terça-feira, 9 de agosto de 2016

Um Ippon no Racismo


 A frase que usei no título do post não é minha, mas do José Simão, humorista que tem programa diário na rádio BandNews.  Como todos sabem, ela se remete à Rafaela Silva, a jovem negra, favelada, pobre, de 24 anos que ganhou o primeiro ouro para o Brasil.  Essa medalha tem um sabor especial, porque, em Londres, Rafaela teve problemas e foi desclassificada.  Seguiu-se a isso uma onda de racismo e misoginia (*pois o ódio e/ou desprezo às mulheres aflora quando a vítima é - aparentemente - mais fraca*) que me fizeram escrever um post intitulado "O pior do Brasil é o brasileiro".   A jovem altiva rebateu que "O macaco que tinha que estar na jaula é campeão olímpico".  

Os mesmos jornais que em 2012 destacaram o descontrole emocional da moça, afinal, ela (*horror!  horror!*) xingou alguns torcedores que a agrediram, agora, a exaltam.  Da mesma forma, um monte de gente que abomina brasileiros e brasileiras como Rafaela – pobres, negros, favelados, que curtem funk, que conseguiram seguir adiante graças à programas sociais, mulheres que ousam praticar esportes e não aceitam a subalternidade etc. – agora a tratam como heroína e se apropriam de sua medalha.  Exaltam as forças armadas sem conhecer o Programa Atletas de Alto Rendimento que a levou para a Marinha.  Falam que ela nunca precisou do feminismo quando para estar na Marinha, praticando judô, ou nos jogos Olímpicos, as feministas foram fundamentais.  (*Havia até lei proibindo a atuação das mulheres em vários esportes no Brasil.*)  A medalha, enfim, não é desse Brasil, a medalha é de Rafaela Silva e tantas outras Rafaelas.  



Alguns estão destacando que Rafaela não é vitimista, não depende de cotas, que venceu por mérito.  Sim, ela venceu por mérito, mas quase abandonou o esporte por causa do racismo desses mesmos que, agora, a elogiam.  Sim, ela venceu por mérito, mas alguém antes ofereceu para a menina muito pobre (*veja seu relato aqui*), cujo pai não tinha dinheiro para comprar um chinelo de dedo novo para ela, uma oportunidade em um projeto social (*o Instituto Reação - projeto social criado pelo ex-judoca Flávio Canto*) na favela onde morava.  Quantos meninos e meninas poderiam ser salvos da marginalidade se o Estado lhes oferecesse educação e esporte?  Quantos meninos e meninas poderiam ter outro destino se houvesse mais projetos públicos e privados?  Esse tipo de projeto funciona como uma espécie de cotas, para quem não entendeu ainda. 

O esporte não forma somente campeões que recebem medalhas em mundiais e em Olimpíadas, único momento de visibilidade pra o grande público, o esporte ajuda a desenvolver a autoestima, a disciplina, o senso de objetivo e, se a coisa for bem trabalhada, o desejo de ajudar ao próximo, ajudar a formar uma próxima geração de pessoas de caráter e com valores sólidos ainda que submetidas à situações difíceis.  Rafaela, aliás, já está fazendo isso.  



Lembro que a primeira vez que ouvi falar de Rafaela e sua irmã, antes de Londres-2012, foi quando sua irmã, Raquel, ficou grávida e sua carreira foi prejudicada.  Sim, gente, gravidez na adolescência é um fator de exclusão, meninas que deveriam estar estudando e batalhando, de repente, tem que mudar seu foco, às vezes, perdendo oportunidades únicas em sua vida.  Raquel era uma promessa do judô, sua irmã acabou ocupando seu lugar.  Poucas meninas conseguem retomar sua vida depois de uma maternidade precoce e, quando tentam, não raro são recriminadas por seu “mau passo”.  Do pai, ninguém fala, ele segue a vida, normalmente.

