Nesses últimos três dias assisti metade da primeira temporada de The Crown, a série da Netflix que cobrirá a vida da Rainha Elizabeth II. Tinha visto o trailer e ele tinha me fisgado. O zum-zum-zum depois da estréia reforçou a minha curiosidade e, bem, estou gostando do que vejo. Obviamente, poderia resumir o que assisti até agora como uma espiadela cheia de simpatia no mundo das elites e o olhar dos membros dessa casta sobre o resto da humanidade. Se isso não lhe incomoda e se você se contentar com algumas fabulosas interpretações, figurinos e locações de encher os olhos, a série é para você.
A primeira temporada de The Crown cobre os últimos meses do reinado de George VI (Jared Harris) e a ascensão ao trono britânico de sua filha, como Elizabeth II (Claire Foy). A série enfatiza o difícil aprendizado da jovem princesa, agora, monarca, a tutela de Winston Churchill (John Lithgow) e a complicada relação com o marido, o Príncipe Philip (Matt Smith), que se sente humilhado como homem e marido devido a sua condição de subalternidade em relação à esposa.
George VI é pintado como rei consciente de seus deveres e pai amoroso. |
The Crown é a série mais cara já feita pela Netflix e sua produção foi empurrada pelo sucesso entre os norte-americanos de Downton Abbey. Sucesso nos Estados Unidos, a produção da ITV deixou uma lacuna a ser preenchida. Resultado? The Crown é forte candidata a ocupar seu lugar. A fascinação pela nobreza e pela monarquia movem a série, por este motivo, o olhar lançado sobre as elites é extremamente complacente, carregada de admiração. Por conta disso, algumas críticas feitas na Inglaterra ao silêncio sobre questões sociais e a luta diária do povo comum. Há quem ache mesmo que a série é uma ofensa a quem viveu as agruras do pós-guerra.
Eu entendo a crítica, mas a série não é sobre os pobres, não é sobre as lutas da população inglesa na recuperação do pós-guerra. Fala-se em racionamento, mas como algo distante, marginal. Já Clement Attlee (Simon Chandler), o mais importante dos primeiros-ministros trabalhistas e um dos articuladores do estado de bem-estar social e do NHS (National Health Service), o serviço público de saúde do país, é tratado como um sujeito chato pelo rei, que fica feliz quando Churchill retoma seu posto. Outra coisa que deve ter incomodado muita gente é a forma como o Quênia é mostrado. Submissão abjeta, celebração do Império e um Matt Smith encarnando todo o privilégio branco e sua falta de respeito.
O colonialismo no seu pior. |
Enfim, de novo é preciso ver que o olhar é o das elites deslumbradas com seu lugar especial neste mundo. Não se dá voz para que os quenianos falem de suas mazelas, alegrias e desejos. The Crown não é sobre eles, agora, se a série terá 60 episódios, terá que abordar a descolonização e os conflitos. Aliás, várias vezes nesses cinco capítulos que vi repetiram a cantilena Lord Mountbatten (Greg Wise), tio do Príncipe Philip, perdeu a Índia. Não sei se gente como Churchill era tão obtusa assim para não saber que a perda da Índia era inevitável. Aliás, duvido que fosse.
De qualquer forma, Churchill, interpretado de forma espetacular por um John Lithgow que eu demorei a reconhecer, é apresentado, ao mesmo tempo como brilhante e ultrapassado, uma raposa política que muitos querem ver pelas costas, mas que sabe virar o jogo. Vide o capítulo da grande nevoeiro que mostrou o quão insensível e sagaz Churchill poderia ser. Agora, ele só se compadece dos que sofrem, e talvez 12 mil pessoas tenham morrido em virtude da neblina venenosa que ficou dias sobre Londres, porque sofreu uma perda pessoal. Individualista, elitista, mas com o olhar de um estadista, este é o Churchill da série.
