sexta-feira, 17 de junho de 2016

Falando de Miriã ou como destruir uma personagem interessante


Faz um bom tempo que não escrevo sobre Os Dez Mandamentos, só que continuo acompanhando a novela e gostando muito mais das personagens inventadas – egípcios, moabitas, midianitas etc. – do que dos hebreus.  Neste momento em que a novela caminha para o seu fim, e deve rolar muita correria nos próximos capítulos para compensar o que não aconteceu na hora certa, preciso fazer alguns comentários sobre uma personagem em especial, uma das que efetivamente está na Bíblia e que poderia ter rendido muito, mas foi reduzida à coadjuvante menor, privada de sua importância e transformada em chata, infantil, mesquinha e irritante.  Falo de Miriã.

Não sei se alguém que vem aqui no Shoujo Café desde muito tempo ainda não sabe que sou batista, protestante ou evangélica, como queiram, que tenho mais de 40 anos de igreja, afinal, ia dentro da barriga de mamãe.  Enfim, o primeiro livro que ganhei, assim que aprendi a ler, foi a Bíblia.  No entanto, acredito que a maioria das pessoas saiba que não há muitas mulheres em papel de destaque neste livro sagrado.  Algumas sequer têm nomes é “a filha de” ou “a esposa de”.  Mais raro ainda, é termos meninas ou adolescentes com algum destaque.  Lembro somente de três: Miriã, irmã de Moisés e Arão; a menina escrava que ajuda seu senhor, Naamã, a se curar da lepra; e Rode, a serva de Maria, mãe de João, que abriu a porta para Pedro depois que ele fugiu da prisão.   Destas todas, Miriã é a única que vemos reaparecer já adulta.


Tomando conta de Moisés.
Desde sempre gostei da Miriã, quando criança, antes de seu nome aparecer no texto, ela era modelo de inteligência e coragem, afinal, ficou de guarda tomando conta do cestinho do irmão no rio, aproximou-se da filha de faraó e ofereceu os serviços da própria mãe como ama de leite.  Crescida, ela foi apresentada como profetisa dentro dos textos bíblicos.  Sabem quantas mulheres são chamadas de profeta no Velho Testamento?  Na Bíblia inteira?  Com nome, vocês não precisam nem de duas mãos para contar.  Miriã é a primeira mulher profeta citada na Bíblia.  (Êxodo 15:20) E o que um/a profeta fazia?  Muitos pensam em prever o futuro, sim, poderia acontecer, mas tinham visões, interpretavam sonhos, davam conselhos e, quando o texto menciona, falavam com a própria divindade ou em nome dela.  Quantas vezes vocês viram a Miriã da novela fazendo coisas assim? 

Quando da travessia do Mar Vermelho, Miriã comemorou a vitória liderando as mulheres, cantando, dançando e tocando música, é a primeira vez que seu nome é citado (Êxodo 15:20-21).  Depois, ela reaparece criticando o irmão e é punida com "lepra", mas perdoada por Deus (Num 12:1-6).  Miriã, que é amada por muitas feministas judias e cristãs, nunca é descrita na Bíblia como esposa ou mãe de alguém, ela é, no máximo, ligada aos irmãos, como o trio de líderes que está a frente dos hebreus. Quer ver?  "Eu o tirei do Egito,e o redimi da terra da escravidão; enviei Moisés, Arão e Miriã para conduzi-lo." (Miquéias 6:4)  Isso é muito mais material para criar uma personagem legal do que a autora de Os Dez Mandamentos tinha de outras personagens realmente bíblicas e, para ajudar, a intérprete de Miriã ainda é Larissa Maciel.  Só que o que se vê em tela é uma decepção.


Mirã, menina, salvou o irmão.
A menina Miriã era ótima, falei dela no primeiro texto que escrevi sobre a novela.  Agora, quando Miriã apareceu adulta ficou sugerido que ela teria algum destaque na trama como liderança entre os hebreus.  Ela afrontava os feitores, tinha uma língua ferina e fugia do casamento. Detalhe, na Bíblia não é citado marido para a personagem, como já escrevi, mas a novela bebe em outras fontes, daí, veio a paixonite por Hur (Floriano Peixoto) e criou-se uma lengalenga e uma situação de amor não correspondido que se arrastou pelas várias fases da trama, descaracterizando a personagem  

Miriã sofrendo e sendo chata, já que mal amada, tornou-se regra.  Enfim, até por terem uma Denise Del Vecchio como Joquebede, a mãe de Moisés (Guilherme Winter) ganhou um destaque que, a meu ver, deveria ser de Miriã, fora as muitas outras mulheres inventadas que tinham tramas muito mais legais, ou a própria Zípora (Giselle Itié) que surgiu na nova fase como uma líder feminina madura e ponderada, papel que deveria ser da cunhada.  E nem falo das egípcias, estou pensando nas hebréias mesmo.  


E não rolou dança e batucada na novela da Record.
Miriã foi ficando para trás e na travessia do Mar Vermelho não houve dança, nem batucada, só aquela cantoria chata sentadinha na roda de músicos.  Moisés cantou seu solo, Miriã, reputada na novela por sua bela voz, foi silenciada.  Fico me perguntando se não limaram essa passagem, por questões doutrinárias da própria Igreja Universal, afinal, foi tudo muito diferente do texto bíblico. O fato é que não há mulheres pastoras nesta igreja, não oficialmente, e o papel que elas desempenham é, ou oculto, ou auxiliar em relação a algum homem.  As faces que comandam a igreja são todas masculinas. Será por isso que jogaram Miriã nas sombras?  Que a privaram das características de liderança que a Bíblia não lhe nega? Enfim, dá o que pensar.  

