A História de Genji de Miyako Maki. |
Estava remexendo no meu HD e acabei tropeçando em uma antiga coluna que escrevi para o Anime-Pro. Algumas pessoas devem lembrar que eu tive uma coluna por lá. O texto, ao que parece, é de 2003 ou 2004. Como sei? Há um marco temporal em um "P.S.", que não irei trazer para cá, que aponta que eu estava assistindo ao live action de Sailor Moon. Enfim, dei uma lida, corrigi algumas mínimas coisas e continuei achando que é um texto gostoso de se ler. Espero que vocês gostem, talvez seja a única coisa que eu possa postar neste domingo. :)
Passeando pela Era Heian: Pesquisas e Leituras
Asakiyumemishi, a História de Genji por Yamato Waki. |
Semana passada, por sugestão de um amigo, eu comecei a pesquisar sobre a produção de shoujo mangá de Leiji Matsumoto, mangá-ka de vastíssima obra e criador de Patrulha Estelar, anime que conquistou muit@s fãs no Brasil dos anos 80. A pesquisa não terminou e as informações não encheriam meia página, mesmo nos meus dias mais inspirados. Entretanto, pesquisando sobre ele, acabei por rastrear a produção de sua mulher, Miyako Maki, uma das pioneiras na criação de shoujos mangás, ainda nos anos 50. Mas não é nem de Miyako Maki nem de Matsumoto que vou falar hoje. O assunto é o que escrever, como escrever e para quem se escreve. Ah, e que ninguém pense que vou falar de correção gramatical, norma culta ou coisas do gênero. O papo vai ser outro, até porque não tenho nenhuma condição de “brincar” com essas coisas.
Quando estava tentando encontrar imagens de algum mangá de Miyako Maki, descobri que uma das suas obras mais premiadas foi exatamente um mangá, de 1989, baseado na História de Genji (Genji Monogatari), um clássico da literatura japonesa e mundial. Esse livro conta a vida de Genji, o príncipe brilhante, filho de uma concubina do imperador, suas aventuras e amores. A autora da obra é Murasaki Shibiku, filha de um nobre de riqueza mediana, mas letrado, e que deu a filha a melhor educação que podia. A autora, depois de viúva, conseguiu, graças a fama de obtida por sua obra, o lugar de dama de companhia da Imperatriz Ako.
De algum manuscrito da História de Genji. |
A História de Genji já recebeu muita atenção em vários mangás, e certamente poderíamos achar várias autoras que já deram a sua versão da famosa história criada por Lady Murasaki durante o período Heian (794-1185) que é a minha época favorita dentro da História Japonesa. Mas não ouvi falar de Murasaki e sua História de Genji via anime, mangá ou Internet, meu primeiro contato veio através de um livro chamado Uma História da Leitura do argentino Alberto Manguel. Nesse livro bem interessante, existe um capítulo intitulado “Leitura Intramuros” que fala de vários tipos de limitações impostas aos leitores e leitoras, e de como, as mulheres, um grupo muitas vezes segregado, vai conseguir driblar as restrições. É exatamente nesse ponto que o autor se concentra no Japão e nas mulheres da corte imperial japonesa no Período Heian.
Durante o a Era Heian a produção cultural vai ser intensa, mas as mulheres estavam – aparentemente – excluídas de várias esferas de atuação e do acesso à alguns saberes. Uma das exclusões era o aprendizado do Kanji, a escrita japonesa derivada diretamente dos ideogramas chineses. (Mas claro que havia exceções, ou a regra é falsa, já que Lady Murasaki aprendeu a escrever em kanji.) Também na mesma época, começa a ser criada uma escrita cursiva japonesa o kana que vai dar base ao hiragana e ao katakana. A esse tipo de escrita, menos nobre e menos “refinada” as mulheres bem nascidas tinham acesso, e a bela caligrafia era uma qualidade apreciada e que estas deveriam desenvolver.
De algum manuscrito da História de Genji. |
Esse acesso à escrita, ainda que uma forma de escrita desprivilegiada e chamada nessa época pejorativamente de “feminina”, permitiu que no Japão se desenvolvesse uma literatura feminina, e a releitura de Mangel, anos depois do meu primeiro contato com o texto, tornou impossível não fazer a ponte com o shoujo mangá.
No período Heian desenvolveu-se uma escrita tipicamente feminina e a História de Genji, considerada por muit@s como o primeiro romance moderno, é um excelente exemplo disso. Mas sobre o que mulheres como Murasaki escreviam? Sobre aquilo que viam no seu dia-a-dia e que podiam observar da vida dos homens, que volta e meia penetravam em seu mundo, das conversas que estes traziam de fora, e, principalmente, da sua própria vivência como mulheres bem nascidas. Tempo para escrever elas tinham, até porque, como tantas mulheres da aristocracia de outras épocas e lugares, elas eram obrigadas ao ócio.
