que um equipe de TV tinha acesso ao material.
De resto, nada é aprofundado sobre a questão religiosa, os rogos para
que Catarina de Aragão abraçasse a vida religiosa e salvasse a igreja da
Inglaterra do cisma, ou o papel de Ana Bolena como defensora das ideias
reformadas.
A
Ana Bolena trouxe livros e ideias para a Inglaterra, ela tinha um volume da
Bíblia em inglês, discutia teologia com o rei, nada disso apareceu de forma clara. A querela pela anulação do casamento com
Catarina de Aragão foi tratada com uma superficialidade absurda. Falar de Henrique VIII e suas esposas e não
falar da Reforma Protestante não faz sentido. Os docudramas não precisavam reduzir as esposas do rei à joguete das
facções católica e protestante, mas tinham que explicar as coisas. A Ana Bolena
do seriado, Claire Cooper, faz cara de coitada o tempo inteiro. As fontes sobre Bolena falam que ela não era
particularmente bonita, mas sabia seduzir com os olhos, a boca, sua figura
elegante, sua inteligência. A do docudrama parece tímida e acabrunhada, não uma mulher brilhante.
Quando
chegamos em Jane Seymour (Elly Condron), a terceira esposa, a que dá o filho homem ao rei, sua
história já se mistura com a de Ana Bolena com a narradora/apresentadora
associando o início do seu caso com ele ao último aborto sofrido pela segunda esposa de
Henrique VIII. A partir daí, a narração
da queda da mãe da futura Rainha Elizabeth é rápida. Nem dão detalhes sobre a sua execução, como o
fato do rei ter mandado buscar um carrasco na França, do uso da espada ao invés
do machado, e de ter sido uma execução privada. Já Jane Seymour é quase uma massa inerte, nem o jogo de parecer casta para merecer ser esposa é abordade.
Jane
Seymour é descrita como católica, mas sem aprofundarem as discussões
religiosas, essa informação passa batida.
Não se dá nem o detalhe de que, para Roma, o casamento com Seymour
era legítimo, afinal, Henrique estava viúvo de Catarina de Aragão. O episódio 2 fala por alto da Peregrinação da
Graça, a maior revolta contra Henrique e promovida por católicos. Só que é tão por alto que nem dá para saber
do que se trata realmente. Há aquela clássica cena
da intervenção de Jane pedindo que Henrique não dissolva um determinado
mosteiro (*no docudrama são todos*) e o rei dizendo “Lembre-se da outra rainha”,
para que a esposa entenda o seu devido lugar. Quem não recuaria?
Morta
Jane Seymour, a única a cumprir com seu dever, o capítulo final corre para apresentar as três últimas
esposas de Henrique. Apesar dos três anos de viuvez do monarca, da depressão que parece ter se abatido sobre ele, o episódio diz que ele correu para se casar de novo. Não se toca nas pressões do conselho, de
Thomas Cromwell, de nada. Entra em cena
Ana de Cleves e escolhem uma atriz belíssima, Rebecca Dyson-Smith, para o
papel. A proposta de Worsley é se opor à ideia de que a nobre alemã era feia e defender que a dissolução do casamento foi fruto
da impotência de Henrique, que ele inventou várias desculpas para se livrar
dela.
Bem,
bem, neste caso, eu chamaria as fontes e Antonia Fraser, além dos docudramas de
David Starkey. Ana de Cleves não é
descrita como feia nas fontes de época, mas não é apresentada como bonita, também. Henrique era um sujeito peculiar, ele só se casara com mulheres que ele tinha visto. Ele, mal ou bem, se apaixonava primeiro, casava depois. Por isso mesmo, enviou seu melhor retratista, Holbein, para pintar a moça. Há quem acredite que ele a embelezou. Na verdade, o casamento com Ana de Cleves, a aliança
protestante proposta por Thomas Cromwell, era seu primeiro casamento político,
por assim dizer. E isso era coisa muito estranha para a época, afinal, casamentos reais eram alianças políticas, questões afetivas ficavam fora da relação. Mas o que não era estranho em relação à Henrique VIII?