Pior é que para ser mulher completa na trama, Miriã precisa ser esposa de alguém e aprender a ser submissa.  Daí, quando voltou a novela a coisa ficou pior.  Radina (Aisha Jambo), que deveria ser a segunda esposa de Moisés (*falo disso daqui a pouco*), acabou se interessando por Hur, a velha paixão de Miriã e, agora, um homem viúvo.  Assim, Miriã foi tomada de ciúmes, ficou ranzinza e resmungona, Tornou-se a personagem mais chata da novela.  Parecia desprovida da inteligência e humor do início da trama, tal e qual uma menina mimada, passou a ser admoestada por muita gente, a começar pela mãe, Joquebede.  Casada, passou a atormentar o marido com mesquinharias e se descumprir suas funções como esposa, sempre se lamuriando.  E, como Radina não seria mais o pivô do castigo divino, a jogaram, sem motivo, contra Zípora.


Profetisa, cantora, líder.
Vamos explicar, ainda que não haja consenso entre os estudiosos da Bíblia, o texto – ou os textos que foram amarrados para compor os livros do Pentateuco ou Torá, como queiram – sugerem que Moisés teve duas esposas, Zípora, a midianita (*e Midiã deveria ficar em alguma região da Península Arábica*), que deve ter morrido em algum momento da narrativa, e uma mulher cushita, ou seja, oriunda de um reino africano mesmo e, portanto, uma mulher negra, daí Aisha Jambo nessa novela na qual todos são (socialmente) brancos. 

Lembro que adolescente li sobre esse rolo e o autor, ou autora, sei lá, acusava Miriã (*e Arão*) de racismo e apontava que a punição divina seria por conta disso.  Bem, acredito mais que era a rejeição de uma mulher estrangeira, em um momento no qual as leis divinas já estavam proibindo os hebreus de se casarem com gente de fora do povo.  Daí, há quem defenda que Zípora e a mulher cushita seriam a mesma pessoa e que Miriã estaria sendo excessivamente zelosa.


No Egito, outrora valente e destemida.
Discussões teológicas à parte, assim como já aconteceu com a passagem do bezerro de ouro, livraram a cara de Arão (Petrônio Gontijo).  Parece que sacerdote não erra, é enganado... De forma que ele é arrastado pela rancorosa Miriã, ele mesmo tenta demovê-la da revolta contra Moisés.  No texto bíblico ambos exclamam “Porventura falou o Senhor somente por Moisés? Não falou também por nós?” (Números 12:2), no verso anterior, ambos haviam criticado Moisés por causa de sua esposa cushita, mas a culpa passa a ser toda de Miriã e a punição, também.  

O fato é que na novela, Miriã é a única culpada e revoltada, Arão vai de arrasto.  Os atos de Miriã também são tidos como irracionais e fruto de uma natureza passional e, talvez, excessivamente independente.  Ferida de lepra, ela termina excluída do convívio com o seu povo e a novela investe na cura interior da personagem utilizando-se da bondade de Zípora.  Enfim, Arão não poderia ficar leproso mesmo, pois perderia o sacerdócio.  (Levítico 22:4)  Ver Miriã punida por culpa dos dois já seria tortura grande demais para ele, por assim dizer, mas o problema é a novela é usar a passagem para chamar Miriã - que não é líder, nem profeta, nem nada a não ser "irmã de", "filha de" e "esposa de" nessa trama - à submissão.


Leprosa como castigo.
A nova Miriã, quebrantada e arrependida, é curada e rejuvenesce como bônus.  Sim, ela renasce, por assim dizer, parecendo mais jovem e bela do que era antes.  Se tornando, assim, uma esposa mais desejável, não somente pelo seu novo comportamento, como por sua aparência.  É triste ver o que estão fazendo de Miriã em Os Dez Mandamentos.  Ela poderia ser modelo de mulher devota e forte, mas  foi se apequenando até ser reduzida a uma figura assujeitada aos seus interesses amorosos e sem direito à  independência.  Se a mensagem através de Miriã era a de que as mulheres devem ser obedientes, domésticas, ponderadas e que devem viver para marido e família, acertaram na mosca.  Espero que, no futuro, alguma outra produção, mesmo carregada de imaginação, faça alguma justiça a personagem.

De resto, fico eu aqui torcendo para as personagens fictícias. Que Adira se entenda com o general bonitinho de olhos tristes, que a rainha Elda continue resolvendo suas pendências de modo prático e rápido, que a Betânia deixe de ser burrinha, que Gerusa tenha um menino e uma menina, que Leila e Gahiji não sofram por muito mais tempo... Enfim, as personagens fictícias são muito mais interessantes e suas tramas, ainda que pueris, não ofendem tanto quanto o que fizeram com Miriã.



P.S.: No capítulo do dia 22 de junho, já caminhando para  o fim da novela, Miriam resumiu seus desejos e objetivos de vida "ter um casamento tão feliz quanto o de seus pais".  O que mais uma mulher - já que todas são iguais - pode desejar a não ser isso?  Esqueça que a própria Bíblia a aponta como líder e profeta, porque o que Miriam precisava era de um homem, um marido.  O resto, é vaidade, daí, a punição divina, claro.  😒 No mesmo capítulo, aliás, Miriam morre em um salto no tempo de 40 anos... 


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