Como Mars (マース) voltou a estar em evidência, muito para a minha alegria, pois é uma das minhas séries favoritas, decidi republicar falar um pouquinho da série. Não poderia imaginar que teríamos um dorama e um filme para o cinema tantos anos depois, mas aconteceu e é para comemorar. Fui então aos arquivos do meu computador e peguei o meu texto sobre o mangá, ele fazia parte do meu primeiro site, o Shoujo House, criado em 2002 e que ficou no ar por vários anos.
Fiz pequenas mudanças e correções, mas nada que altere a velhice do texto, achei interessante deixar como estava este aspecto, afinal, ele foi escrito quando Peach Girl (ピーチガール) não tinha sido ainda cancelado, o MIRC era visita obrigatória, meio-tanko era padrão no Brasil e a Tokyopop era a editora estrelinha do mercado norte americano. Muita, muita coisa mudou. Depois do texto, eu irei fazer alguns comentários adicionais. Basicamente, spoilers. Se quiser, é só continuar a leitura. O texto antigo estará em cor diferente.
RESENHA:
Kira é uma moça muito tímida, em sala de aula sua voz praticamente não é ouvida. No entanto, ela tem um grande talento para o desenho. Um dia, quando ela desenhava em um parque perto de sua casa, é abordada por um rapaz que lhe pergunta onde fica o hospital universitário. O rapaz estuda na mesma sala que ela, mas nunca sequer percebeu sua presença. Kira rabisca um mapa, em um papel qualquer e dá ao rapaz sem dizer palavra. O rapaz se chama Rei, é o delinqüente e garanhão da escola, ou pelo menos é assim que Kira o vê. Só que Rei acaba ficando fascinado pelo rascunho que havia no papel dado pela moça. Mas por que a imagem de uma mãe e um bebê teriam impressionado tanto o rapaz?
No outro dia, ele finalmente percebe que Kira é sua colega de classe, mas ela o evita, foge dele. Mas, para dizer a verdade, ela foge de todo mundo. O melhor amigo de Rei, Tatsuya, que é apaixonado por Kira desde o ginásio, diz que a moça tem nojo dos homens. Intrigado, Rei tenta se aproximar e acaba "seqüestrando" um dos elásticos de uma das tranças da garota para prender seu cabelo enquanto jogava basquete à dinheiro.
No outro dia, Rei tenta entregar o rascunho que estava nas costas do mapa. Kira diz que não havia importância e que ela iria jogar o papel fora mesmo. Rei então pede que ela lhe dê o desenho, diante da alegria do rapaz, Kira promete dar o quadro quando ele ficar pronto. Mas Rei não quer ficar em débito e promete que irá protegê-la em troca e, talvez, se ela quiser poderia até emprestar o seu corpo para que ela se divertisse. Kira pensa por um instante e diz que realmente quer o corpo do rapaz. Rei chega a levar um tombo da escada de susto, mas Kira quer o seu corpo para servir de modelo. Afinal, ela nunca vira alguém tão belo... E assim começa o relacionamento dos dois. (Ir além seria dar spoilers... Bem, quem sabe no futuro?)
Mars é um mangá de quinze volumes e começou a ser publicado na revista Betsufure em fevereiro de 1996, sendo concluído em dezembro de 2000. A autora Fuyumi Souryo já tinha publicado outros mangás, mas Mars é a obra que a projetou fora do Japão, tendo sido publicada nos EUA, na Itália e na França. Direcionada a um público no final da adolescência, Mars é narrado, na maioria do tempo, em primeira pessoa, sob ponto de vista de Kira, a garota aparentemente tímida, mas que carrega um grande trauma. A autora junta romance, drama e uma pitada de aventura, já que Rei é piloto de motos, e aproveita para mergulhar fundo no psicológico das personagens.
Tanto Rei quanto Kira têm sérios problemas emocionais, e seu romance ajuda ambos a começar a superar os problemas e fecharem velhas feridas. Mars também tem um gaiden que se passa antes de Kira e Rei se conhecerem. Não me cabe aqui dizer que Mars é uma obra prima ou uma história original, pois isso seria mentira. Afirmo, no entanto, que é uma história muito bem contatada, humana e até viciante, tanto que tem me deixado presa do início ao fim dos volumes. Além disso, a arte é muito bem cuidada.