O episódio da neblina foi o único que mostrou o drama de pessoas comuns. |
Continuando falando de Churchill e já passando para o Duque de Windsor (Alex Jennings), duvido que o homem que foi mostrado gritando impropérios na igreja para as irmãs do Príncipe Philip por elas serem casadas com nazistas notórios fosse ser tolerante com o ex-Eduardo VIII. Aliás, até o momento, pelo menos, a série parece ter apagado do currículo do rei playboy o fato dele ter flertado com o nazismo, enfatizando, somente, que ele renunciou “por amor”. Sim, eu acredito que Eduardo VIII renunciou ao trono por amar a americana, plebeia, três vezes divorciada Wallis Simpson, mas creio, também, que o Gabinete de ministros e outros políticos respiraram aliviados por terem como força-lo a sair de cena.
Quando ainda era príncipe herdeiro, durante os anos duros da depressão, Eduardo VIII quebrou o protocolo em discursos nos quais prometia, quando rei, fazer na Inglaterra o que Hitler estava fazendo na Alemanha. Populista, há indícios de que ele sonhou em retomar o trono com a ajuda do Füher, fora, claro, e isso é bem discutido na série, gastava horrores graças à pensão que recebia do governo da Inglaterra. Já sua amada Wallis era admiradora de Hitler e tinha conexões nazistas, ele, após renunciar, fará uma visita ao ditador. Documentário britânico aqui, para quem quiser.
David, antigo Eduardo VIII, e sua amada Wallis. |
O Duque de Windsor da série tem língua ferina, mas é pintado como vítima da intolerância, do tradicionalismo cego, da falta de compreensão com o amor. Um homem charmoso (*sim, ele era*), cheio de bons sentimentos e devotado à sua esposa (*certamente era*), injustiçado pela família. Também vejo como muito difícil que ele, um tio distante e detestado pela mãe da Rainha, fosse utilizado por Churchill para dar conselhos para a jovem Elizabeth e, mais ainda, conseguisse convencê-la de alguma coisa. Estão forçando a barra e embelezando um sujeito com uma ficha corrida das piores.
Talvez essa ladainha de “amor, amor, amor” tenha alguma função para mostrar o drama da irmã de Elizabeth, a princesa Margaret (Vanessa Kirby), que mantém um romance com um homem casado e não conseguirá casar-se com ele depois do divórcio. Nenhum membro da família real pode se casar sem a permissão real pelo Royal Marriages Act 1772 (*reformado em 2015*). Quem o fizesse estaria agindo contra a lei, o casamento seria considerado nulo e privilégios seriam possivelmente perdidos. O possível casamento da Princesa Margaret com Peter Townsend (Ben Miles) era um escândalo e contra as regras vigentes da Igreja Anglicana.
Pobre Margaret... |
Falando da princesa Margaret, achei que a atriz parece mais velha do que deveria ser a princesa, mas, depois, percebi que, talvez, a idéia fosse destacar o quanto ela queria parecer mais madura. Ela de fato tinha uma vida mais mundana, algo de socialite, que a irmã não queria ou podia ter. Assim como o pai, que foi empurrado para o cigarro por recomendação médica para sanar a gagueira, ela fumava demais e morreu também em virtude dos malefícios do cigarro. Aliás, como fumam as personagens da série? Estranhei, no entanto, que uma mulher como a Rainha Mary, remanescente de uma época em que o fumo não era visto como “coisa de mulher” fosse retratada como uma fumante inveterada. De qualquer forma, espero que as pessoas entendam a mensagem, fumar não é chique, um dia foi vendido como tal e vejam quanta tragédia.
Voltando ao Duque de Windsor, o que acho válido na sua representação na série é a forma como sua mãe – a rainha Mary (Eileen Atkins) – e o outros membros da família o tratam. Alguém que traiu as suas responsabilidades, que não colocou o dever acima de seus desejos pessoais. Aqui, neste ponto, vale o discurso do amor, sim, porque é a única justificativa do Duque para abandonar a pesada carga nas costas do irmão, George VI, e, consequentemente, de sua filha. Destaque para a cena em que Elizabeth cobra do tio um pedido de desculpas por roubar dela a vida de mulher comum, esposa e mãe devotada, que ela desejava ter. E, vejam bem, essa é a Elizabeth ficcional, porque sei lá se esta lamúria sairia da boca da verdadeira Rainha da Inglaterra.