Rafaela é, como já comentei, atleta da Marinha.  As Forças Armadas brasileiras mantém o Programa Atletas de Alto Rendimento, um projeto objetiva “fortalecer a equipe militar brasileira em eventos esportivos de alto nível” mediante a seleção de atletas voluntários com ótimo desempenho em competições nacionais e internacionais, ou seja, não é um projeto de formação de atletas.  Graças a este programa, nossas forças armadas tem conseguido muitas medalhas nos Jogos Militares.  Só que, como se trata de um acordo com o Ministério dos Esportes, há o incentivo aos atletas que, muitas vezes, tem poucos recursos financeiros, como a Rafaela que levou o ouro, e acesso limitado à centros treinamentos mais que satisfatórios, como os mantidos por nossas forças armadas.  Enfim, uma mão lava a outra, mas há gente que não vê com bons olhos esses atletas, seja porque acreditam que não é o objetivo das forças armadas investir em esporte (*Sério, Ricardo Boechat da Bandeirantes falou isso dia desses*), ou, como eu ouvi de um colega de trabalho militar de carreira, eles e elas não seriam militares “de verdade”.  
De qualquer forma, não convém super exaltar as forças armadas, como se elas estivessem formando atletas, nem negligenciar o projeto, que é bom para ambas as partes.  Ainda assim, é diferente o caso da Rafaela, ou do Felipe Wu, que ganhou a medalha de prata no tiro, de um Guilherme Paraense, militar brasileiro e responsável por nossa primeira medalha olímpica em 1920.  Aliás, outros militares, muito antes de projetos como o Atletas de Alto Rendimento, já se destacavam em alguns esportes, especialmente, o tiro, e isso sem serem militares em condições especiais, mas tendo que se dedicar integralmente à vida militar.

Mas já escrevi demais.  Quero celebrar Rafaela Silva, sua luta, seu exemplo.  Desejar, apesar do mau momento que vivemos, que outras muitas rafaelas possam surgir.  Neste momento que escrevo, e talvez não consiga publicar o texto antes da luta, estou aqui torcendo por outra “Silva”, outra mulher, Mariana Silva, por quem ninguém dava nada, mas que, daqui a pouco, estará lutando a semifinal contra a campeã mundial de sua categoria sem nunca tê-la vencido.  Espero que Mariana traga sua medalha, independente do metal da mesma. (*ela vai disputar o bronze*)



Termino dizendo que estou com a Formiga, a veteraníssima de nossa seleção feminina de futebol, que está pedindo que as suas colegas não se empolguem com os elogios desmesurados que vem recebendo.  E digo mais, este mesmo povo mal educado, gente frustrada com a seleção masculina de futebol, que está exaltando as meninas para humilhar seus heróis, afinal, estão jogando menos que as mulherzinhas, vão mudar de lado rapidamente no primeiro deslize, no primeiro tropeço normal, e não vão se contentar com menos que o ouro. Ouro, aliás, que eu espero que adorne esta última Olimpíada da Formiga.  Mulheres – porque elas são fortes, adultas, guerreiras – da seleção feminina, vocês valem mais do que ouro por terem vencido tudo que enceram para chegar a uma Olimpíada.  

Não posso comentar a abertura da Olimpíada, porque vi pouco dela.  Por mais que tenha me sentido, para vergonha minha, feliz com a vaia dada ao (golpista) Temer, sou contra esse tipo de manifestação.  Vale para ele o que valeu para Dilma, ou qualquer um.  O silêncio seria melhor. Da mesma maneira que nossa torcida está sendo criticada internacionalmente por vaiar os atletas, atrapalhar certos esportes, ser grosseira e violenta. O que vale – sempre mantendo o respeito – em esportes coletivos, não vale para outros tantos.  É preciso saber se comportar.



De qualquer forma, deixo o link para a lei que regula a Olimpíada e que nada fala de censura à manifestações políticas, os tais cartazes de #ForaTemer são legítimos, racismo, xenofobia, incitação à violência é o que a lei proíbe.  A culpa não é da Dilma, que pode ser acusada de muita coisa, menos de covardia.  É essa ditadura disfarçadinha e cordial que vivemos que permite que pessoas sejam retiradas dos estádios e arenas.  Um juiz federal decretou inconstitucionalidade, mas o COI está recorrendo.  Vamos ver no que vai dar.  Tudo começa assim, com pequenas arbitrariedades.

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