Souryo sensei, que agora está publicando em uma revista seinen (*na verdade, parece que ela se mudou mesmo, afinal, já escrevi esse texto faz vários anos e ela não voltou a publicar nenhum shoujo*), criou personagens sensíveis e interessantes. Rei é um garoto problema, é verdade, mas ele tem fortes razões para isso, no entanto, é capaz de se encantar com a beleza de um rascunho e trata Kira com tanta gentileza e cuidado que mesmo em seus momentos mais violentos (com os outros) não temos como não gostar dele. Isso não impede, claro, que torçamos para que ele se conserte... aliás, até o próprio Rei se conscientiza dessa necessidade. Já Kira apesar de tímida e reprimida se descobre capaz de ser corajosa e enfrentar desafios que antes sequer poderia sonhar. Mesmo as personagens secundárias, que são poucas, aliás, têm seu encanto, sem nenhum espaço para caracterizações rasas ou maniqueístas.
A trama também toca em um tema espinhosíssimo, o abuso sexual dentro da família, e que muitas vezes é tratado com muita hipocrisia e desrespeito pelas vítimas. Lendo Mars, eu imagino o quanto ele deve ter ajudado algumas meninas japonesas a se relacionar e superar a sua dor e, talvez, ajudasse muita gente no Brasil também. Outro ponto interessante, é que em Mars não existe lenga-lenga, vai e volta, quando o assunto é o romance das protagonistas. Todo mundo sabe que os dois vão ficar juntos desde o começo e somente a morte poderá separá-los... A única coisa que talvez alguns fãs da cultura japonesa possam ver como ponto negativo, embora possa também facilitar a aceitação do mangá pelos não-iniciados, é o fato da autora não carregar na caracterização nipônica. Por exemplo, na escola não se usa uniformes e nada a não ser os nomes das personagens nos lembra que estamos no Japão. Assim, Rei poderia ser Paul, Peter, John, Jacques, Sérgio, ou seja lá qual nome sem nenhum problema.
Apesar de seu enorme sucesso, Mars, como muitos shoujo mangás, não tem anime. Mas isso não é sinônimo de qualidade inferior, até porque nem todo o mangá vira anime, fora que existem outros caminhos, como os Drama-CDs e as novelas live action. Fora isso, nada impede que uma série animada ainda venha a ser feita nos próximos anos, por falar nisso, Peach Girl está prestes a ganhar uma série de TV. Aliás, recentemente Mars, assim como aconteceu com Peach Girl, Hanakimi e Hana Yori Dango, foi transformado em live action em Taiwan.
Eu não me empolguei muito com Peach Girl ou Meteor Garden, mas Mars me pareceu muito bom e fiel ao mangá. Eu amei tudo o que vi até agora e o ator que faz Rei é gatíssimo. Se você se interessou pela série, pode encontrar maiores informações em vários sites pela net, já que a página oficial está em chinês. Alguns episódios já estão disponíveis para download e você pode encontrá-los nesta página (*na verdade, não existe mais*).
Eu não me empolguei muito com Peach Girl ou Meteor Garden, mas Mars me pareceu muito bom e fiel ao mangá. Eu amei tudo o que vi até agora e o ator que faz Rei é gatíssimo. Se você se interessou pela série, pode encontrar maiores informações em vários sites pela net, já que a página oficial está em chinês. Alguns episódios já estão disponíveis para download e você pode encontrá-los nesta página (*na verdade, não existe mais*).
Mars seria um grande presente para nós, fãs de shoujo, aqui no Brasil. Houve até alguns boatos de que a série seria lançada pela Panini. Eu mesma se tivesse que escolher entre Mars e Peach Girl não teria dúvidas. Com o cancelamento (*ninguém confirma, mas efetivamente é o que parece que ocorreu*) de Peach Girl, as possibilidades de termos Mars por aqui caíram abaixo de zero. Perdemos muito com a atitude que a Panini teve em relação à Peach Girl e como Mars é um mangá que poderia ser considerado como parecido, as editoras vão fugir dele, fora que muita gente não conhece, em especial, quem não se liga em shoujo mangá. Pois bem, é impossível crer que uma obra que fez sucesso no mundo inteiro fracassasse aqui, mas se conseguiram ferrar Peach Girl, podem ferrar qualquer mangá. Mas procurem no Mirc, pois existe a lenda de que os mangás da Tokyopop circulam por lá.
Retomando esse texto tantos anos depois, percebo que deixei de tocar em muitas questões presentes na série, como o bullying e a questão do suicídio entre os jovens japoneses. As duas coisas estão ligadas dentro de Mars, uma série que não se omite em trabalhar com temas pesados. Rei tinha um irmão gêmeo, esse irmão se foi... sua mãe não era lá uma pessoa muito normal e, também, se foi... Há Masao, o sociopata que aparece para atormentar Rei e Kira, uma figura realmente perigosa e doentia, que quer colocar fim à felicidade do casal e arrastar o protagonista para um processo destrutivo. Fora isso, Rei vive em uma situação de quase miséria, mas é rico, e uma das coisas que se faz necessário resolver ao longo da história é a relação do moço com o pai.