E
ele não gostou da noiva que recebeu, uma moça que não falava sua língua, que não
tinha sido criada em uma corte renascentista, sem grande instrução (*Henrique
era muito culto*), que não entendeu a peça que o rei queria lhe pregar (*nem o
reconheceu*) e que não se vestia segundo a moda da Inglaterra. Foi um fiasco que custou a vida de Thomas Cromwell, o homem que fora ameaçado por Ana Bolena e conseguiu destruí-la (*nada
disso é dito no docudrama*), um dos líderes da reforma dentro do governo e que
queria que o protestantismo avançasse na Inglaterra. De resto, Ana
de Cleves até que se saiu bem, foi compensada com propriedades e dinheiro por
Henrique, sobreviveu, mas não pode voltar para casa.
A
quinta esposa, Catarina Howard (Lauren McQueen), era prima de Ana Bolena, oriunda do poderoso
clã Howard, que puxava o partido católico, e uma adolescente quando casou com
o cinquentão Henrique. Lucy Worsley deseja transformá-la em uma
mártir utilizando-se das sensibilidades modernas, como a questão da pedofilia. Para ela, Catarina Howard poderia ter até quinze
anos quando se casou com o rei. Ela era adolescente, mas improvável que fosse
tão jovem. A narradora a trata como “criança
abusada”, que foi seduzida (*e violentada*) por homens adultos e (*provavelmente*) chantageada
pelo seu último (*suposto*) amante, que conhecia seu passado.
Explicando,
Catarina Howard foi acusada de adultério e provas foram encontradas de que ela
se encontrava com um nobre chamado Thomas Culpepper. Para Worsley, Culpepper
chantageou a rainha e a carta encontrada, a maior prova contra ela, era não uma
carta de amor, mas uma confirmação de que estava sendo chantageada e constrangida
pelo sujeito. Worsley apresenta
Culpepper como um sedutor e estuprador, mas, enfim, nada do seu currículo o
tornaria algo assim no século XVI, tampouco a jovem Catarina seria visto como
criança naquele período.
Agora,
é fato que ela não tinha preparação para ser rainha. Muito jovem, e apesar de nobre, ela tinha
poucos recursos, e fora enviada para a casa da duquesa viúva de Norfolk. Sua avó emprestada, por assim dizer. Deveria lá ter uma educação adequada e ser
preparada para um casamento vantajoso.
Nada disso recebeu e foi exposta à predadores sexuais. O caso era sabido pela duquesa que afastou os
sedutores, mas o estrago estava feito.
Levada para a corte pelo tio, o duque de Norfolk, líder do partido católico,
ela atraiu a atenção do rei, o já doente Henrique VIII, que caiu de amores por
ela. Catarina o rejuvenesceu, ele a
cobriu de jóias, mas ela não tinha preparo para jogar aquele jogo e foi
aniquilada sem dó pelo partido protestante, na figura do Arcebispo de
Canterbury, Thomas Cranmer.
Não
discordo que Catarina Howard era uma coitada, mas não era inocente aos olhos
da época dos erros que cometeu. Uma
leitura feminista, e esta, presumo eu, era a proposta dos docudramas, deveria
ter questionado a sociedade e as leis que possibilitaram uma Catarina Howard,
assim como possibilitariam anos depois uma Jane Grey. Adolescentes executadas por questões
políticas sem sequer terem poder algum para definir seus destinos. De resto, foi fácil para Henrique se desfazer das
suas esposas por serem suas súditas. E como, sem poder se livrar de uma delas, Catarina de Aragão, uma princesa com parentes poderosos, a atormentou e humilhou, porque ela resistiu.