A História de Genji de Miyako Maki. |
Fantástico é que exatamente essas mulheres criaram a principal literatura desse período da História do Japão. Interessante é que era uma literatura feita por mulheres e para mulheres; e apesar das possíveis críticas, qualquer imprecisão sobre a política e a forma de vida dos homens era secundária, pois, como diz Mangel, elas “exigiam da literatura não as imagens que interessavam aos seus equivalentes masculinos e com os quais eles se compraziam, mas um reflexo de um outro mundo (...)” e “destinava-se a ser lida por mulheres como a autora, mulheres que compartilhassem sua inteligência e perspicácia sutil em assuntos psicológicos”.
Esta última colocação de Mangel me fez reportar de novo ao universo do shoujo mangá. Muitos dos defeitos que algumas pessoas apontam nesse grande mar da produção feminina de mangás é a falta de “realidade”, de representações precisas do masculino. Efetivamente, talvez por uma tradição de escrita que vem de séculos ou mesmo da desinformação fruto do afastamento entre as esferas femininas e masculinas de atuação, as mulheres japonesas colocam em suas obras, muito mais intensamente, as preocupações do cotidiano, o relacionamento entre as pessoas e o aprofundamento psicológico das personagens. Competição, triunfo, isso pode estar presente, mas não com a mesma força que com que tais “valores” são cultivados dentro da cultura masculina. Por isso, acredito que as pegadas de Lady Murasaki ainda sejam revisitadas por muitas autoras de shoujo mangá até os dias de hoje.
Genji Monogatari Sennenki, anime de Osamu Dezaki, que deveria ter sido a versão anime do mangá de Waki Yamato. |
Murasaki não foi a única de sua época e posição a escrever ganhando notoriedade, temos também Sei Shonagon. Esta outra dama nobre compôs uma obra, intitulada “O Livro no Travesseiro”, ainda mais apegada às minúcias do cotidiano da corte do século XI. E ainda poderíamos citar outras mulheres, entretanto, a História de Genji tornou-se obra mais famosa da época e talvez uma das mais lidas da literatura japonesa. E são lidas por mulheres e homens. Quer sucesso maior para qualquer autora ou autor do que transcender seu público primordial de consumidores? Isso é fazer diferença, mas o mais interessante é quando isso acontece sem que seja algo planejado.
Mas o que Murasaki, Genji e pesquisas inacabadas tem a ver com a proposta da coluna? Bem, se você chegou até aqui e enfrentou essa falação toda (Espero que não tenha ficado chata, porque me deu muito prazer escrevê-la!), talvez consiga ver o objetivo de tudo... Se não pode, perdoe a incompetência da escritora. Entretanto, mais do que falar de shoujo mangá e de uma tradição japonesa de escrita feminina que foi solo fértil para seu desenvolvimento, eu estava pensando em fanfics (do inglês fan fiction) e outras formas de expressão feitas de fã para fãs. Loucura? Vamos ver se eu explico.
Genji Monogatari pelo Teatro Takarazuka. |
Eu nunca escrevi um fanfic na vida mas já li alguns que achei muito bons, outros nem tanto. Se apossar de personagens alheios pode parecer um crime para alguns, mas é uma das formas mais prazerosas e criativas de mostrar afeto e admiração. E para quem um fã que escreve sobre Sango e Miroku de InuYasha ou cria uma saga alternativa de Yu Yu Hakushô está escrevendo? Para pessoas como ele ou ela que também ficam imaginando como suas personagens favoritas reagiriam em determinadas situações, ou como seria se aquele casal que nunca deslanchou se acertasse. São essas coisinhas que a gente fica imaginando, às vezes, quando termina de assistir o filme, mas que só colocando no papel podem ser deliciadas por um público maior.
E nesse terreno, vale tudo, daí a proliferação de sites com ficção escritas pel@s fãs. Um dos sites brasileiros mais interessantes é o Ayanami-Souryou – Arquivo de Fanfics (Que mudou-se para o Facebook) que tem um acervo relativamente grande de fics escritas em português. Um dos internacionais mais interessantes é o FanFiction.net com centenas de fics divididos em várias seções. Outros tantos sites com fics poderiam ser encontrados em uma rápida pesquisa no Google, por exemplo. Mas por que e para que escrever?
