“Eu fui um ditador. E não me arrependo.” Esta é uma das frases mais marcantes de Getúlio (2014), filme brasileiro que cobre os últimos de vida de Getúlio Vargas, homem que governou o Brasil duas vezes, primeiro, entre 1930 e 1945, boa parte do tempo como ditador, e, depois, de 1951 até 1954. Seu segundo governo, marcado pela criação da Petrobrás, e, também, por uma forte oposição e pressão golpista dentro e fora do governo, foi interrompido por uma bala no peito e eternizado pela famosa carta testamento que neutralizou seus adversários e qualquer possibilidade de interrupção do período democrático.
Interpretado de forma correta, mas não memorável, pelo menos para mim, por Tony Ramos, o mais importante presidente que o Brasil já teve é retratado idoso, amargurado com as traições e trapalhadas de seus aliados – parentes, inclusive – e cônscio de seu papel histórico, do peso que possui. Não é um filme brilhante, mas é bem executado e com interpretações marcantes, destaque para Drica Morais, como a filha e braço direito de Getúlio, Alzira Vargas.
Getúlio cobre os 19 dias finais da vida de Vargas. Iniciando-se com o atentado contra a vida de Carlos Lacerda e a morte de seu guarda-costas, o Major da Aeronáutica Rubens Vaz. O incidente é capitalizado pelos opositores de Vargas que exigem sua renúncia e/ou planejam sua derrubada. A situação se agrava quando as investigações chegam até o Catete, residência do presidente, sua guarda pessoal e mesmo seus parentes. Acuado, mas decidido a permanecer no cargo, acompanhamos a gestação e execução do suicídio que mudaria a história.
Comecei a ver o filme Getúlio várias vezes e tive que interromper por algum motivo, no entanto, depois de engrenar a primeira meia hora, é difícil largá-lo. Trata-se de um filme claustrofóbico, angustiante, mas que não entedia, porque consegue entregar boas interpretações e tem uma direção competente. Descobri somente agora que o diretor João Jardim é marido de Carla Camurati, uma das produtoras do filme, já o roteirista é uma das estrelas em ascensão na rede Globo, o competente George Moura. Queria ter assistido no cinema, mas não consegui, enfim, nenhuma novidade isso.
O filme ganha muitos pontos ao não tentar descaracterizar Vargas, isentando-o de suas posturas autoritárias e populistas. Como semi-narrador do filme, o presidente defende seu período como ditador como necessário e fundamental para o desenvolvimento do país. Lá, já chegando no final, lamenta que ninguém nunca dele se aproximou pensando no país, mas em buscar vantagens para si mesmo. O filme é pró Vargas e, pelo menos para mim, é fácil ficar a favor do presidente, afinal, trata-se do velho simpático, o pai dos pobres, o mártir e, não mais, o ditador que se vestia à Mussolini e enviou Olga Benário – estrangeira, grávida de um brasileiro, judia e comunista – para morrer nas mãos dos nazistas. Não é esse o Vargas de Getúlio, ainda que o Vargas velho do filme afirme que não se arrepende de nada do que fez.
O Vargas de Tony Ramos é um homem velho, uma fera acuada, por assim dizer. E quem o encurralou? Carlos Lacerda, obviamente, porta-voz dos golpistas desde antes da eleição de Vargas em 1951, a imprensa quase como um todo (*e o filme pega leve neste aspecto, afinal, há dinheiro da Globo Filmes nele*) e a opinião pública fortemente influenciada pela mídia e os golpistas. O atentado contra Lacerda foi decisivo, independentemente de como seja encarado. Gente ligada a Getúlio teria contratado um matador para despachar o Corvo, apelido de Lacerda, ou alguém para seguir os seus passos e um confronto com o Major Vaz terminou de forma trágica? Uma bala de Lacerda atingiu-lhe o próprio pé e mesmo o Major? Ele nunca entregou seu 38 para a perícia e as radiografias desapareceram...
De qualquer forma, era tudo que os inimigos de Vargas precisavam. Há uma anedota – já que não há como confirmar – que circulou desde então que diz que quando Tancredo Neves, então Ministro da Justiça, recebeu a ligação do chefe de polícia comunicando do atentado a conversa teria sido a seguinte: “Tentaram matar Lacerda.”, disse o chefe de polícia. “Poderia ter sido pior,” responde Tancredo. “E mataram um major da aeronáutica”, completa o policial. Tancredo, então, teria retrucado que “Não poderia ter sido pior”. O fato é que a Força Aérea era a mais udenista das forças, mas sozinha, nada poderia fazer. A Marinha pendia para o golpe. O Exército estava dividido, mas era mais fiel, nem que fosse à Constituição, do que as outras armas. Getúlio, no entanto, lamenta a perda de apoio dos militares que lhe foram tão úteis entre 1930 e 1945. Aliás, muita gente subiu muito rápido por conta dessa aliança...
O filme, que se passa quase integralmente no Catete, se esmera em mostrar os confrontos entre as diversas personalidades políticas da época. E, bem, como há muita gente em cena, usaram daquele recurso didático que eu odeio, letreiramento explicando quem é quem... De qualquer forma, o clima em 1954 me parece funestamente parecido com o que temos hoje. Vide o papel do Vice-presidente, Café Filho (Jackson Antunes), que se volta contra Getúlio e negocia ministérios contando com a derrocada do presidente. Obviamente, os atores e atrizes que temos hoje são bem inferiores... E não temos um Lacerda (Alexandre Borges), não que eu lamente, claro.
