segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Comentando The Crown - Episódios 7-10


Esta semana passada, terminei de assistir The Crown, série da Netflix que se propõe a ser uma biografia da Rainha Elizabeth.  Este é o terceiro texto sobre o seriado, o primeiro foi sobre os episódios de 1-5, o segundo, sobre o episódio 6.  Enfim, confesso que assisti o resto da série no automático.  Achei o episódio 7 muito interessante, mas só voltei a me sentir estimulada no episódio 9, que foi o da renúncia de Churchill (John Lithgow).  Antes que alguém grite “spoiler”, História não é spoiler, como bem disse o pessoal do site Frock Flicks.  

Só para situar quem quiser começar a leitura por este texto, a rainha Elizabeth II (Claire Foy) sucedeu ao pai, George VI (Jared Harris), em 1952, aos 25 anos.  Ela era herdeira presuntiva do trono desde os 10 anos de idade, quando seu tio, Eduardo VIII (Alex Jennings), chamado de David ou Duque de Windsor na série, renunciou ao trono para se casar com a norte-americana duas vezes divorciada Wallis Simpson (Lia Williams).  A primeira temporada começa no ano da coroação de Elizabeth, com vários flashbacks da infância e adolescência da rainha, e segue até 1955 e a crise decorrente do romance da princesa Margaret (Vanessa Kirby), irmã da soberana, com o capitão Peter Townsend (Ben Miles), um homem divorciado.  A série cobre, também, o duro aprendizado da jovem rainha em como deixar de ser Elizabeth Windsor (*ou Mountbatten*) e se tornar “A Coroa”, além do seu conflito com o marido, o Príncipe Phillip (Matt Smith).

Família?
Analisando os últimos quatro capítulos, o capítulo 7 foi muito interessante, porque expôs a educação ultrapassada e castradora recebida pela então princesa Elizabeth.  Ela nunca foi à escola, quando várias princesas europeias já iam até para a universidade.  Ela é perita em direito constitucional, no que se aplica a figura do monarca, mas é só isso.  Ela lembra de vislumbrar uma prova de matemática (*trigonometria, provavelmente*) e seu mestre, que lecionava em Eton, a mais seletiva das escolas britânicas (*para garotos*), e ele diz que aquilo não era digno dela.  

A princesa aprendeu a bordar e outras artes femininas.  Quando confronta a mãe, a, também, Rainha Elizabeth (Victoria Hamilton), sobre isso, recebe como resposta que ela aprendeu a ser uma dama e a ficar com a boca fechada.  E que deveria ficar feliz, porque Margaret, sua irmã caçula, aprendeu ainda menos.  Parece um quadro exagerado, mas é um bom vislumbre do quanto a educação dada às mulheres, nobres, de boa família, ou nem tanto, poderia ser limitadora. 

Conflito entre irmãs, algo bem batido... 
A rainha mãe parecia orgulhosa de sua ignorância, mas esta é, também, uma forma de autopreservação, uma negativa de uma situação que deve ser bem angustiante.  Para a rainha, por exemplo, significava não saber o que conversar com políticos e outras autoridades em jantares e outras ocasiões sociais.  Ela é especialista em cavalos e cachorros de raça.  Elizabeth contrata um professor, passa a ter aulas que podem ajudá-la a expandir sua cultura geral, mas, no fim das contas, essa questão morre aí, com a reafirmação de que ela sabe o que precisa saber, especialmente quando chamada a se comportar como mãe severa, ou babá, de seus ministros que estavam lhe escondendo as péssimas condições de saúde de Churchill e do futuro primeiro-ministro, Anthony Eden (Jeremy Northam).

Foi neste episódio que descobri que Nicholas Rowe, que fez o jovem Sherlock Holmes em O Enigma da Pirâmide, era o secretário de Churchill, Jock Colville.  Comecei a ler Sherlock Holmes por causa desse filme e sempre o imaginei como um dos melhores Holmes.  Só que foi o único papel de protagonista feito por ele.  Já Jeremy Northam foi a segunda melhor encarnação de Mr. Knightley, personagem de Jane Austen.  Ele continua elegante em The Crown, mas teve que anular aquele arzinho meio debochado, meio atrevido que imprime em muitos de seus papéis.

Amor ou Privilégios?
Voltando ao ponto, esperava mais drama no desfecho do romance da princesa Margaret.  A luz sobre Elizabeth foi positiva, ela foi solidária, ela não mentiu sobre a concessão de sua permissão, no entanto, ela teve que impedir o romance.  Duvido que a Elizabeth real tenha sido tão moderna, tão compreensiva.  Pouco se aprofundou da hipocrisia do Conselho de Ministros e do Parlamento.  Vários homens divorciados proibindo um casamento entre uma moça solteira e um homem na mesma condição que eles.  Contra as leis d a Igreja, talvez, mas não incontornável.  O problema é que Margaret também não estava disposta a abandonar privilégios e a família.  

Na série, a questão dos privilégios é marginal, não se toca.  Será que Margaret gostaria de viver com restrições econômicas?  Longe da família e sem, talvez, a pomposa pensão que seu tio Eduardo VIII recebeu depois da abdicação?  Isso era uma ameaça.  A princesa abre mão do amor e jura vingança, mas não sei se foi bem “o dever” que falou mais alto. Cria-se até uma conversa fictícia entre o Duque de Windsor, antigo Eduardo VIII, e a sobrinha, agora, Rainha.  O amor é importante, mas o dever, a Coroa vem antes.  OK, poderia ser para Elizabeth, mas para Margaret?  Com a sucessão assegurada através da irmã?  Tão difícil engolir, quanto a ligação para o tio abominado pela família.  Só que a personagem era tão boa que, bem, querem a todo custo arranjar desculpas para colocar Alex Jennings na conversa.

