quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A perseguição ao burkini é uma forma de violência contra as mulheres


Nos últimos dias, a polêmica em torno da proibição do burkini, uma roupa de banho pensada por uma mulher muçulmana para atender às necessidades de outras mulheres da mesma fé (*e de quem mais quiser usar*), nas praias de Cannes e em outras regiões da França despertou polêmica.  Segundo a legislação baixada por homens, a roupa de banho é inapropriada e está em desacordo com os costumes do país.  Existe roupa certa para ir à praia?  Enfim, parece que existe.

Abalada por uma série de atentados, a França parece particularmente sensível em relação aos muçulmanos, especialmente, aqueles que podem ser identificados como tal.  Nesse sentido, as mulheres muçulmanas que usam qualquer roupa que as identifique visualmente, seja o simples véu (hijab), ou outro símbolo qualquer, como o burkini, se tornam alvo preferencial de agressores e, como se vê nesse momento, legisladores preocupados com os bons costumes.

Seqüência da humilhação.
Eu pensava em escrever alguma coisa sobre a questão, mas estava e estou sem tempo, no entanto, o incidente acontecido em Nice (*cidade do horrendo atentado em que um homem muçulmano atropelou com um caminhão centenas de pessoas que estavam assistindo aos fogos do 14 de julho,*), me deixou realmente chocada.  Uma dona de casa de 34 anos, ex-comissária de voo, estava com os filhos na praia.  Abordada por quatro policiais, ela foi multada em 11 euros.  Não satisfeitos, as quatro autoridades obrigaram a mulher a se despir de parte de suas roupas na frente de todos e assistida por seus filhos pequenos em prantos.  Algumas pessoas que viam o espetáculo gritavam "Vão para casa!" e "Somos católicos!".  Horror total.

A cena me trouxe a mente coisas como policiais, sempre homens, medindo o comprimento de roupas de banho de mulheres nos Estados Unidos dos anos 1920 e 1930, até as judias sendo obrigadas a se despir na frente de guardas homens ao chegarem nos campos de concentração ou extermínio nazistas, ou ainda as iranianas compelidas pela violência física ou verbal a usarem o véu nos tempos da Revolução Islâmica Iraniana.  Violência contra as mulheres no seu nível mais básico, porque, impotentes diante da autoridade, as mulheres se veem reduzidas aos seus corpos que devem, ou serem escondidos, ou serem despidos, para a satisfação dos poderes patriarcais instituídos.  


Jovem surfista da Califórnia.
Eu entendo e apoio a proibição do niqab e da burka, aquilo que chamamos de véu integral, por roubarem das mulheres a sua identidade, o seu rosto.  Sei que a proibição está muito mais ligada a preocupações de segurança do que propriamente interesse pelos direitos humanos das mulheres, mas vá lá, eu compreendo e acredito que seja justo.  Eu apoio a lei que proíbe o uso de símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas como forma de resguardar a secularidade e promover a socialização.  Há escolas particulares para quem considera essas questões fundamentais, fora que fundamentalistas nunca estão satisfeitos, pedem uma unha e, logo, logo, lhe pedirão o pé inteiro, ou a perna.  Agora, qual o mal no tal burkini?

A criadora da peça, a estilista Aheda Zanetti, nascida no Líbano e residente na Austrália, criou a peça para dar liberdade às mulheres muçulmanas que não desejavam (*ou podiam*) usar biquínis ou maiôs convencionais de se divertirem na praia.  Algumas dessas mulheres se viam privadas, por suas crenças pessoais, ou por pressão da comunidade, de praticarem uma série de atividades.  O burkini aparece como uma opção espetacular. A criadora, inclusive, partiu da sua própria experiência como menina e adolescente muçulmana castrada de uma série de atividades por ser mulher e somente por isso. A peça se tornou famosa, aliás, ao ser adotada por mulheres muçulmanas que se tornaram salva-vidas nas praias australianas.  


Aheda Zanetti, a criadora do burkini.
A jovem salva-vidas que se tornou garota propaganda do burkini.
Em vários formatos e cores – basta procurar – o burkini tornou-se popular em diversos países e é usado, também, por mulheres que desejam se proteger do sol.  Enfim, ainda que por trás do uso do burkini também estejam as falsas premissas de modéstia que pesam sobre as mulheres, afinal, a depender da leitura religiosa monoteísta (*estou pensando dentro dela*) patriarcal, ou somos as sedutoras, ou os homens são os incontroláveis e, por um motivo, ou outro, cabe às mulheres esconderem seu corpo ou se absterem de certas atividades.  Por exemplo, causou escândalo em Israel que um importante rabino ultra-ortodoxo tenha ordenado que pais e mães proíbam que suas meninas maiores de 5 anos possam andar de bicicleta nas ruas, porque, bem, isso é imoral e pode despertar os desejos dos homens.  É mais fácil, claro, castrar as meninas de uma atividade saudável e divertida do que manter os pedófilos sob controle.