Falando em Lacerda, assim como eu não consigo ver no Vargas de Tony Ramos o Vargas que imagino, achei que Alexandre Borges não foi o melhor Corvo que já vi. Outros atores já interpretaram os dois. Tony Ramos dá um tom deprimido à Vargas, OK, mas no caso de Borges, faltou emoção. Também fica difícil ver Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio e mandante do atentado (*segundo investigações altamente contestáveis controladas por inimigos de Getúlio*), em Thiago Justino. Neste caso, não tenho dúvidas, o melhor “Anjo Negro” foi e sempre será Toni Tornado. Dúvidas? Assistam a minissérie Agosto. Faltou presença e a atitude orgulhosa que a personagem deveria ter.
O filme endossa a versão de que o jornalista José Soares Maciel Filho (Fernando Eiras), redator da maioria dos discursos de Getúlio, foi responsável pela versão final da carta testamento. Ele teria recebido um rascunho de Vargas, arrumado o texto e o datilografado. A versão encontrada com o cadáver traz a assinatura do presidente. É importante ressaltar que o filme não omite que suicídio era algo que Vargas tinha no horizonte o tempo inteiro, isso desde a Revolução de 1930. Fracasso, prisão, dano ao país, tudo seria motivo para retirar a própria vida. Vargas no filme teme que logo o levem para o Galeão, onde a Força Aérea fazia correr um inquérito paralelo, prendendo, indiciando e mesmo invadindo o palácio de governo em busca de provas. Vargas parece cansado demais para resistir.
No filme, dois filhos de Vargas, o deputado federal Lutero (Marcelo Médici) e Alzira, aparecem o tempo inteiro, um terceiro, Manoel, é citado por estar metido em negociatas com Fortunato e outras personagens. É estranho ver Marcelo Médici fazendo um papel sério e ele está bem no filme, mas o destaque é Drica Morais, a segunda personagem mais importante de Getúlio. Deveria ser Lacerda, mas não é. Já que vou falar de Alzira Vargas, já digo que não se cumpre a Bechdel Rule no filme.
Há somente três personagens femininas em Getúlio, Alzira, Clarice Abujamra como Darcy Vargas e a viúva sem nome do Major Vaz que aparece de relance. Darcy e a filha conversam, mas é sempre sobre Getúlio. O filme mostra que a primeira-dama e o presidente, que sempre lhe fora infiel, mal se falam ou se relacionam na intimidade. Sua relação é protocolar, ainda que a esposa se preocupe com ele. Já Alzira, ela é o filho mais capaz de Getúlio, e a biografia deles está aí para quem quiser confirmar, e, outra, a sorte foi o pai reconhecer isso. Alzira foi-lhe útil nas pequenas e nas grandes coisas. A rigor, a função de esposa – controlando o que o pai veste, cuidando de seu bem estar – é dela, não de Darcy Vargas.
Chefe do gabinete civil do pai, é a única mulher entre homens. Competente, falando de igual para igual com o pai, a quem trata com carinho, humor e até dureza, chamando-o de “patrão” em mais de um momento, e mesmo com os oficiais generais. Ao que parece, Alzira Vargas era assim, mas só pode ocupar este espaço de poder, porque era filha do presidente. Capaz, ou não, de ocupar o posto de chefe de gabinete, fosse uma mulher comum, nunca teria, naquele contexto chegado tão longe. Daí, a pergunta de sempre, quantas mulheres capazes ficaram e ficam pelo caminho simplesmente por serem mulheres? Por isso tudo que escrevi, digo que a representação das mulheres em Getúlio é interessante, rica e positiva, ainda que limitada a duas personagens com nome.
Da família Vargas, temos, também, Benjamim (Fernando Luís), apresentado no filme como o principal mandante do atentado e que, mesmo denunciado por Gregório Fortunato, escapa no final, ainda que, no filme, o próprio Vargas o acuse de corresponsável por seus maiores problemas. Uma das palavras que poderiam ser atreladas ao Getúlio do filme é omisso e ele sabe disso. Coisas se fizeram dentro do palácio sem seu conhecimento e ele, como presidente, deveria saber de tudo. Esta culpa, o filme atribui à Vargas, ainda que a imagem que passe dele seja positiva.
De resto, apesar do uso das imagens de época – velório, funerais, manchetes de jornal, protestos – pós suicídio de Vargas, faltou emoção no desenlace do filme. Acho que poderiam ter feito mais. Depois das imagens, ainda há a abundância de textos explicativos sobre o que veio depois. Fosse impactante o final do filme, poderiam reduzir as várias telas a somente duas, uma falando do recuo da oposição e outra com a fala de Tancredo que fecha o filme: “Se não fosse o suicídio de Vargas, 1954 já teria sido 1964. Você verifica: as lideranças de 64 são as mesmas lideranças de 54, com os mesmos objetivos. Para mim, este é o aspecto mais importante do suicídio de Vargas.”. É isso. Getúlio é um filme três estrelas e meia em uma escala de 5, com uma estrelinha inteira por conta de Drica Morais e sua Alzira forte, terna e competente.
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