domingo, 21 de fevereiro de 2016

Comentando A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl, 2015)



Quinta-feira, assisti A Garota Dinamarquesa.  Saí de casa para ver Deadpool, muito mais por inércia, admito, afinal, eu detesto o Ryan Reynolds, e me surpreendi quando vi que estava bem na hora (*literalmente, quando entrei a película já estava começando*) de um filme que realmente queria assistir.  Enfim, não me arrependi.  É um filme bonito – o destaque absoluto é para o figurino, direção de arte e fotografia – e sensível, no entanto, nunca aquela expressão “loosely based”, algo como vagamente baseado, me pareceu tão correta, o filme deixa muito a desejar em relação ao registro da vida de Einar/Lili e da espaço demais em tela para sua esposa, a pintora Gerda Wegener.   Mas vamos ao filme!

A Garota Dinamarquesa conta a transição Einar Wegener (Eddie Redmayne), um dos melhores pintores dinamarqueses de sua época, para Lili Elbe.  Einar foi um dos primeiros homens a se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual, isso antes da existência dos antibióticos, pior ainda, de drogas contra a rejeição de órgãos transplantados.  Fora isso, o filme foca principalmente no relacionamento de Einar/Lili e Gerda (Alicia Vikander), a esposa que se debate entre apoiar o marido em seu processo de libertação e sua angústia por perder o homem que amava.


Antes de tudo, A Garota Dinamarquesa é um belíssimo filme, emocionante em muitos momentos, mas concordo com a primeira crítica que li sobre ele, em inglês (*não tenho o link, infelizmente*), vários meses atrás: o filme é sobre Gerda, a esposa da personagem trans, cuja carreira é projetada quando começa a usa Lili como modelo,  e, não, sobre a própria Lili.   Vikander é protagonista, não, coadjuvante, independente da jogada que os produtores tenham feito para que o filme recebesse mais indicações em premiações como os Oscar. Ela é a Garota Dinamarquesa. Tanto é assim que a expressão foi usada em referência a ela “The Dannish girl is out there!” (A garota dinamarquesa está lá fora!) em uma determinada cena do filme.  Daí é muito estranho que a excelente Alicia Vikander concorra ao Oscar de coadjuvante.  

Por tudo isso, não me surpreende então que algumas pessoas reclamem, só não consigo concordar com a desqualificação em relação à atuação de Eddie Redmayne.  O ator passa ao longo do filme por vários estágios.  Começa como um homem aparentemente seguro de si, mas, aqui e ali, certos detalhes, pequenas cenas, já sinalizam que Einar não era um sujeito comum.  Sensibilidade de artista?  Não necessariamente.  Mais adiante, quando começa a transição, e eu prefiro dizer a libertação de Lili e a morte de Einar, ele parece hesitante, trêmulo, perdido.  O que o povo esperava da interpretação dele, não sei, só imagino que não foi fácil para o verdadeiro Einar/Lili, nem para qualquer pessoa trans passar por algo semelhante.  Mais adiante, na sua busca, ele alterna medo, certeza, dor, angústia até se firmar como Lili.  Pronto, aí a atuação parece firme, sem receios ou amarras.  Ora, ora, o que eu vi em A Garota Dinamarquesa foi um grande trabalho de ator.


Alguns dizem que Redmayne está muito preocupado com os trejeitos durante o filme.  Bem, ele precisava libertar Lili e “aprender” a ser mulher seguindo padrões de gênero muito estreitos de sua época.  Até hoje as pessoas trans são submetidas a um escrutínio severo de seus comportamentos de gênero para que os especialistas acreditem que eles e elas podem realmente pleitear a mudança de sexo.  Enfim, lembrei-me do filme A Bela do Palco que mostra um processo semelhante “aprender a ser homem/mulher” em uma dada sociedade.  Talvez as pessoas se perguntem se Einar não era somente – como se pouco fosse – homossexual.  Sim e não.  Então, vou dar uma meia parada nessa resenha e tentar explicar a relação entre sexo biológico, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.  Espero que o/a leitor/a não se chateie. 