Rainha mãe e Rainha Avó. |
De qualquer forma, o ponto alto da série até agora, para mim, é exatamente este drama sobre papéis de gênero entre Elizabeth e Philip. Ela, à princípio, a rainha relutante, que tateia para saber por qual caminho seguir. Uma mulher que ama o marido, que deseja ser submissa a ele (*daí incluir em seu rito de casamento a promessa de obedecê-lo*), mas que passa a ser “A Coroa”. E, neste ponto, sobram cenas que apresentam espetacularmente essa situação. O secretário pessoal herdado do rei, Tommy Lascelles (Pip Torrens), barrando o Príncipe Philip quando ele quer descer as escadas do avião ao lado da esposa “A Coroa primeiro”. O rosto de Claire Foy mostra todo o impacto dessa nova realidade. A dor.
Mais adiante, a Rainha Mary diz para a neta que Elizabeth Mountbatten está morta, que ela é, a partir de então, a Coroa. Para Philip trata-se de uma ofensa. Ele que, pelo menos na série, sonhava em ter uma nova dinastia em seu nome, um sujeito ciente dos seus privilégios masculinos, sendo reduzido a um apêndice de sua esposa. Nesses primeiros capítulos ele luta, se debate, tenta chantagear Elizabeth “a esposa”, mas fracassa. A Elizabeth de The Crown é uma mulher aparentemente comum, isto é, assujeitada aos papéis de gênero tradicionais, mas, também, um monarca ciente de seus deveres, poderes, ainda que tateando sobre os limites entre o público e o privado.
Linda roupa, linda mesmo. |
Aliás, uma das questões dramáticas é que ela não tem mais uma vida privada, tudo é assunto de Estado. A Elizabeth de The Crown assume suas responsabilidades e, de certa forma, se mescla com a Coroa. Se ela perde a identidade de “esposa e mãe”, ela, ao mesmo tempo, tem a cada momento lembrada a sua condição de mulher entre homens e de jovem, porque, sim, este é outro fator importante. Um rei jovem seria tratado de forma diferente? Não duvido, mas o fator juventude faz com que uma certa tutela seja imposta à protagonista e Elizabeth, ora se submete, ora se revolta. Ser a Coroa tem vantagens de desvantagens. Há críticos que estão dizendo que a série é sobre homens mandando em uma mulher, mas eu não consigo reduzir a Elizabeth de The Crown a somente isso.
Philip é apresentado, junto com seu arrivista tio Mountbatten, como um sujeitinho detestável. Ele ama a esposa? Não sei, mas o casamento foi muito útil para um príncipe sem coroa e sem grandes recursos. Ele quer ter um papel preponderante no reinado da esposa, ele acha que é seu direito ser eximido de certos protocolos como forma de afirmação de sua masculinidade. Ele não deseja ser reduzido à função de belo garanhão reprodutor, quer ser mais importante do que de fato é dentro do teatro da monarquia. Só que ele fracassa nesse aspecto e sei que conflitos virão. Quanto ao casamento dos dois, eu já sabia que a maioria da família real era contra, da teimosia de Elizabeth, que, ainda bem, não é apresentada como uma louca apaixonada capaz de se anular como a Rainha Vitória aos pés do seu Albert, prevaleceu no final, mas há uns ingredientes meio esquisitos nessa trama. Quer dizer, esquisitos, para mim. Vamos lá!
Ajoelha, ou não ajoelha? |
A Rainha Mary é em The Crown uma tentativa de emular a Condessa Viúva de Downton Abbey, interpretada pela espetacular Maggie Smith. Daí, a língua ferina da rainha. Só que Mary of Teck era mais conhecida pela sua pose régia e aparente frieza glacial. Ainda que, no seriado, ela seja a pessoa mais ciente dos deveres da Coroa, como quando ela lembra das três monarquias quen viu desmoronar (Habsburgo, Romanov e Hohenzollern, provavelmente), ela me pareceu bem-humorada demais. Fora, claro, que sua preponderância meio que anulou, até o episódio cinco, pelo menos, a importância da rainha mãe, também Elizabeth (Victoria Hamilton).
