Nos últimos dias tenho me omitido de discutir algumas questões importantes, casos terríveis de estupro que mereciam um texto no Shoujo Café, no entanto, a falta de tempo não me permitiria aprofundar a discussão. Entre um texto superficial e nenhum texto, fico com a segunda opção. Só que ontem recebi o link de um vídeo da Prof.a Valeska Zanello, da UnB, para a TV Senado e não pude me furtar de dividir aqui no blog. Eu a conheci por intermédio da minha orientadora de doutorado, Tânia Navarro Swain, em uma reunião do antigo GEFEM da UnB. Ela é psicóloga clínica.
Enfim, neste vídeo, que é relativamente longo, ela destrincha esse tema que entrou em evidência devido ao estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio e não saiu mais de “foco”, porque outros estupros, apologia ao estupro e incidentes que apontam para a prevalência da violência contra as mulheres em nossa sociedade.
Mas se você assistir o vídeo, você poderá refletir sobre outras questões relacionadas à desigualdade de gênero, como o fato da maioria das mulheres já ter feito sexo sem vontade, ou por obrigação, com maridos e namorados. Não seria este um componente da cultura do estupro? Se uma mulher diz “não” ao marido, namorado, companheiro, depois não venha reclamar se ele procurar outra, ou se se tornar violento, afinal, os homens são insaciáveis, precisam de sexo... É o tal dispositivo da sexualidade (*de Foucault*), nossa sociedade respira sexo, come sexo, bebe sexo, destila sexo em todos os seus discursos, sejam os de incentivo, liberação, ou repressão. Às mulheres, cabe negar ou regular o sexo em troca de “amor e segurança”, aos homens cabe acreditar que sem sexo morrerão, enlouquecerão.
Lembrei de uma passagem da novela Salomé (1991) em que a jovem personagem de Mayara Magri, casada à força com o vilão interpretado por Rubens de Falco, foi estuprada pelo marido várias vezes. Eram outros tempos e as novelas das seis incluíam nudez, algum sexo e violência que não veríamos hoje. Minha avó vinha passando durante uma dessas cenas, parou na porta e disse algo como “Quando ela casou, sabia que iria ter que servir a ele.”. Estupro conjugal é algo muito difícil de provar e que, na lei, só passou a figurar muito recentemente. Afinal, sexo como serviço, como obrigação conjugal é algo bíblico, e o texto trata mulheres e homens com igualdade (I Coríntios 7:1-5), mas quando a questão aparece nos discursos extra-bíblicos homens e mulheres são apresentados como desiguais, nos direitos e no desejo. Assim, se uma mulher fracassa nessa área, ela passa a ser responsável pela poligamia consentida (*conceito que ouvi no vídeo pela primeira vez*), ou pela violência do parceiro.
Mayara Magri e Rubens de Falco em Salomé. |
Daí, vale deixar o link para um texto traduzido do The Guardian no qual a repórter entrevistou vários homens usuários da prostituição. O que ficou evidente, em primeiro lugar, é que a maioria não se importa se a mulher (*ou menina*) que usa para satisfazer “suas necessidades” é vítima de violência, ou não, se é traficada, ou livro. Importa-lhes o seu prazer. A segunda coisa, que confirma a cultura do estupro é “(...) homens “precisariam” estuprar se não pudessem pagar por sexo pronta entrega. Um deles me disse, “Às vezes você estupraria alguém: então em vez disso você vai ver uma prostituta.” Outro explica assim: “Um homem desesperado que quer muito fazer sexo, ele precisa de sexo para relaxar. Ele talvez estupre”. Concluí então que feministas como eu e Andrea Dworkin não são as responsáveis pela ideia de que todo homem é um estuprador em potencial – muitas vezes são eles mesmos.”
Percebem que quando algumas feministas, como Dworkin, citada na matéria, afirmam que todo homem é um estuprador em potencial, elas não estão ofendendo os homens, nem generalizando, mas fazendo uma constatação a partir do que temos no social. Aliás, não é por outro motivo que gente como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino vão defender a prostituição como um “mal menor”, afinal, seria a única forma de proteger mulheres, meninas e meninos de família dos homens “de bem”, porque, afinal das contas, eles escreviam para um público cristão e que deveria se pautar pelas virtudes desta fé.
Outra coisa que o vídeo define muito bem, e que é conceito da minha orientadora (*texto aqui, se quiserem, mas é leitura difícil*), é o dispositivo amoroso, algo que define, assujeita e molda a vida das mulheres. Você existe para amar e ser amada, você só tem significado se está em um relacionamento com um homem (*heterossexualidade compulsória*), a mulher (*sempre no singular*) só se realiza plenamente na maternidade. Para ter tudo isso, para pertencer a um homem – como brilhantemente definiu o prólogo do filme O Casamento do Meu Melhor Amigo – você precisa servir e sexo é só parte desta fatura, afinal, as mulheres são feitas para se sacrificar por alguém. Espera-se que cuidemos do marido, dos filhos, dos doentes. Nossas profissões mais tradicionais são todas assim de serviço, sacrifício, invisibilidade, amor... Enfermeiras, professoras primárias, babás, cuidadoras etc.
E cito a própria Zanello: ""O dispositivo amoroso é o principal dispositivo de desempoderamento das mulheres. O amor é identitário para as mulheres na nossa cultura, não estar em um relacionamento é fracassar"." Não acreditem, portanto, que se trata de natureza, porque mulheres são moldadas desde o ventre por práticas, discursos, violência. Tudo isso se mistura e ajuda nessa tal cultura do estupro. Só que já escrevi demais. Deixo outro vídeo abaixo.
Deixo ainda, para reforçar tudo isso, o link do texto do site da Lola sobre o caso do excelente rapaz que teve que pagar com seu futuro brilhante por “20 minutos de ação”, segundo o pai do agressor, isto é, por ter estuprado uma moça embriagada e desacordada, e o link para a notícia do procurador que em exame de concurso para promotores exprimiu-se de forma lamentável (*estou sendo boa*) ao comentar que em um estupro coletivo “(...) a “melhor parte” é a conjunção carnal, “dependendo da vítima”” , porque a depender da vítima, o estuprador é um “herói”, daí, damos a volta e caímos em Bolsonaro, afinal, existem mulheres estupráveis e outras que não são. Ainda bem que, pelo menos no caso de Bolsonaro, haverá algum constrangimento para ele no STF. De resto, o caminho a percorrer para extinguir a cultura do estupro ainda é muito, muito longo.
1 pessoas comentaram:
Eu aprecio muito esse post em especial porque como uma mulher que se identifica no espectro asexual (i.e. não sinto atração sexual e/ou amorosa), eu não sei nem como explicar o quão alienada eu me sinto quase todos os dias porque aparentemente meu valor inerente como pessoa está vinculado o quão desejável eu sou perante o olhar alheio (masculino) e se isso é algo que não priorizo ou desejo, então obviamente existe algo fundamentalmente errado comigo. De qualquer forma, embora eu saiba que esa cultura nada mais é do que um produto de uma sociedade misógina, o texto me deixou um pouco mais confortada comigo mesma.
No mais, me enoja saber que a cultura do estupro esteja ainda tão enraizada na cultura brasileira (alguns comentários que li sobre o caso em questão me deram ânsia de vômito literalmente), mas fico contente que o tópico ainda seja discutido tão coerentemente como no vídeo acima.
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