Deixei de falar de questões de gênero, também, ou, pelo menos, de discutir um pouco mais sobre isso. Kira não tem amigos no início da série e sua primeira amiga, Harumi, estréia na história como uma bully ex-namorada ressentida de Rei. Alguns podem achar que o perdão de Kira e a amizade das duas irreal, mas é comum nos mangás para meninas, dos bons mangás, eu diria, mostrar que a amizade entre as mulheres é algo importante e que brigar por homem não leva você a lugar algum. Claro que a rapidez do fazer as pazes pode ser questionada nesse caso, mas melhor isso do que os exageros de Peach Girl. Sae é engraçada, mas as situações da série são muito exageradas mesmo.
Outras mulheres presentes na série - e não vou entrar em detalhes da mãe de Rei - são a motociclista esposa do amigo que Rei foi visitar no hospital, a vizinha trans do já casal Kira e Rei e a mãe de Kira. A amiga motociclista não aparece muito, lembro dela, porque a moça diz que iria largar as pistas, porque corrida não era coisa de mulher. Não sei se corresponde à opinião da autora, mas como o assunto não rende, não dá para elucubrar mesmo. O fato é que ela é a única mulher corredora e não ter um contraponto para essa fala é, sim, muito ruim.
Falando da mãe de Kira, se a jovem protagonista consegue se libertar e crescer, sua mãe, ao contrário, continua presa em um casamento marcado pelo abuso. As leis japonesas quanto às pensões deve ter alguma coisa a ver com isso, eu acredito. Viúva, dona de casa (*não é isso que se espera de uma mulher japonesa?*) e com uma menininha para criar, ela se casa de novo. O marido abusa de sua filha. Em um dado momento, ela se separa, mas sem pensão do morto, ou do ex-marido vivo e sem experiência no mundo do trabalho, acaba em empregos mal pagos e exigentes demais. Sua saúde não resiste, o marido vem em seu socorro, pede perdão, ela o aceita de volta... E Kira? Eu não consigo olhar para essa mulher - e essa deve ser a história de várias mulheres pelo mundo - senão com pena. Ela é incapaz de defender a filha e acredita que é melhor ter o abusador em casa do que ver Kira passando fome. É a menina que precisa sair de casa, e ela sai. É sua libertação.
Lembro que quando li Mars pela primeira vez, chorei bastante, especialmente em uma cena na qual Kira, "casada" e fora da escola, com Rei trabalhando o dia todo, se sente só e sem perspectiva de vida. É a vizinha trans, uma personagem positiva e bem resolvida, que lhe dá a mão. Eu já me senti sozinha e sem muita idéia do que fazer e isso em um momento paradoxalmente feliz da minha vida. Recém casada, mudei para Brasília, sem emprego, sem amigos/as, sem trabalho, eu me sentia muito só, especialmente, quando meu marido estava fora. Ter uma amiga naquele momento poderia minimizar a minha solidão. Além de mim, conheci uma pessoa que disse que uma amiga chorou muito ao ler o mangá por lembrar do próprio abuso que sofreu. O mangá ajudou essa moça de alguma forma a rever questões em sua vida.
Algo importante que Mars trabalha é a cura de uma menina sexualmente abusada. A introspecção e vulnerabilidade de Kira, sua aparente repulsa aos homens era uma fuga e um pedido de socorro. Sempre me parecem absurdas as histórias em que uma pessoa que sofre abuso se atira ao prazer sexual, se abre com facilidade, para um parceiro/a, sem que houvesse traumas ou feridas psicológicas a tratar. No caso de Kira até que ela chegue ao ato sexual com Rei, há um grande caminho a percorrer e não se trata de temores de mocinhas virgens de mangá, mas das reservas de alguém que foi abusada por mais de um adulto. A paciência e o sofrimento de Rei são muito bem desenvolvidos, também, e a autora em nenhum momento é leviana com questões tão séries como outras mangá-kas por aí.
Enfim, Mars é uma série muito sensível e inteligente. Com problemas, como qualquer produto, mas um dos melhores shoujo mangá que eu já li. Realista na medida certa, atual, e lembrado pelos japoneses. Espero que o dorama esteja fazendo muito sucesso e que o filme consiga um grande desempenho nas bilheterias.
