“Quando se cede a uma extrema minoria que só representa a si mesma, reconhece-se a sua autoridade.” (p. 70)
Começo o texto com esta frase, pois ela sintetiza a meu ver todo o texto que Charb, nascido Stéphane Charbonnier, diretor da Charlie Hebdo, concluiu dois dias antes do massacre promovido na revista em 5 de janeiro de 2015. Direto, sucinto durante boa parte do tempo, o texto intitulado “Carta aos Escroques da Islamofobia que fazem o jogo dos Racistas” deve incomodar muita gente, em especial, aos que em nome de uma suposta defesa das minorias, está cedendo espaço para que fundamentalistas imponham a mordaça e os antolhos a toda sociedade.
Você não lembra do massacre na Charlie Hebdo? Não sabe do que estou falando? Pois bem, escrevi um post quando do incidente terrível, ele está aqui. Vamos agora ao livro. Será breve a resenha, como é breve o texto de Charb, míseras 90 páginas, se muito. Comprei o livro na sexta-feira e o teria devorado no mesmo dia não fossem minhas responsabilidades e o cansaço. De qualquer forma, a leitura foi rápida e só confirmaram que #jesuischarlie até o fim, ainda que não concorde com tudo o que Charb escreveu, pois, como escrevi em meu texto sobre a tragédia, fundamentalistas – de todas as cores e credos – nunca irão parar de exigir e se cedemos uma unha, daqui a pouco teremos que oferecer o corpo inteiro.
Não poderia eu colocar de forma mais clara. Normalmente, quando acontecem incidentes como esses – e houve alguns aqui no Brasil depois dos atentados em Paris – é o aspecto religioso da agressão, a ofensa ao Islã, pois é dele que estamos falando, que é posta em evidência. E, claro, é mais fácil alvejar as mulheres, especialmente, quando elas são compelidas a marcarem sua fé no próprio corpo. As religiões patriarcais adoram fazer isso e, depois do 11 de setembro (*e de novelas como O Clone*), caiu no senso comum que muçulmana só é muçulmana de verdade se usa o véu (hijab), já os homens, a maioria deles, prefere se misturar à multidão. Voltando ao ponto, talvez, para os próprios reclamantes, especialmente, os religiosos, uma mulher não tenha o direito de se vestir como bem queira – pelada, totalmente coberta, whatever – é a bandeira religiosa, ou política, que importa.
Em 2011, a sede da Charlie foi destruída em resposta à republicação das charges dinamarquesas de Maomé. |
Entre as questões que Charb tenta situar logo de saída é que, para ateus, não existe blasfêmia religiosa: “Os textos ‘sagrados’ só são sagrados para os que acreditam neles.” (p. 25) Estabelecido isso, não existe nada de sagrado em qualquer texto sagrado ou símbolo que qualquer religião considere como tal, especialmente, em um Estado Laico. Mais adiante, em crítica direta aos anos Sarkozy, ele critica o fato de que uma lei que pune ofensa aos símbolos pátrios – a bandeira tricolor – tenha sido aprovada, quando atos de vandalismo contra o patrimônio público, por exemplo, já não estivessem categorizados na legislação francesa.
“Ofender” a bandeira da França, não é ofender todos os franceses, trata-se de uma lei que tenta estabelecer a blasfêmia não-religiosa e que foi usada uma única vez, contra um cidadão argelino que, ao ser mal atendido em uma repartição pública, quebrou, em um ataque de raiva, um mastro com a bandeira do país. Charb argumenta que o uso da lei – desrespeito aos símbolos pátrios – foi astutamente conclamada para atender aos interesses do governo de estimular o preconceito contra o emigrado, como alguém que ameaça à ordem pública e a própria identidade francesa.
Enfim, voltando ao ponto, ateus não podem ser acusados de blasfêmia, nisso concordo com Charb. Mesmo os que crêem em alguma coisa podem discordar do que seja blasfêmia e, com o texto se esmera em discutir, não raro quem se ofende – com a arte, especialmente – tem uma visão muito estreita do que seja ofensa religiosa. O autor cita inclusive dois incidentes no qual a extrema-direita católica e os extremistas muçulmanos se juntaram. O primeiro, em um protesto contra uma peça de teatro que o grupo católico Divinitas considerou ofensiva à figura de Jesus, nem mesmo os católicos entenderam a presença dos islamitas radicais clamando respeito ao profeta Issa (Jesus) enquanto os racistas católicos presentes soltavam expressões ofensivas contra os “mulatos” barbudos. O segundo, quando a França discutia o casamento igualitário.