Sexo biológico, e vou ser muito binária aqui, se remete à identificação de um indivíduo ao nascer como homem ou mulher a partir inicialmente da observação da genitália, casos que gerem dúvida tendem a ser enquadrados em uma ou outra possibilidade, muitas vezes por ignorância, em outros casos, por questões de ordem ideológica, afinal, Deus criou homem e mulher, não é mesmo?  No filme, Lili esclarece que Deus, que não erra, ele a criou e Einar é que foi um erro da sociedade. :)  Já gênero tem a ver com comportamentos que são atribuídos aos homens e as mulheres.  Andar, movimentar as mãos, olhar, tudo isso tem a ver com gênero.  Espera-se que homens e mulheres se comportem de uma forma X ou Y, você pode até se esquivar e transgredir em alguns momentos, mas a maioria de nós se enquadra e se assujeita a muitos papéis, mais que isso, acaba acreditando que são inatos.    Só que se fossem naturais, não seria necessário reforçar esses comportamentos o tempo inteiro, daí a idéia de “performance”, encenar e reencenar (*vide a obra de Judith Butler*). 


No filme, e parece que a própria Gerda era uma pioneira nessa forma de ver a questão, gênero é visto como performance.  Lili nasce de um exercício artístico imposto por Gerda ao marido, uma experiência estética que se inicia com Einar posando para ela no lugar de uma modelo que havia se atrasado e serve de gatilho para que a mulher reprimida nele aflore.  Só que há mais duas variáveis a serem pesadas, a orientação sexual e a identidade de gênero.  

Orientação sexual tem a ver com desejo, ser heterossexual, homossexual, bissexual, assexual, ou o que mais aparecer.  No filme, antes de Lili aflorar, Gerda e Einar pareciam ter uma intensa vida sexual e o sonho de ter filhos fazia parte da vida dos dois.  Quando Lili se impõe, o desejo de ter filhos não desaparece, mas o desejo por Gerda, sim.  Nesse sentido, Lili é uma mulher trans heterossexual e, curiosamente, não desperta o desejo em uma personagem homossexual da história – Henrik  (Ben Whishaw) – que se interessava por Einar, não pela mulher que ele se tornou.  Complicado?  Sim e não.  E podem acreditar que o filme em si, mesmo intenso, consegue passar essas questões de forma muito tranquila, sem cair em nenhuma discussão de ordem teórica.  Eu é que estou me estendendo demais nessas questões. 


E falta a tal identidade de gênero que é como você se vê e sente, daí, nem sempre o seu corpo biológico (*e seu registro civil por tabela*) está em consonância com sua identidade de gênero.  Quando seu corpo biológico e identidade de gênero andam juntas, você é cisgênero, se as coisas não são bem assim, você pode ser uma pessoa trans, ou sofrer de algum transtorno que possa ou precise ser tratado (*o filme não entra no mérito, mas há a desconfiança de que Einar poderia ser um Klinefelter*).  Quanto à orientação sexual, ela pode não acompanhar nem o sexo biológico (designado), nem os comportamentos de gênero, tampouco a identidade de gênero.  Confuso?  Sim, muito.  Difícil? Também, claro.  

Agora tente imaginar esse rolo todo no início do século XX quando tais categorias não existiam, tampouco a reflexão teórica, ou mesmo o suporte médico terapêutico e psicológico possíveis em nossos dias.  Einar/Lili poderia ser tratado como efeminado, depravado, esquizofrênico, poderia, mesmo, ser internado a sua revelia ou preso a depender da legislação.  Tentem imaginar a angústia da personagem.  Nas próprias memórias de Lili, Man into Woman: The First Sex Change, esse conflito está presente, a culpa por “matar” Einar, a vontade do suicídio, confrontadas a felicidade por poder ser finalmente e somente Lili.


Duas das grandes cenas de Redmayne no filme são ao mesmo tempo angustiantes e belas, expressando bem as angustias e necessidades da personagem, o conflito entre corpo biológico e identidade de gênero, a urgência de performar um gênero que você nunca deveria exibir.  Uma das cenas é a do espelho, que tem um pequeno nu frontal masculino, aviso logo, e, a outra, quando ele paga para observar uma prostituta seminua por detrás de um vidro.  Nesta segunda cena, Einar/Lili imita os trejeitos da outra mulher, quer se esconder e quer se mostrar e a própria prostituta, acostumada a ser vista, passa no olhar e expressão corporal toda a curiosidade e desconforto da situação.  Eu não sei se no confronto com os outros candidatos Remayne mereceria levar outro Oscar para casa, não deve receber mesmo o prêmio, mas não deixa de ter sido um grande desempenho.  E registro aqui que é o segundo trabalho dele que eu vejo, como o Jack de Os Pilares da Terra, ele não me impressionou de forma alguma.