David e Wallis mereciam uma série.
  Agora, alguém pode ter ficado na dúvida.  Como a Igreja Anglicana proibia o segundo casamento pós divórcio se Henrique VIII casou-se seis vezes?!  Ora, Henrique VIII, como chefe da Igreja, declarou nulo o seu casamento com Catarina de Aragão.  Ela havia sido esposa de seu irmão, algo condenado pela Bíblia, que também mandava que um irmão se casasse com a viúva para suscitar descendência para o falecido... OK, abafa o caso!  Em seguida, o rei se casa com Ana Bolena e, para se livrar dela e casar-se de novo, joga-lhe nas costas uma série de crimes.  Viúvo, casa-se com Jane Seymour, que morre devido a complicações pós-parto.  Casa-se com Ana de Cleves e anula o casamento argumentando não consumação e impedimentos anteriores (*um noivado prévio da esposa, enfim*).  Casa-se com Kathryn Howard, descobre-se traído e manda executá-la. Por fim, casa com Katherine Parr.  Em nenhum momento, pelas leis da nova Igreja da Inglaterra, ele foi divorciado.  Simples assim.

Enfim, o ponto alto dessa segunda parte da série foi o drama de Churchill, seu envelhecimento e o reconhecimento de sua incapacidade de continuar à frente do governo.  O confronto com o pintor convocado para preparar-lhe um retrato comemorativo, o respeito e a amizade se desfazendo quando a obra foi revelada, tudo foi muito bem apresentado.  Lithgow poderia ser Churchill em uma série solo e, provavelmente, ela seria mais profunda que The Crown, que fica nas superficialidades tentando a todo custo passar uma imagem positiva da Rainha Elizabeth.  E quando falo positiva, é preciso pensar em estereótipos de gênero e sensibilidades modernas.

A irmã mais bonita?
Elizabeth II é sensível, introvertida e, por isso, um tanto intimidada pelo papel que é convocada a cumprir, seja diante do marido, que também é súdito, seja frente aos homens que constituem o governo.  E, bem, ainda que ela passe por um certo amadurecimento ao longo da temporada, o que se vê reafirmado nela, pelo menos, até o momento, são papéis de gênero tradicionais: ela é feminina em todos os sentidos, mas forçada pela necessidade e pelo dever, algo que deve estar acima de tudo, se lança em um terreno masculino.  Ela será bem sucedida, mas a qual preço?

Do outro lado, através do Príncipe Philip se reafirmam os papéis de gênero tradicionalmente masculinos.  Philip é homem e, como membro viril de nossa espécie, sente-se castrado por ter que se submeter à esposa, nem que seja nas funções públicas.  E ele desconta como?  Fugindo da convivência com a esposa, buscando uma convivência masculina marcada pelo álcool e outras diversões “naturais” de seu sexo, e oprimindo o filho.  Assim, pelo menos, a série deu a entender.  O próprio Philip fala que Charles é como uma menininha chorona, enquanto Anne, que mal apareceu, é um garoto.  Tudo fora do lugar, tudo errado.  Motivo?  A mãe que não pode abraçar integralmente o seu papel de mulher.  

Velhice e decadência discutidas muito bem em The Crown.
Fora isso, para reforçar os papéis de gênero tradicionais, temos uma Elizabeth insegura e sentindo inveja de sua irmã alegre e cabeça de vento.  De quem papai mais gostava?  Quem é a mais bonita?  Ah, mas uma é rainha e a outra, bem, não é... Mas é livre!  Será mesmo?  O capítulo centrado em Margaret fazendo o papel da irmã durante uma viagem foi interessante, mas nesse nível mesquinho bem tradicional.  Por outro lado, o marido ausente sente uma pontinha de ciúmes de Porchey (Joseph Kloska), Lord Carnavon, amigo íntimo da Rainha e tão apaixonado por cavalos quanto ela.  Segundo a série, ele seria o par perfeito, mas Lilibet preferiu Philip e, a tirar pelo que o príncipe se mostra, fico me perguntando o motivo.  Philip é intragável, elitista,mesmo quando tenta ser gentil e pai presente.  Todas as suas facetas são horríveis, enfim, mas a esposa atura e tem que aturar, porque é esposa e por ser rainha.  Ela escolheu, não foi?  Contra o conselho da família, agora, assuma.

Não consigo ver muito empoderamento em The Crown, a Elizabeth oferecida só pega no tranco e, ainda assim, parece sempre na dúvida se aquele seria o seu lugar e sobre como agir.  Para além do requinte da produção, poucas discussões, como a questão de envelhecimento, foram trazidas para a tela, a coisa ficou restrita a exibição de belos figurinos e ótimas interpretações, mas foi um vislumbre  bem higienizado da vida dos poderosos.  A monarquia é amada na Grã-Bretanha?  Sim.  Ela é cara?  Sim.  Ela traz, também, dinheiro?  Sem dúvida!  Turismo e muitos outros negócios dependem da instituição, se alimentam dela e a alimentam.  Agora, quero ver como assuntos espinhosos serão mostrados em outras temporadas.  Assistirei?  Não sei. 

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