Na verdade, não escrevi nenhum, nada sobre o Dia Internacional das Mulheres e já é dia 9... Não que não houvesse o que escrever, a legislação que tipifica o Feminicídio foi um grande avanço em meio a tantos retrocessos e crises, mas faltou-me tempo e eu havia me comprometido a enviar um texto para outro site, o Lady's Comics. Se elas não publicarem por algum motivo, publico aqui. no entanto, graças a uma matéria do G1 - Com mensagens escritas em calcinhas, mulheres fazem campanha contra machismo e violência - escrevi um longo comentário no Facebook. Ele, com algumas correções e adesões, é o texto que vocês lerão a seguir:
Acho uma graça um sujeito perguntando nos comentários de uma notícia do G1 se valeu a pena a liberação feminina: ter dupla ou tripla jornada de trabalho, ajudar a sustentar a casa, às vezes sustentar sozinha os filhos... Já conhecem esse blá-blá-blá machistóide pseudo-preocupado com o bem estar das mulheres, não é? De que antes dos anos 1960, ou antes de Simone de Beauvoir, sempre depende do nível de conhecimento raso das criaturas, as mulheres não trabalhavam fora de casa, viviam cheirosas e felizes, cuidando de seus filhos e maridos. Se a fantasia sai da cabecinha de uma mulher que assiste Downton Abbey e se projeta nas classes superiores, ela ainda acrescenta "tomando chá com as amigas toda a tarde. Malditas feministas!".
Talvez o que o chapinha não saiba é que há criaturas do sexo feminino, como eu, que vieram de uma linhagem de mulheres trabalhadoras: antes escravas, depois, camponesas, operárias, empacotadoras em mercados, costureiras, etc. Mulheres da classe social das minhas ancestrais, mãe e avós, não se reuniam para tomar chá servido por criadas com impecáveis aventais brancos de seriado inglês ou novela da Globo e ficavam olhando de longe suas muitas crianças brincando com as babás. Elas poderiam ser aquelas criadas e babás.
Minhas bisavós e avós trabalharam em fábricas e no campo. Se não eram empregadas legalmente, iam para a lavoura familiar lado a lado com os homens, isso, claro, além de fazerem todo o trabalho doméstico. Ou estavam nas fábricas que, segundo minha avó materna, tinham creches, porque já nos anos 1930, 1940 e 1950, a depender do ramo, a maioria da mão-de-obra era feminina. Minha mãe ficou na creche do Moinho Inglês, uma fábrica do Rio, enquanto minha avó, já casada, trabalhava. A mãe do meu pai, que se casou na Igreja Católica com 13 ou 14 anos, foi largada com 4 filhos pequenos e os sustentou com seu trabalho em uma fábrica. E isso, claro, antes da década de 1960. Ainda que a participação das mulheres no mercado de trabalho formal tenha aumentado, isso não quer dizer que mulheres pobres fossem donas de casa desde que o mundo é mundo, muitas vezes, elas trabalhavam, mas não recebiam pagamento, ia para o "chefe" da casa, ou era apropriado como um dom, porque função de mulher é servir com amor.
Minha mãe, que se formou professora e exerceu a profissão por toda a vida, começou trabalhando como empacotadora em uma fábrica aos 14 anos. Antes disso, ajudava minha avó nas costuras e outros trabalhos que uma viúva com 5 filhos pequenos precisava pegar para se sustentar. Mamãe fez faculdade. Todos os filhos da minha avó, que só estudou até a antiga 4ª série, concluíram pelo menos o Ensino Médio. Tudo fruto do esforço de uma mulher trabalhadora, endurecida por uma série de privações, feminista em várias de suas atitudes, ainda que nunca se pronuncie como tal. Rótulos são bons, mas não são fundamentais, portanto, este papinho de "o que vocês ganharam, frente a todo o conforto do qual abriram mão, não cola". Minha vida foi fácil comparada com a de minhas antepassadas, mas dependeu delas e de tantas outras mulheres para que assim fosse.
Ontem, meu dia começou assistindo o Globo Comunidade DF. Aquela coisa de altos e baixos, programa sobre o Dia Internacional das Mulheres. "É bom trabalhar somente com homens, porque eles não tem TPM", disse a repórter tolinha escalada para apresentar a atração. "Temos aqui fulana, uma grande mulher, mãe e artista", porque, claro, se fosse um homem, o fato de ser pai viria na apresentação e antes da profissão... Os altos, claro, a Tânia Montoro, professora da UnB, e mulheres pioneiras falando das engenheiras e outras profissionais qualificadas que participaram da construção de Brasília. Mulheres que geralmente ficam invisibilizadas. Houve inclusive caminhoneiras. Parte nojenta, uma fulana antifeminista falando que a mulher - no singular sempre - errou ao deixar o lar e usurpar a autoridade do marido...