Indo para Alicia Vikander, bem, ela é uma ótima atriz, eu já sabia disso e há , aqui, no Shoujo Café, duas resenhas de filmes protagonizados por ela, A Royal Affair e Testament of Youth. O problema é que Gerda não deveria ser a protagonista do filme, seu sofrimento deveria ser secundário em relação ao de Einar/Lili e, lendo sobre a história dos dois, percebi que o correto deveria ser tirá-la de cena antes do fim do filme, como de fato havia ocorrido nos dias finais de Lili.  Só que o filme opta por prolongar a relação dos dois, omitindo mesmo o divórcio e anulação do casamento dado por concessão do próprio rei da Dinamarca.  


Enfim, vendo A Garota Dinamarquesa, não pude deixar de me sensibilizar com a situação de Gerda.  São várias, aliás, as questões em torno dela.  Primeiro, a luta de uma artista para que sua arte seja reconhecida.  Pelo que li, Gerda Wegener é o principal nome da Art Noveau dinamarquesa e os meios artísticos tradicionais rejeitaram seus trabalhos.  Isso, aliás, é bem desenhado no filme, ela é a esposa de um grande artista, alguém que deveria se contentar com isso, mas ela não aceita a posição. O marchand amigo de Einar aceita olhar seus trabalhos e a trata com complacência, mas os rejeita.  Ela não se dá por vencida.

De espírito livre, ela acaba estimulando o marido a encarnar Lili, posar para ela, e, mais tarde, ela se culpa, afinal, seu marido deixou de existir no processo.  Eu me senti tocada pelo drama da personagem, solidária com ela.  Impossível para mim não sofrer junto graças a grande atuação da atriz e, curiosamente, não havia a quem culpar, já que Einar/Lili era uma personagem igualmente simpática.  Houve críticas ao filme por não retratarem a suposta homossexualidade de Gerda, que a artista teria empurrado a transição Einar com seu comportamento ambíguo. A culpa é da mulher, entendem?  Aliás, há no filme um médico que a culpa por não trancar seu armário de roupas.  Tsc... Tsc.. O que ela queria?  Era tentação demais para Einar...


Enfim, pelo que li, não há sequer como precisar se ela era, ou não, lésbica, aliás, os indícios são em contrário.  Ela se casou duas vezes e nenhum relacionamento lesbiano é visível na sua biografia.   Talvez fosse bissexual, enfim... Apoiar Lili parece que é usado para determinar sua orientação sexual, o fato de pintar preferencialmente mulheres, também.  Eu lamento que não tenham mostrado as pinturas eróticas da artista, ela desenhava mulheres se relacionando com mulheres.  Isso é indício de algo?  Nem preciso dizer, mas digo, que as discussões sobre isso reforçam papéis de gênero, se Gerda era transgressora, era, portanto, dominadora e intimidadora em relação ao marido, daí ter auxiliado no afloramento de Lili, uma mulher extremamente feminina.  Se Gerda fosse bem comportada, tal não aconteceria. Será?  

Bem, no filme, o que parece sugerir seu caráter lesbiano é o fato de Gerda dizer que beijar Einar era como beijar a si mesma e a excitação que mostrava em relação ao marido usando peças suas.  Agora, isso pode sinalizar muito mais um fetiche do que homossexualidade, o fato é que Gerda não se enquadra e, ao mesmo tempo, no filme, é assujeitada pela paixão que sente pelo marido.  Algo tão forte que, mesmo depois que Lili sobrepuja Einar, a impede de viver um outro amor, especialmente, com o lindo Hans Axgil (Matthias Schoenaerts), amigo de infância de Einar e primeira paixão de Lili, todo solicito ali em volta dela.  De resto, toda vez que olhava para o Hans, amigo de Lili/Einar, pensava no Alemanha de Hetalia. Pensava também, "quando é que ele e a Gerda vão, pelo menos se beijar?"


