segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Comentando o livro As Primeiras-Damas de Roma – As Mulheres por Trás dos Césares

Retrato de uma família feliz: Saptímio Severo, Júlia Domna,
Caracala e Geta, literalmente apagado pelo irmão..
.
Um dos meus passeios prediletos é à livrarias e sebos.  Entro, folheio, leio páginas, orelhas, olho imagens e me controlo para não sair comprando livros que não lerei, ou não lerei tão cedo, ou que não precisam morar na minha casa.  Enfim, quando folheei o livro As Primeiras-Damas de Roma – As Mulheres por Trás dos Césares (The First Ladies of Rome), de Annelise Freisenbruch, tive a impressão de que se tratava de um produto de qualidade duvidosa.  Só que, não sei por qual motivo, estava lendo uns verbetes da Wikipedia, especialmente sobre as mulheres sírias da dinastia dos severos, e comecei a achar que seria legal ler sobre as mulheres notáveis de Roma.  Gosto de biografias, o problema é que depois que você lê uma Antonia Fraser, e li vários livros dela, a gente começa a ser muito exigente com outros autores e autoras.  

O livro de Annelise Freisenbruch se propõe a rastrear a vida das mulheres mais importantes de Roma, na opinião da própria, isto é, as esposas, e quando aplicável, irmãs, filhas, tias e outras parentes dos imperadores romanos, de Otávio até o ocaso do Império do Ocidente.  Aproximadamente 5 séculos de História em 432 páginas, sendo que quase 100 delas são notas, bibliografia, quadros genealógicos e outros dados relevantes.  Uma das questões que ela pontua lá na introdução é a falta de fontes escritas pelas próprias mulheres.  Memórias, por exemplo, ainda que uma ou outra carta, e isso somente no século II e para adiante, possa ter sobrevivido.  A autora se propõe, também, e vai entender o motivo, a fazer uma analogia entre as primeiras-damas romanas e as primeiras-damas norte americanas.  

Capa da edição brasileira
De qualquer forma, o conjunto de fontes que a autora teve em mãos – e suspeito que ela só usou traduções para a língua inglesa – eram ou fragmentadas, ou de época posterior, raramente material contemporâneo.  Pior ainda, algumas eram escritas durante o governo dos “Bons Imperadores” (Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio, Marco Aurélio, Lúcio Vero e Cômodo ) com o intuito de criticar o passado e elogiar o presente, daí, a imagem distorcida propositalmente de algumas mulheres, pois esta dinastia exaltaria um modelo de virtude baseado na máxima "das mulheres é melhor que nada se fale".  Obviamente, muito se falou das imperatrizes desse período, mas apra louvá-las.  Freisenbruch aponta bem certos topoi, como a acusação de envenenadora, ou de incesto, mais que recorrentes. 

Apesar de apontar esses problemas, a autora não é capaz de se posicionar criticamente em relação às fontes em vários momentos, acreditando nelas.  Diz, por exemplo, que uma obra chamada História Augusta não é confiável, mas recorre a ela com insistência em vários momentos.  Usa muito a numismática, mas não usa os panegíricos como indício.  Ao confiar nas fontes, a autora não consegue transformar seu livro em obra memorável.  Por exemplo, ela não relativiza ou discute a história de Messalina, endossando as fontes.  

Lívia Drusila usando o severo nodus.
Ainda que não se remeta diretamente às discussões teóricas de gênero, a autora tenta mostrar em sua análise que algumas questões relevantes na Antiga Roma continuam pautando a vida das mulheres de homens públicos ainda hoje.   Sua conduta moral, o que vestem ou deixam de vestir, seu grau de envolvimento com os negócios de seus maridos, tudo é motivo de escrutínio e crítica.  O problema é que, ainda que eu considere certas comparações absurdas, a autora não é constante em fazê-las.  Ela propõe uma análise comparativa e faz muito pouco disso.  As tais comparações aparecem de forma episódica aqui e ali, sem a constância que o próprio título exige.

Ela começa muito bem analisando os silêncios sobre as mulheres dos césares, o quanto falava-se delas – quando se falava delas – para falar deles, elogiá-los, ou criticá-los, e de como livros, como Eu, Cláudio, a minissérie homônima da BBC, e material mais moderno como Roma da HBO, ajudaram a moldar a imagem de algumas dessas mulheres.  Na maioria dos casos, apresentando-as ou como vítimas, ou como predadoras.  Caso, por exemplo, de Lívia, esposa de Otávio, pintada sempre como uma mulher cruel e capaz de tudo para conseguir o que desejava, ou Agripina, a Maior, modelo de esposa e mãe.  
Agripina, a Maior, neta favorita de Otávio, 
condenada por Tibério a morrer de fome.
A autora é competente em mostrar como os padrões do final de República Romana, com uma quase total ausência de representações femininas nos espaços públicos, vai se transformando com o aparecimento de estátuas e, principalmente, de rostos femininos nas moedas.  Até que isso tudo, antes motivo de escândalo, se torne comum.  Ela discute, também, o quanto certos comportamentos vistos com suspeita ou passíveis de crítica, como Agripina, a Maior, seguindo para o campo de batalha com seu marido, Germânico, atendendo as tropas e repreendendo o comportamento dos soldados, acabam se tornando aceitáveis com esposas de imperadores romanos a partir do século III que receberam o título de “mater castrorum” ("mãe dos acampamentos [exércitos]").  

