Conhecia algo da biografia de Olympe de Gouges (1748-1794) fazia muito tempo, primeiro como a feminista que morreu na guilhotina por sua “declaração dos direitos da mulher e da cidadã, isso, claro, antes de ler a discussão sobre personagem feita por Joan Scott, assim, não poderia deixar de me interessar pelo livro de Catel Muller (a desenhista) e José-Louis Bocquet (o roteirista) lançado no Brasil. O volume está sendo vendido como a quadrinização da vida de uma (proto) feminista histórica, informação esta que consta inclusive no subtítulo em português. Teria que comprá-lo obrigatoriamente e a Livraria Saraiva estava (*e está ainda*) com um preço muito bom, sim, pesa contra o material o preço, que é bem salgado, 88 reais. Obviamente, a seu favor temos, além da qualidade do conteúdo, o número de páginas, mais de 400.
Há quem queira lançar sobre Olympe de Gouges – dramaturga, ativista política, jornalista – a imagem de mártir dos direitos das mulheres, no entanto, ela foi perseguida e morta por suas idéias políticas como um todo e por afrontar gente muito poderosa de sua época, como Robespierre e Marat. Esta faceta da autora ganha muito peso dentro da obra de Muller e Bocquet, de forma que não há o interesse de impor esta leitura, a da mulher perseguida por ser feminista, ao mesmo tempo grandiosa e enviesada.
Retrato de Olympe de Gouges |
Gouges viveu intensamente, sem temer o escândalo, ou os obstáculos pelo fato de ser mulher. Nascida Marie Gouze, era filha bastarda de um nobre com uma burguesa casada. Seu pai, Jean-Jacques Lefranc de Pompignan, ganhou notoriedade em seu século menos por seus dotes literários e mais pelo embate com Voltaire, que redundou em sua humilhação pública. Sua mãe, Anne-Olympe, mesmo que apresentada como apaixonada por Pompignan, é, ainda muito jovem, empurrada para um casamento arranjado com um açougueiro e, posteriormente, já viúva, troca o amante nobre e rico, mas, ainda assim, amante, por um sólido casamento com um burguês bem colocado na vida. Isso afasta Gouges do pai, mas ela dele não se esquece.
Afastada do pai pelo segundo casamento da mãe. |
A partir daí, torna-se uma mulher livre, sem marido, ainda que vivendo em uma espécie de concubinato com Jacques Biètrix de Rozières, seu companheiro de quase uma vida. Juntos, mudam-se para Paris, onde já reside a irmã mais velha de Gouges. Lá, ela decide mudar de nome, passando a se chamar publicamente Olympe de Gouges. Ela e Biètrix moram separados, mas encontram-se regularmente, ela lhe presta serviços que seriam de uma esposa, porém não aceita estabelecer laços conjugais regulares. Gouges, no entanto, recebe uma pensão do amante, que presta serviços para o Governo, e vive com tranquilidade e até certo luxo. Oympe, no entanto, avisa Biètrix que não deseja ser somente teúda e manteúda, mas que almeja uma carreira literária. É isso que ela passa a perseguir.
A jovem Olympe, viúva e feliz.. |
A obra de Muller e Bocquet toma a liberdade necessária para compor uma história interessante. Tavez, não conheço a vida de Olympe o suficiente, não tenha havido um estupro conjugal, mas a autora falou da repugnância sentida pelo marido em sua semi-biografia. Olympe e Biètrix parecem ter se conhecido somente em Paris, mas os autores a colocam já em relação com ele antes de ir para a capital, ainda em Montauban. Gouges pode não ter conhecido todas as personagens que o livro coloca em seu caminho, ou ter sido amante de homens como o Duque de Órleans para ter algumas portas abertas, mas tal não é colocado em tom de crítica ou em contradição com o caráter da personagem.
Escravidão e direitos das mulheres são preocupações da autora. |
A obra é muito interessante ao costurar os acontecimentos turbulentos da Revolução Francesa (1789-1799), especialmente do Terror Jacobino (05/09/1793-28/07/1794), com a vida da protagonista. Há muito me livrei do ranço marxista que alguns de meus professores no colégio (*na faculdade mal estudei o assunto e a ótica foi outra*) lançaram nas aulas sobre a Revolução Francesa, demonizando quem se opunha aos jacobinos e transformando-os em santos, arautos de uma revolução socialista que foi abortada pelos reacionários. Tenho medo desses heróis cujos atos estão acima de qualquer crítica e que, em nome de ideais superiores, tem liberdade para usar de toda a sorte de violência.
Olympe mostra sua declaração de direitos à Princesa de Lamballe, pedindo que a dê de presente para Maria Antonieta. |
Ainda que possa ver com positividade alguns aspectos do governo jacobino – o fim da escravidão, o voto universal (masculino), o interesse pelo bem estar dos mais pobres – me parece inegável seu fanatismo e a sede de poder mascarada de interesse público. No entanto, foram eles, também, que tentaram expulsar as mulheres, participantes desde os primeiros momentos da Revolução, da luta política. Mandaram, por exemplo, fechar os clubes políticos femininos. E, se tenho uma crítica ao livro que estou resenhando, é que os autores não deram destaque a este fato. Está na cronologia da vida de Olympe no final do livro, é fato importante, pois o clube que ela presidia foi fechado, mas não está na obra. Como excluir algo assim? Esta tentativa de mandar as mulheres para casa e a resistência de uma Olympe de Gouges certamente pesou na sua execução, agora, é fato que ela não morreu por causa disso, ou disso somente, afinal, o texto que a tornou mais célebre é de 1791 e sua prisão e execução somente aconteceram em 1793.
Os autores |
Voltando aos vultos da Revolução Francesa, registro que não tenho nenhuma admiração e apreço por esses e outros machos revolucionários, aliás, nada mais justo do que terem se afogado em seu próprio sangue dada a quantidade de sangue inocente que derramaram. Vale para outras revoluções e contrarrevoluções, também. Afinal, o Terror Jacobino foi substituído pelo Terror Branco Girondino. Aliás, Olympe de Gouges era contra a pena de morte, ou, pelo menos, argumentava que não poderia ser usada de forma tão ostensiva. Interessante pontuar, também, que uma das bandeiras de Gouges foi acatada pelos revolucionários, o divórcio, pois, como bem pontuou um dos amigos da heroína, era algo do interesse dos homens...
Olympe de Gouges, mulher de letras, na pena de Catel Muller. |
P.S.: Estou com outras duas resenhas de 2014 pendentes, um filme, Interestelar, e outra BD, Crônicas de Jerusalém, de Guy Delisle. Espero colocar as coisas em dia o mais breve possível. Quando montar o post com as resenhas de 2014, poucas, eu sei, as três ficarão lá.
1 pessoas comentaram:
Adorei a resenha. Tinha curiosidade para saber se era realmente bom. Fiquei feliz, vou colocar na minha lista. E continua em promoção na saraiva. :D
Postar um comentário