Apesar de continuar elogiando o filme, as leituras posteriores me fizeram baixar a sua nota.  Depois de assisti-lo, daria 9,5.  Hoje, seria 8, pela infidelidade extrema em relação à vida de Einar/Lili.  Vou começar dizendo que assim como o filme Frida deveria se chamar Frida e Rivera, Este filme é sobre Lili e Gerda e não sobre a personagem trans.  Vikander é protagonista e é injusto, ainda que o estúdio possa justificar a estratégia, que ela não tenha sido indicada como atriz principal.  E ela pode ganhar como coadjuvante, vejam só, mas isso não vem ao caso.

A simplificação do drama do casal também apequenou o filme aos meus olhos, que parece ser uma versão limpinha de situações muito barra pesada.  A temporalidade, por exemplo, foi comprimida entre 1926, início do filme, e 1931.  Tudo é muito, muito rápido, quando, na verdade, Lili tinha surgido bem antes disso e o casal se mudado para Paris, uma cidade muito mais liberal que Copenhague, em 1912, e lá permanecido, em virtude da rejeição sofrida por Einar.  Seus antigos amigos lhe viraram as costas, seu trabalho começou a perder visibilidade, enquanto as pinturas de Gerda, que usava Lili como modelo, tornaram-se um sucesso.  Vejam só, deveriam ser quase 20 anos acompanhando a transição de Einar para Lili, o encurtamento do tempo, ajudou a dar a impressão para muitas pessoas de que tudo foi de repente.  Fora isso, os atores eram muito mais jovens que as pessoas que estavam interpretando.


As operações sofridas por Lili também não foram bem colocadas no filme.  Dois médicos pioneiros foram transformados em um só, o Dr. Warnekros (Sebastian Koch).  Quatro ou cinco operações que incluíram transplantes de ovário e útero, viraram duas intervenções com o objetivo de ajustar a genitália externa.  Simplificação em cima de simplificação.  A coisa foi muito mais dramática do que as modernas operações afinal, queriam transformar Lili em uma mulher completa.   E ainda eliminaram o companheiro de Lili nos seus últimos meses, o francês Claude Lejeune.  Ele estava com ela durante a última cirurgia, não Gerda.  Aliás, algo que me deixou encucada durante o filme é como Lili iria viajar sem documentos.  O fantástico, e isso o filme não mostrou, nem comentou, nem nada, é que ela foi reconhecida como mulher pelo Estado, recebeu documentos com seu nome feminino e, por isso, pode se inserir no mercado de trabalho e viajar, coisa que é negado para muitas pessoas trans até hoje.

A Garota Dinamarquesa cumpre a Bechdel Rule sem problemas.  Lili é o maior assunto do filme.  Trata-se de uma mulher, segundo a minha perspectiva.  Gerda é igualmente uma personagem preponderante e presente no filme até quando já deveria ter sumido.  Há outra personagem feminina de destaque, a bailarina Ulla Paulson (Amber Heard), amiga do casal e quem nomeou Lili.  No geral, aliás, trata-se de um filme de poucas personagens mesmo.  Poderia enquadrar A Garota Dinamarquesa como um filme feminista?  Sim e não.  Não vejo o filme como conscientemente feminista, mas ao abordar questões relevantes para as ativistas em nossos dias, além de mostrar perfeitamente como opera o gênero, um filme que pode se estar a muitas discussões.  Fora isso, o filme tem ajudado na redescoberta da arte de Gerda, uma artista ousada e livre das amarras de seu tempo.


É isso.  Está recomendado, apesar das muitas imprecisões históricas.  Ainda que superficial, já que o drama das personagens na vida real era muito mais complexto, trata-se de um belo produto cinematográfico, mais ainda, nunca se vendeu como um filme fiel à vida de Lili/Einar, as como adaptação do romance The Danish Girl de David Ebershoff.  Fidelidade, aliás, não credencia um bom filme, ainda que eu lamente que A Garota Dinamarquesa não tenha se esforçado mais para retratar a vida de Lili Elbe.  

1 pessoas comentaram:

Olá, Valéria! Vc não planeja voltar com o blog Uma Voz Feminista? Foi a partir do seu blog que conheci o Escreva, Lola, escreva. Mas admito a forma como você analisa. Um abraço.

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