Outro caso de mudança extrema, é de como o título “Augusta” (venerável, revestida de majestade), antes incomum e concedido pós-morte – a primeira “Augusta” foi a esposa de Otávio, Lívia – tornou-se comum às esposas e outras parentas dos imperadores até chegar ao ponto de uma delas, Pulquéria, dar-se o título sem nenhuma resistência.   A autora também mostra o quanto o que era condenável para uma mulher no século I e II poderia ser visto como virtude na Roma Cristã.  Uma parenta ostentar virtudes viris poderia ser motivo de escárnio aos familiares masculinos para os contemporâneos dos primeiros césares e servir de elogio para os imperadores cristãos.

Agripina, a Menor coroando o filho, Nero.
Alguns capítulos são muito ricos e entre informações tiradas das mais diferentes fontes e especulações diversas, a autora consegue se sair bem.  Talvez seja gosto meu, mas o capítulo sobre Lívia, esposa de Otávio, os que se seguiram sobre a Dinastia Júlio-Claudiana, o desfecho sobre Gala Placídia e Pulquéria, são os melhores.  Há pontos baixos como omissões inexplicáveis, como detalhes sobre a segunda esposa de Nero, Popéia, ou o caso da suposta conspiração da irmã de Cômodo, Lucila, que foi imperatriz e deveria aparecer com destaque, porque há fontes sobre ela, e que culminou com sua execução, ou detalhes sobre a esposa e filha de Diocleciano, supostamente cristãs, ou, pior ainda, a omissão de Ulpia Severina, talvez a única mulher que reinou em Roma em seu próprio nome e com moedas para prová-lo!  

A autora tem o direito de selecionar as suas personagens, mas deve explicar motivos.  Se o verbete da Wikipedia tem fontes – e as cita para podermos ir atrás – para falar de fulana ou ciclana e a autora escreve na cara dura que não teve fontes ou que tal personagem não era relevante, o argumento não se sustenta.  Seria mais honesto dizer “gosto mais de X e Y, falarei delas”.  Pior ainda é dizer quando interessa que fontes como a Historia Augusta são péssimas e usá-las sem restrição e crítica quando convém.

Domícia Longina.
De resto, é um livro sangrento durante boa parte do tempo.  Quando pegamos o século I, salvo por raras e ardilosas exceções como Lívia, esposa de Otávio, é ver as personagens caindo uma a uma sem dó.  Pertencer à família imperial era negócio muito perigoso.  Muito mesmo!  Agripina, a Menor – sim, as nomenclaturas romanas para mulheres na República e início do Império são pobres e inspiram confusão – pode ter sido terrível e implacável ao conspirar para colocar seu filho, Nero, no trono, mas foi uma vencedora por ter sobrevivido em um ambiente tão hostil.  Ela pode até ter envenenado o marido, Cláudio, mas se eu vivesse naquela época e ouvisse – assim a fonte da autora diz – o velho balbuciar que se livraria de mim como se livrou da outra (Messalina), eu também tentaria abreviar os dias dele na terra... aliás, segundo a autora, Agripina, a Menor foi a única dessas mulheres que parece ter escrito memórias.  O livro, claro, desapareceu...

Algumas imperatrizes se saíram muito bem, caso da esposa de Domiciano, Domícia Longina, que o marido teve que aceitar de volta depois de uma acusação de adultério (provavelmente, falsa), e sobreviveu a ele (talvez participando de sua morte) e pode seguir sua vida, enquanto a sobrinha, a jovem Flávia Júlia, filha do Imperador Tito, morre ao ser obrigada a abortar um filho do tio (segundo as más línguas), ou Plótina, que teve grande influência sobre o sucessor de seu marido, Adriano.  
A culta Víbia Sabina, esposa de Adriano, 
que preferia a companhia dos rapazes.
Agora, Júlia Domna e as outras imperatrizes sírias do século III, pagaram com a vida pelo seu poder, ou pelos erros dos filhos.  Aliás, foi por causa delas que comprei este livro em primeiro lugar, lembram?  Pelo menos Júlia Domna, esposa de Septímio Severo, teve o direito de se suicidar depois da morte de Caracala, outras, foram assassinadas com os filhos imperadores em seus braços.  Aliás, algo que a autora desenha bem é como os imperadores e, consequentemente, suas consortes, cada vez mais são oriundos de fora de Roma, das províncias distantes, do Norte da África, da Espanha, da Síria.  Os (pre)conceitos contra esses romanos provincianos pesaram contra a dinastia dos severos, mas é preciso admitir que a crise do Século III já se impunha e que, bem, imperadores adolescentes como Eliogábalo foram um fiasco.  Outra omissão, a autora não fala das várias esposas do moço e de como o casamento com uma vestal - que deveria ser intocável - foi meio que a gota d'água para que a aristocracia tradicional romana se livrasse dele.