A Charlie irrita muita gente, critica muita gente, não somente os radicais muçulmanos. |
Outro ponto importante do texto é a questão da Islamofobia, presente, aliás, no título. Para Charb, e não discordo totalmente dele, ela é uma ficção, e o que existe é racismo contra os emigrados e seus descendentes, especialmente, os que vieram do Norte da África. Ao se usar o termo islamofobia, o racismo real ficaria diluído e um falso racismo, já que muçulmanos não são membros de uma mesma etnia seria criado, outro ponto que ele levanta é a tentativa de associar todos os francses ou emigrados de origem árabe ou magrebina como muçulmanos, daí as estatísticas que volta e meia circulam por aí de que a França tem 7 ou 8 milhões de islâmicos quando o último senso (2010) teria apontado 1 milhão e 200 mil, se bem me lembro da leitura. Vamos lá, tentarei explicar do que ele está falando.
Para exemplificar a questão do racismo explícito na França, Charb coloca que se dois muçulmanos, um deles com nome tipicamente árabe e aparência norte africana e um francês típico chamado Gérard, tentassem alugar um apartamento o primeiro talvez fosse recusado e ao segundo não seria perguntado nada, especialmente, sobre sua fé. A discriminação seria pela aparência, pela cor da pele, origem e por aí vai. A religião não teria parte nisso. OK, mas e se ambos estivessem caracterizados com roupas associadas aos praticantes do Islã? E se fossem duas mulheres usando o hijab, e nem falo do niqab, mas do véu islâmico mais simples? Será que sua fé não pesaria na avaliação?
Para mim, não para Charb, o racismo existe e precisa ser denunciado, mas existe, também, a islamofobia que não pode, claro, ser usada para encobrir o racismo, tampouco, para justificar a demanda de certos grupos radicais que desejam posar de maioria. O outro ponto, o da islamofobia como uma forma de racismo, concordo integralmente com Charb. O Islã, assim como o Cristianismo, o Judaísmo (*que não faz proselitismo*), o Budismo são religiões de caráter universal, isto é, são para todos, podem ser abraçadas por pessoas oriundas de qualquer grupo étnico-racial. Não há como tentar transformar a islamofobia em uma forma de racismo, que, nas suas origens, tinha como objetivo tentar igualar a perseguição ou discriminação aos muçulmanos ao antissemitismo.
A edição brasileira do manifesto. |
Ainda no texto de Charb há a denuncia do perigo de dar às minorias radicais o direito, ou melhor, autoridade, de falar pela maioria. Mais ainda, o autor acusa os jornalistas e outros interessados que abraçam essa idéia para vender jornal (*daí a divulgação sensacionalista dos protestos isolados sobre as charges de Maomé*), para conseguir atingir sua agenda política, ou, simplesmente, porque isso atende aos seus preconceitos. “Sem a cumplicidade, na maioria das vezes imbecil, da mídia, o termo “islamofobia” não conheceria esse sucesso delirante. Por que os meios de comunicação foram tão ágeis em se apoderar da islamofobia? Primeiro, por negligência, depois por atração pela novidade e, finalmente, por interesse comercial. Não há nenhuma motivação antirracista por parte deles, (...)” (p. 31)
Mais adiante, ele acrescenta que, após o 11 de setembro, “(...) um terrorista provoca muito cagaço, mas se você acrescentar que é islâmico, todo mundo se borra nas calças. O medo vende bem. O islamismo que dá medo vende bem. E o islamismo que dá medo se tornou o único islamismo visível aos olhos do grande público. ” (p. 31-32) Para muita gente, muita mesma, ser muçulmanos é ser terrorista. Pare simplesmente para refletir que há neste mundo pelo menos 1,6 bilhões de pessoas que professam esta fé (dados de 2010), é possível defender e acreditar que todos são membros do ISIS ou do Talebã? Isso não é razoável.
Ainda sobre o papel daninho da mídia, Charb relembra o caso da republicação das charges de Maomé: “Foi porque a mídia decidiu que a republicação das caricaturas de Maomé não podia deixar de desencadear furor dos muçulmanos que essa republicação desencadeou a cólera de certas associações muçulmanas. Cólera de fachada, para alguns... Uma vez que os microfones e as câmeras cercavam os representantes dessas associações e os jornalistas os pressionavam a se pronunciar sobre o caráter blasfematório dos desenhos, afinal era preciso que esses porta-vozes reagissem. Era preciso mostrar aos fiéis mais irritados que eram verdadeiramente bons defensores da fé.” (p. 35)
Os deuses mudam, o blasfemador permanece. |
O que Charb não entende, porque talvez somente quem cresceu dentro de um ambiente religioso, e tenha seguido essa malfadada carreira de historiadora, como eu seja capaz de ver é que os moderados de uma fé, ou seja, a maioria dos fiéis, sentem um tiquinho de inveja dos radicais. Como assim? É como se os extremistas fossem aqueles que realmente estivessem vivendo a fé da maneira correta, eles são os fiéis, enquanto nós, os outros, os que carecem de coragem.