Não sei quem era ela, o programa não fez uma apresentação formal. O papo é o mesmo do sujeitinho lá do comentário, mas ganha peso por ser emitido por uma mulher de unhas, cabelos e maquiagem impecáveis, em uma casa espetacular. Olha, nada contra alguém desejar ser dona de casa, meu feminismo grita, mas eu acredito no direito de escolha, mesmo sob risco de se ficar com uma mão na frente e outra atrás (*porque na hora da partilha ou da pensão, a esposa, que abriu mão de sua profissão, e foi suporte fundamental para o sucesso do marido é somente uma sanguessuga que não quer trabalhar.*) ou em depressão profunda depois que os filhos crescerem. É escolha, certo? Agora, se vem embolado nesse papo reacionário, a pessoa afunda no descrédito, porque eu duvido que essa opção pelo lar, vendida para mulheres de outras classes, mulheres trabalhadoras, de classe média baixa, traga junto o ônus que elas teriam que assumir, e não falo de desejos profissionais, estou pensando no econômico mesmo. Vamos lá:
Assumir integralmente ou quase os trabalhos domésticos. Viver com dinheiro contado, tendo que negar coisas para si e seus filhos. A dependência de um marido, que se for parceiro, OK, mas se for um sujeito mediano irá reclamar do dinheiro curto, dos seus gastos, de ter que lavar um copo. Ser dona de casa, e eu sou isso, também, é ter um trabalho infinito sempre a se fazer. Agora, deve ser outra coisa quando se pode contar com a mão-de-obra barata (*às vezes, sem direitos trabalhistas, com salário baixíssimo...*) de outras mulheres... Aí vale ser antifeminista. O fato é que ainda não vi mulher pobre, ou mesmo classe média baixa, com este discurso de quero ficar "no lar". Elas sabem onde o sapato aperta, sabem o preço do mercado, e sabem o quanto seu salário pode fazer diferença. Mas minhas antepassadas já sabiam disso...
É fácil vir com um discurso patriarcal reacionário carregado de falsidades quando não se tem que colocar a mão na massa, isto é, na vassoura, no vaso sanitário sujo, na fralda cagada da criança e, às vezes, ainda fazer dinheiro com isso, porque alguém tem que se sacrifica r para ensinar as mulheres o que é ser uma verdadeira mulher... Sei... sei... Queria muito ver uma mulher pobre ou de classe média baixa defendendo as mesmas coisas e dizendo "passamos fome, mas eu me sinto realizada como mulher por ser dona de casa e submissa ao meu marido" ou "não temos dinheiro para comprar nem um presentinho de Natal para nossas cinco crianças, mas sei que estou certa por não tentar ajudar meu marido, o chefe da casa, nem com algum artesanato para complementar a renda. Ele iria se sentir diminuído e meu dever é fazer com que ele se sinta o senhor do castelo.". Aí, sim! Mas não vai rolar nunca, o discurso backlash da (*falsa*) volta para casa tem que ter garotas propagandas magras, bem vestidas, com unhas e cabelos impecáveis, aparência jovem e brancas. Já viram algo diferente disso?
Enfim, nada de rosas no 8 de março, devemos, sim, lembrar de quem possibilitou que estivéssemos aqui. Ficarei feliz se puder entregar para a minha menina um mundo melhor para que ela possa ser mulher do que aquele que minhas antepassadas receberam.
Para fechar, recomendo alguns links, alguns textos são muito, muito melhores que este meu: International Women’s Day: the 10 best feminists (*com uma feminista surpresa bônus...*), As 129 mulheres que morreram no 8 de março para que ganhássemos rosas (*ganhei bombom na igreja... melhor que rosas*); O dia (a dia) da mulher; “We Are Entitled To Wear Cowboy Boots To Our Own Revolution” - 10 women on why feminism still matters (*com espetaculares caricaturas*); Leonard Nimoy fought for pay equity for Nichelle Nichols; a bela propaganda da Nextel; Retratos de mães e filhas pelo mundo (*algumas histórias bem tristes...*); e É preciso “coragem” para chamar uma mulher de “vaca” da janela do prédio (*sim, porque Dilma não é incompetente, mentirosa, ou mesmo, corrupta, é puta, vadia e vaca... isso no Dia Internacional das mulheres*).
2 pessoas comentaram:
Você pode achar que o seu post não é tão bom quanto os outros, mas eu sempre gosto de lê-los. Foi através deles que, aos 20 e poucos anos, fui buscar saber mais sobre o feminismo. Ainda não me considero uma feminista - acho que ainda falta muito a estudar e a saber sobre - mas estou no caminho.
Muito me irrita o senso comum, as opiniões vazias sobre o feminismo e as mulheres vinculadas na grande mídia. No programa "Saia Justa", os dois últimos episódios foram um festival de besteiras: Eduardo Moscovis dizendo que mulheres são histéricas, com tom de voz estridente e falam todas juntas; Maria Ribeiro dizendo que o feminismo era agressivo e "anti-homem". Duro de engolir!
Achei esse um dos seus melhores textos. Gostei demais mesmo.
Muito importante falar as verdades sobre esse falso discurso de mulher-doméstica, bem fácil manter essa fachada quando pra sustentar isso a "princesa" contrata 3 servas para trabalhar na casa dela... Porque afinal o trabalho fora de casa não é adequado para uma mulher. Mas a empregada dela pode trabalhar. Vai entender... é um ato tão escancarado de desumanizar o outro que chega a ser revoltante.
Muito bonito também o relato da sua família. Outra pauta evidente e cotidiana que as pessoas teimam ignorar. O papel de sinhá nunca foi de acesso para todas, por mais repressivo que ele pudesse ser.
Enfim, a luta continua....
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