Deixei de falar de questões de gênero, também, ou, pelo menos, de discutir um pouco mais sobre isso. Kira não tem amigos no início da série e sua primeira amiga, Harumi, estréia na história como uma bully ex-namorada ressentida de Rei. Alguns podem achar que o perdão de Kira e a amizade das duas irreal, mas é comum nos mangás para meninas, dos bons mangás, eu diria, mostrar que a amizade entre as mulheres é algo importante e que brigar por homem não leva você a lugar algum. Claro que a rapidez do fazer as pazes pode ser questionada nesse caso, mas melhor isso do que os exageros de Peach Girl. Sae é engraçada, mas as situações da série são muito exageradas mesmo.
Outras mulheres presentes na série - e não vou entrar em detalhes da mãe de Rei - são a motociclista esposa do amigo que Rei foi visitar no hospital, a vizinha trans do já casal Kira e Rei e a mãe de Kira. A amiga motociclista não aparece muito, lembro dela, porque a moça diz que iria largar as pistas, porque corrida não era coisa de mulher. Não sei se corresponde à opinião da autora, mas como o assunto não rende, não dá para elucubrar mesmo. O fato é que ela é a única mulher corredora e não ter um contraponto para essa fala é, sim, muito ruim.
Falando da mãe de Kira, se a jovem protagonista consegue se libertar e crescer, sua mãe, ao contrário, continua presa em um casamento marcado pelo abuso. As leis japonesas quanto às pensões deve ter alguma coisa a ver com isso, eu acredito. Viúva, dona de casa (*não é isso que se espera de uma mulher japonesa?*) e com uma menininha para criar, ela se casa de novo. O marido abusa de sua filha. Em um dado momento, ela se separa, mas sem pensão do morto, ou do ex-marido vivo e sem experiência no mundo do trabalho, acaba em empregos mal pagos e exigentes demais. Sua saúde não resiste, o marido vem em seu socorro, pede perdão, ela o aceita de volta... E Kira? Eu não consigo olhar para essa mulher - e essa deve ser a história de várias mulheres pelo mundo - senão com pena. Ela é incapaz de defender a filha e acredita que é melhor ter o abusador em casa do que ver Kira passando fome. É a menina que precisa sair de casa, e ela sai. É sua libertação.
Lembro que quando li Mars pela primeira vez, chorei bastante, especialmente em uma cena na qual Kira, "casada" e fora da escola, com Rei trabalhando o dia todo, se sente só e sem perspectiva de vida. É a vizinha trans, uma personagem positiva e bem resolvida, que lhe dá a mão. Eu já me senti sozinha e sem muita idéia do que fazer e isso em um momento paradoxalmente feliz da minha vida. Recém casada, mudei para Brasília, sem emprego, sem amigos/as, sem trabalho, eu me sentia muito só, especialmente, quando meu marido estava fora. Ter uma amiga naquele momento poderia minimizar a minha solidão. Além de mim, conheci uma pessoa que disse que uma amiga chorou muito ao ler o mangá por lembrar do próprio abuso que sofreu. O mangá ajudou essa moça de alguma forma a rever questões em sua vida.
Algo importante que Mars trabalha é a cura de uma menina sexualmente abusada. A introspecção e vulnerabilidade de Kira, sua aparente repulsa aos homens era uma fuga e um pedido de socorro. Sempre me parecem absurdas as histórias em que uma pessoa que sofre abuso se atira ao prazer sexual, se abre com facilidade, para um parceiro/a, sem que houvesse traumas ou feridas psicológicas a tratar. No caso de Kira até que ela chegue ao ato sexual com Rei, há um grande caminho a percorrer e não se trata de temores de mocinhas virgens de mangá, mas das reservas de alguém que foi abusada por mais de um adulto. A paciência e o sofrimento de Rei são muito bem desenvolvidos, também, e a autora em nenhum momento é leviana com questões tão séries como outras mangá-kas por aí.
Enfim, Mars é uma série muito sensível e inteligente. Com problemas, como qualquer produto, mas um dos melhores shoujo mangá que eu já li. Realista na medida certa, atual, e lembrado pelos japoneses. Espero que o dorama esteja fazendo muito sucesso e que o filme consiga um grande desempenho nas bilheterias.
2 pessoas comentaram:
Olá, eu adorava as tuas resenhas do shoujo house, haveria possibilidade de publicá-los em algum lugar novamente? Tuas resenhas me fizeram descobrir vários mangás que eu adoro, como Utena, Paradise Kiss, Hana Yori Dango, Kare Kano, Mars, entre outros. Cada vez que alguém me pede uma indicação de mangá eu lembro daqueles textos e como eles seriam bons pra introduzir o shoujo para os meus amigos. Obrigado.
Achei o traço um pouco ruim, mas o enredo parece encantador, me surpreendeu
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