Por
fim, o docudrama traz para a tela Catarina Parr (Alice Patten), a mais protestante das esposas
de Henrique, a mais madura, também. Duas vezes viúva, culta, e que aproveitou para aprender ainda mais depois de casada, já que assistia as aulas dos filhos do rei com os melhores mestres, o objetivo de Worsley
é romper com a imagem da enfermeira (*sei lá
o que ensinam nas escolas inglesas*) e mostrar o quão ativa e amante da
vida e de suas boas coisas ela era. Não
se fala profundamente da amizade dela com a princesa Maria, filha de Catarina
de Aragão, apesar das questões religiosas que as separavam, mas, de novo, pouco se falou de
questões religiosas de fato. Não se dá o devido valor ao fato dela ter sido a única mãe que o futuro Eduardo VI teve, mas a relação com Elizabeth, a filha de Ana Bolena, é bem desenhada.
O
docudrama supervaloriza os livros escritos por Parr, como se nenhuma mulher
inglesa tivesse escrito nada antes, quando o maior choque deveria ser uma mulher
escrevendo sobre teologia em um momento tão turbulento. Como o tratamento da questão religiosa é muito
superficial, a própria situação da quase morte de Catarina Parr é confusa. Ela era ativa promotora da Reforma, suas
ideias eram tidas como radicais, Henrique, já debilitado, não era um ardoroso
defensor das novas ideias e só queria mandar na sua igreja e viver o resto de seus dias em paz. De resto, ele não queria uma mulher tentando
lhe ensinar religião. Catarina quase
perdeu a cabeça, mas, inteligente como era, virou a mesa e sobreviveu ao perigo
e ao rei.
Enfim,
não sei por qual motivo fiz essa resenha.
Talvez, a vontade de escrever. O
impulso mesmo. Eu realmente não
recomendo esse docudrama para ninguém. É
meio perda de tempo, pois há materiais melhores. O livro de Antonia Fraser, e o docudrama de David
Starkey. Sim, eu sei, Starkey é um
racista misógino que está queimadíssimo na Inglaterra, mas na sua série de
documentários oferece muito mais material para reflexão e discussão. Quando dava aula de História do Cristianismo,
exibia os documentários para minhas turmas e as legendas em português para esta
série foram traduzidas por mim. Estão no Opensubtitles. Para quem gosta do período Tudor, vale
comparar as duas séries, claro.
Ah,
sim! Gostei do figurino, mas não sou
especialista no assunto como as moças do Frock Flicks. Achei a mudança dos
Henriques, o primeiro (Scott Arthur)
era muito bonitão, para o velhinho obeso (Richard Ridings) muito abrupta,
especialmente, por darem a entender que de Jane Seymour para Ana de Cleves foi
um pulo. Ficou parecendo que ele se
estragou da noite para o dia e não foi bem assim, não... De resto, as intervenções da narradora foram mais
irritantes do que enriquecedoras, especialmente, quando ela aparecia vestida em
roupas de época e inserida nas cenas.
1 pessoas comentaram:
Vou te contar, amo essa análise! Já devo ter lido à ela umas 3 vezes achei aliás tão bem feita e detalhada que de imediato me lembrei dos comentários feitos pela Maria Helena do site Boullan, que aliás foi bem direta (e até mordaz,rsrs) algumas vezes e com razão por sinal. Eu mesmo ainda tô aprendendo a respeito dessas histórias todas e devo dizer que é muito bom que hajam trabalhos assim como sua análise e o dela lá dailymotion onde ela comenta sobre cada ep da série e tem um veredito aliás bem semelhante ao seu,rsrs. Depois de ver o comentário e ler aliás aqui e Às observações dela passei a entender o porquê das críticas, me incomoda aliás que uma historiadora leve às telas um trabalho desse. Vá lá que o documentário seja curta, ainda dá pra relevar, mas esses erros cometidos... Fora que boa parte são bem bobos. Vá lá que em séries eles inventem e até distorçam (vá lá nada mas pelo menos é só uma série mais pra entreter e faturar então é de se esperar as mudanças) muita coisa mas em documentários? Sejamos mais moderados por favor. Ah e tem outra série sobre elas também com Suzannah Lipscomb e Dan Jones, essa ia te fazer subir pelas paredes!
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