Asakiyumemishi, a História de Genji por Yamato Waki. |
Apesar de nunca ter escrito um fanfic, como disse acima, já imaginei muitos crossovers entre personagens minhas e de filmes, livros, mangás que eu gostei de ler, mas talvez alguma trava tenha me impedido de colocar isso no papel. Talvez excesso de senso crítico ou mesmo falta de disciplina, talento e organização. De qualquer forma, uma das maiores alegrias que eu tive – se voltar a retomar as histórias, talvez volte a ter – é de escrever uma história que me dê prazer e perceber que ela pode oferecer o mesmo para outras pessoas. De certa forma, me sinto assim quando escrevo uma coluna com um texto que realmente gosto. Assim, quando leio um fanfic escrito por alguém (ou um fanzine) e deixo minhas impressões, acredito que o autor ou a autora sinta um prazer semelhante ao meu.
Outro ponto interessante é que escrever é sempre um exercício. Você desenvolve capacidade de exprimir idéias, domínio do idioma, recursos estilísticos que mesmo que você não decida seguir uma carreira “nas letras” serão válidos na sua luta cotidiana. Saber escrever com clareza e correção é sempre um trunfo. Fora isso, quem sabe se algo que começou por prazer não pode se tornar uma carreira futura?
Asakiyumemishi, a História de Genji por Yamato Waki. |
Quando Lady Murasaki ou outra das damas japonesas de sua época começaram a pôr no papel o seu dia-a-dia ou suas histórias não poderiam imaginar o impacto da sua obra nem quantas pessoas poderia inspirar. Elas simplesmente falavam do que viam, ouviam, sentiam, de suas angústias e medos, desilusões e esperanças, usando seus diários (Já percebeu o quanto são comuns os diários no universo shoujo?) ou através de personagens fictícias. Acho que nesse sentido, os principais conselhos a um escritor ou escritora de fics seriam: escreva sobre aquilo que gosta e conhece; e pense que seu público começa com você, nunca o traia, dialogue com ele, pois de seu sucesso e prazer depende d@s leitor@s.
Assim sendo, dê asas a sua imaginação. Crie o último capítulo que como você imaginava que deveria ser. Construa um universo só seu, ou povoe mundos que já existem. Só não deixe de escrever se lhe der vontade, de criar. Já vi algumas pessoas dizendo que fanfics e fanarts são coisa para gente sem criatividade que se aproveita do que já foi feito por outros; eu diria que é somente um começo, e mesmo que seja se torne um fim, é direito de cada um construir o seu caminho e vivê-lo da melhor maneira que puder.
A História de Genji de Miyako Maki. |
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Notas:
*** Graças à pesquisa que iniciei e que me conduziu à História de Genji e Lady Murasaki, descobri coisas muito legais, inclusive a página do Museu de Vestimentas Japonesas que tem versão em inglês e japonês. Com muitas imagens e fotos de bonecas vestidas em trajes de várias épocas, é uma boa fonte de referência para desenhistas ou curiosos sobre o que japoneses e japonesas poderiam vestir em outros períodos de sua história. Existe inclusive uma seção dedicada à História de Genji e Lady Murasaki. Vale a visita.
*** Outra página interessante, para quem se interessou por ler fragmentos dos escritos de algumas damas japonesas do Período Heian é esta. Nesta outra página, existem imagens de ilustrações feitas para uma das edições de Genji Monogatari com alguns resumos. Infelizmente, todos os textos estão em inglês.
*** Ano passado eu encontrei esse site que tem um breve histórico sobre o desenvolvimento da escrita japonesa e passei para minhas turmas quando estava dando aula de Japão. É simples, básico, mas interessante.
*** Para quem se interessar pelo livro que usei na coluna, a referência é essa: MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. São Paulo: Cia das Letras, 1997. É uma leitura bem agradável, e não é um livro de História nem algo pesado, é somente uma leitura bem prazeirosa. (Se quiser comprar e ajudar o Shoujo Café, use o link da Livraria Cultura, por favor!)
*** O Período Heian equivale a uma pequena fatia do período de tempo que foi a Idade Média Européia e muitos poderiam dizer que enquanto as mulheres no Japão eram alfabetizadas, mesmo que com limitações, na Europa viviam “nas Trevas”. Nada mais equivocado. Eu diria, a única e forte diferença, é que, na Europa, as mulheres alfabetizadas – e talvez estas fossem mais numerosas do que os homens – não tinham uma escrita feminina, mas tinham que se enveredar pelos códigos e estruturas criadas por homens. Algumas foram muito bem sucedidas, como Hildegard de Bingen, Heloísa ou Marie de France, só que não se criou um gênero de literatura tido como feminino com suas obras.
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