Voltando ao burkini, o que me faz simpatizar com a criadora é que ela tem completa noção das pressões que as mulheres muçulmanas sofrem e ela lhes oferece uma possibilidade.  As fundamentalistas de verdade não irão usar o burkini, pois ou não irão à praia, para se misturar com os infiéis, ou entrarão com seus chadors ou abayas, sem nem se importarem, isso, claro, se forem flexíveis.  O burkini me parece, portanto, algo de mulher para mulher e preocupado com as suas necessidades muito mais do que com o olhar masculino.  Eis aí o grande crime, eu suponho.


Exemplo de roupa "modesta"
para fundamentalistas cristãos.
O burkini é o único caso de roupa de banho “religiosa”, por assim dizer?  Não.  Entrem aqui na página da “Wholesome Wear”, que vende roupas de banho "que destacam seu rosto, não o seu corpo" (“Swimwear that highlights the face, not the body.”), e observem que fundamentalistas cristãs também têm opções.  E, vejam bem, ao contrário do burkini, esse tipo de traje de banho se vende como algo que lhe torna melhor, superior, às outras mulheres.  A Aheda Zanetti parece que nunca foi pega dizendo essas abobrinhas, mas só defendendo que mulheres e moças muçulmanas também têm direito de se divertir em paz... Até que vieram os franceses... 

Não há justificativa para a proibição da peça, salvo se as autoridades acreditem que as mulheres são obrigadas a expor o seu corpo, afinal, este é um dever feminino.  Obviamente, não é qualquer corpo, como as muitas propagandas nos ensinam, mas o corpo jovem e esguio, os demais não são lá muito aceitáveis, também.  O que este caso todo está mostrando para o mundo é que existe, efetivamente, islamofobia, especialmente, em relação às mulheres (*coisa que eu já tinha dito na resenha do livro do Charb*).  Motivo?  Seja por opção pessoal (*e não vou discutir assujeitamento religioso aqui, OK? Adesão não significa falta de coerção*), ou por pressão do grupo (*família, comunidade, Estado*), elas são alvo fácil.  


Alguém perguntou se ela queria usar o véu?
E se perguntada, ela poderia dizer a verdade?
Aliás, em tempos de Olimpíada, puseram para circular fotos de atletas iranianas antes e depois da Revolução Islâmica.  A idéia, claro, era condenar o que temos hoje, mostrar o retrocesso.  Para alguns, deveriam proibi-las de participar dos jogos.  Aí, ninguém tira um segundo para pensar que elas, as atletas atuais, são umas guerreiras, porque, bem, ou elas usam o véu - e quem exige é o Estado - ou elas não podem praticar esportes.  Mas é o Irã, então convém descer a lenha sem se perguntar como é que as coisas são na Arábia Saudita, por exemplo, que só muito recentemente começou a discutir a possibilidade da educação física em escolas públicas para meninas.  Do outro lado, a turma que vê empoderamento em tudo, fica mostrando as atletas muçulmanas veladas e celebrando a diversidade.  Concordo que foi muito bonita a foto das duas atletas no vôlei de praia, e uma egípcia usava véu e outra não usava.  Só que elas deixaram claro que sem usar mangas e calças compridas, elas não podem jogar em seu país.  Quais os limites da sua liberdade?  Enfim, cuidado aí, porque duvido muito que a menina de 18 anos do Irã que levou bronze no  taekwondo responderia sinceramente que preferia usar o véu para competir, aliás, no caso dela, não há escolha.  

Marcadas que são em seus corpos, afinal, a campanha recente é toda para fixar na nossa cabeça que muçulmana sem véu não é muçulmana de verdade, ainda que isso não se comprove no social, elas se tornam vulneráveis aos diversos ataques.  E, agora, como o caso de Siam mostra, também, às piores humilhações.  De novo, o que esse caso pavoroso expõe é que quem mais se preocupa em cobrir ou descobrir mulheres são os homens.  E aí, vale despir ou vestir, e caberia aos homens definir o que é legítimo para as mulheres usarem, ou não usarem.  Enquanto isso, claro, boa parte dos homens religiosos consegue se misturar sem grandes problemas, afinal, basta cercear a liberdade das suas mulheres para ganhar, ao que parece, pontos com a divindade.


Esse quadrinho também me causa muita agonia.
E termino deixando o link para o texto de uma ex-muçulmana sobre a questão e um trecho no qual ela fala da falsa simetria entre biquiniXburkini para quem não entendeu e fica repassando esse quadrinho acima como se tudo fosse a mesma coisa: “Quando a aceitação de uma mulher por parte da comunidade, seu respeito, dignidade, empregabilidade, possibilidades de casamento, segurança física, emancipação, a mobilidade social, acesso a instituições, a liberdade, e autonomia no seu dia-a-dia depender da inabalável adesão pública ao biquíni, então nós poderemos fazer essa comparação.  Quando uma mulher não puder deixar sua casa vestindo outra coisa senão um biquíni sem ser considerada imoral e seu valor humano e honra familiar ficarem comprometidas, então nós poderemos fazer essa comparação.  Quando existirem forças legais, sociais e extrajudiciais graves ligando a segurança, bem-estar, e meios de subsistência de uma mulher a sua adesão ao biquíni, então nós poderemos fazer essa comparação.”

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