Quantas vezes não ouvi quando alguém criticava o radicalismo de algumas igrejas, ou de seus líderes populistas: “Eles é que estão certos... Nós estamos errados em não fazer x, y, z!” O mesmo parece acontecer com os judeus em relação aos ultra-ortodoxos e, sim, com os muçulmanos quando vêem seus radicais. E não precisa falar, a maioria não fala, aliás, basta ficar meio que inerte diante das ações dos extremistas ou defendê-los mesmo como se o ataque aos radicais fosse um ataque a todos os fiéis. Não, não é, mas é assim que acontece. Fora, claro, que outra coisa que a gente ouve desde pequeno/a é “não critique os crente (fiéis) na frente dos infiéis!” Não acho que seja coisa de crente (evangélico), não. Aliás, Irshad Manji diz o mesmo de sua infância e adolescência como muçulmana em seu livro (obrigatório) Minha Briga com o Islã. Eu não estou sozinha mesmo.
Charb em seu manifesto também denuncia a covardia de outros artistas, que recuam diante dos ataques dos fundamentalistas, ou até tentam barganhar seu silêncio com eles, e de autoridades. Os exemplos citados são tristes e assustadores. Lembrar que a coragem dos cartunistas da Charlie custou-lhes a vida por não recuarem, só faz ver que, realmente, eles não tinham medo, ou, se tinham, abraçavam sua profissão com tal afinco e certeza que acreditavam que valia a pena não somente por eles, que publicam um jornal de tiragem limitada e que nem tinha versão on line, mas pelo direito à liberdade de expressão.
A sede da Charlie depois do atentado. |
Enfim, me estendi demais. O texto de Charb é rico. Escorrega – e isso é questão de opinião – aqui e ali. Tem um último capítulo, onde ele defende que os ateus são pacíficos e de boa vontade (*menos, menos...*), que é chatinho, mas que, bem, fecha com chave de ouro “Nenhuma discriminação é menos ou mais grave do que outras.” (p. 94) Sabe as olimpíadas da opressão que muitas vezes dividem a militância? É preciso repensar essas coisas sem, obviamente, perder de vista os privilégios que uns têm e as hierarquias que existem no social. É isso. A editora do manifesto é a Casa da Palavra, que está de parabéns pela coragem e senso de oportunidade.
4 pessoas comentaram:
Talvez uma melhora, ao menos no nível semântico, viesse de parar de chamar os religiosos não-alinhados com o extremismo de "moderados". Dizer que alguém é um cristão, judeu ou muçulmano moderado, mais do que dizer que ele não é um radical, parece dizer que tal pessoa é só um pouco religiosa, que não está totalmente inserida ou convicta daquela fé - enfim, que cumpre apenas com algumas de suas obrigações religiosas e de modo condecendente. Isso de certa forma parece ajudar na impressão que muitos "moderados" têm de não cumprirem totalmente com seus deveres religiosos, como você disse.
É complicado, Samuel. O que colocar no lugar? Quando pensamos em extremista, mais até do que radical, essa, sim, uma palavra que pode ser apropriada positivamente, sabemos do que falamos. Se eu uso cristão/judeu/muçulmano sem qualificação, posso sugerir que eles e elas são os verdadeiros praticantes da fé. A meu ver, o extremista, chamemos como quiser, também é, na leitura enviesada que faz, mas é. E há outros qualificativos, um deles, muito usado para católicos: não-praticante. Ora, quando se usa moderado, mais do que pensar na fé, estamos normalmente nos remetendo às postura políticas, como relaciona a sua fé ao contexto mais amplo.
E mais, nunca vi em ambiente religioso o uso da palava "moderado", são os analistas políticos que a utilizam.
De certa forma, acho que o termo "islamofobia" ainda tem sua pertinência, mesmo que muitas vezes ele esteja ligado a opressões mais abrangentes, como racismo e xenofobia. Afinal, como designar a violência sofrida por pessoas que são da mesma raça, etnia e nacionalidade que seus agressores, sendo a única diferença a religião - como costumam ser os ataques sofridos por alguns muçulmanos aqui no Brasil, que não são árabes nem estrangeiros, apenas religiosos recém-conversos?
Sim, Samuel, e eu concordo com você. Talvez, não tenha ficado claro no meu texto, mas é o autor, o Charb, que tenta anular totalmente o uso do termo. É como quando tentam anular o racismo dizendo que o econômico é o determinante. Se assim fosse, não haveria lugares "para ricos" que não aceitam negros como moradores. Ora, ora, para ser morador é necessário ter dinheiro.
Agora, que há um abuso no uso do termo islamofobia, sim, existe. Não se pode transformar a discriminação ao muçulmano por ser muçulmano em uma forma de racismo passando por cima do fato de que qualquer um pode ser muçulmano, ainda que, em determinados lugares, a cor da sua pele, ou o formato do seu nariz, possa, sim, estar mais ligado aos praticantes da religião.
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