Falando em desaparecimentos, a autora ajuda a disseminar a falácia de que os cristãos destruíram fontes, quando, simplesmente, na confusão do desmonte do império romano do ocidente, muito se perdeu.  Ou, como muito bem discutiu Bettany Hughes, em seu livro sobre Helena de Tróia, simplesmente cada época elege o que é mais importante ou o que deve ser preservado, a censura a determinados assuntos é somente um aspecto, não a determinante maior, com o agravante de que, se há escassez de recursos, o canto II da Ilíada, por exemplo, pode precisar ser raspado do pergaminho para que uma réplica de um texto de Agostinho possa ocupá-lo.  Já os conselhos morais de um autor romano obscuro em sua época podem ser preservados para o ensino do latim, ou porque foram considerados úteis para a educação de monges ou líderes políticos medievais.  Nem sempre é intencional, quase nunca é por maldade, simplesmente aconteceu e romanos e gregos não eram muito mais cuidadosos com o material vindo de outras civilizações.

Retrato de Gala Placídia: irmã de imperador,  sequestrada pelos godos, 
esposa de um bárbaro, mais tarde, imperatriz romana.
Por fim, antes que eu me alongue em demasia, entre tantas coisas que acabei lendo por causa do livro, sim, porque um livro puxa artigo, que puxa outro livro, que puxa... minha surpresa  maior foi para Pulquéria (398/399-453), filha do primeiro imperador do Oriente, Arcádio, e que divide o último capítulo do livro com a famosa Gala Placídia (388/393- 450), sua tia.  Surpresa, porque dei aula de História do Cristianismo por anos e não me recordo de menção a ela ou seu papel fundamental para a definição da veneração da Virgem Maria nos Concílios de Éfeso I (431) e Calcedônia (451).  Ela ajudou a definir um dogma basilar das Igrejas Católicas Ocidental e Oriental, só isso.

Eudóxia, mãe de Pulquéria, eu conhecia por causa dos confrontos com João Crisóstomo, um do Padres da Igreja, mas a filha, que mandou e desmandou no Império do Oriente, que se declarou “augusta”, que fez voto de virgindade aos 15 anos rompendo com o dever das parentas de imperadores de casar para firmar alianças, que recebia comunhão junto com o clero e o imperador, que presidiu dois concílios, que terminou, já madura, ela mesma coroando e casando com o sucessor do irmão, porque, bem, era a última restante da família imperial, etc. Dessa mulher, não me lembro.  Minha memória é ruim, ou ela é omitida nos livros de História da Igreja que utilizei e li, porque, bem, mulher ajudando a definir dogma cristão nunca existiu e se existiu a gente apaga?  É isso.  Estou passada até agora e vou rever, assim que possível, a minha bibliografia para ver se é minha memória mesmo.  Só que eu duvido.

Pulquéria retratada em uma moeda.
Para fechar, preciso dizer o quanto a edição brasileira do livro é ruim.  Afirmo isso categoricamente, porque a edição original em inglês recebe elogios em todos os sites internacionais de referência e não acredito que certos erros crassos sejam obra da autora.  Você está lendo sobre uma personagem e, de repente, ela muda de nome.  Livilla vira a avó Lívia.  Pode ser digitação? Pode, mas Teodósio I virar Constantino?  Há parágrafos difíceis de compreender, porque carecem de coerência.  Li várias vezes e, ainda assim, só entendi o geral por conhecer minimamente o assunto.  Fora erros de data, confusões com títulos e parentescos.  Faltou revisão técnica.  Pior ainda, há até aquelas clássicas deslizadas com falsos cognatos, em dado momento aparece que “fulano foi a primeira casualidade”.  Tradução porca de “CASUALTY” que nada mais seria do que “baixa” neste contexto.  A editora, no entanto, não é de fundo de quintal, é a Record.  E, depois, ainda vem gente dizer que nossos livros não são caros.  Por esse trabalho?  Ah, tá...

As ilustrações, talvez, sejam melhores e mais abundantes na edição original.  É chato a autora descrever estátuas com detalhes e haver tão pouca referência visual.  Fora que a edição brasileira ainda tem uma imagem com nome errado, enfim, queria saber se é mais um problema daqui, ou se veio do original.  É interessante o cuidado que a autora tem - ainda que possa parecer forçado em alguns momentos - em associar as mudanças na indumentária e no arranjo dos cabelos às transformações dos valores da sociedade e do próprio Estado Romano.  Do rígido nodus, passando pelos elaborados penteados da época flaviana, até chegar no peso das jóias e adereços do final do Império.

Típico penteado da Dinastia Flaviana.
Resumindo, o livro é interessante, menos que que poderia ser, mas ainda assim vale a leitura.  Gosto de biografias, mas esperava mais desta aqui.  Talvez, lesse com prazer uma biografia de Pulquéria ou Gala Placídia ou... mas não dessa autora.  Agora, o que recomendo é que, se você lê inglês, pegue o original.  Isso evitará os problemas da versão brasileira.  É isso.

1 pessoas comentaram:

Adoro estes seus post sobre história! Alias adoro o blog!

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