Enfim, a Rainha Mary chama Philip e sua família de “parvenu”, novos ricos, gente de nobreza pouco atestada, mas isso é bem absurdo. Chamar os Bonaparte de “parvenu”, OK, mas Philip descende por um lado da Rainha Vitória, é tataraneto como a esposa, e pelo outro lado da casa real da Dinamarca. Ora, o avô de Philip era irmão da avó de Elizabeth, sogra da própria Rainha Mary e de linhagem impecável, ou não teria casado com o filho mais velho da rainha Vitória. Uma outra irmã dos dois, Dagmar, casou-se com o Czar e era mãe de Nicolau II. Vocês acham que o Czar casava com "qualquer uma"? Ora, o que estou querendo dizer é que falar que o trono da Grécia era novo é uma coisa, falar que Philip e sua família era de pedigree inferior é outra.
A coroação. |
De qualquer forma, o argumento do “parvenu” não se sustenta. Poderia ser dito que ele não pertencia mais a uma casa reinante, mas, ainda assim, ele era membro da família estendida da rainha Vitória. Usar o argumento de proximidade com os alemães e, claro, os nazistas, foi outra bobagem, afinal, tanto Windsors (Saxe-Coburg and Gotha), quanto Mountbattens (Battenberg), tinham nomes alemães, porque eram famílias originárias dessa região, e mudaram seus nomes de família durante a I Guerra. Toda a casa real britânica era de origem alemã.
E qual era o argumento afinal? O arrivismo dos Mountbatten? Sim, isso é bem mostrado na série, mas não tão bem trabalhado no discurso. A pobreza de Philip? Muito provavelmente. Agora, há um outro fator semi-silenciado, a mãe de Philip, que sofria de surdez congênita como a Rainha Alexandra, bisavó de Elizabeth, foi tratada como mentalmente desequilibrada, acho que o pai do Príncipe também não foi considerado muito são. Esse temor de uma veia de loucura poderia ser razão forte para melar um casamento.
John Lithgow é um dos destaques da temporada. |
De qualquer forma, é bem mostrado o desconforto do rei, um belo desempenho de Jared Harris (*embora eu ainda prefira Collin Firth no papel*), quando vai sagrar o quase genro como duque. Ele está tão nervoso que gagueja e tem que ler. Lendo, a gagueira que atormentava o rei se diluía. Falando em rei e na rainha mãe, eles eram, sim, muito populares. Eles ficaram em Londres durante os bombardeios da II Guerra, a Rainha Elizabeth (*mãe*) se recusou a ir para o Canadá com as filhas como forma de proteção. Tudo isso ajudou no esforço de guerra. É o efeito simbólico do monarca cidadão, algo que entra em certa contradição com a idéia de ungido por Deus, que a série também tenta trabalhar. Agora, só não sei se o Duque de Windsor era tão popular quanto a série quer fazer crer...
Há muito mais a comentar. Duas cenas em particular me pareceram fora do lugar. O Príncipe Philip comentando do nada com Townsend sobre o acidente de avião que matou sua irmã, a princesa Cecile e os filhos. Não houve função alguma, ou houve e eu não percebi? E a rainha Mary sendo provinciana nos seus comentários sobre a Igreja da Inglaterra em relação à outras igrejas, como a Grega. Ora, a Igreja Ortodoxa tem muito mais história do que a Igreja Anglicana, mas é aquilo, tentaram fazer da rainha Mary uma cópia com poucas alterações da Condessa Viúva. Ela funcionou melhor como voz da estabilidade monárquica, das tradições e no seu rancor para com o filho que abdicou do trono.
É isso. Tentarei terminar de assistir The Crown até o fim da semana. Se não tivesse tanta coisa para fazer, tinha emendado cinco episódios de carreirinha e terminado em dois dias. Terminando, faço a segunda resenha (*eu espero*). A série é muito boa. Grandes interpretações e, mesmo que fantasiosa, ela consegue retratar de forma muito interessante o período histórico e questões de gênero que continuam aí até hoje, independente de uma mulher ser a Coroa, ou não.
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