Com a correria (*e a falta de internet de qualidade*) não pude escrever um post sobre o atentado contra a redação da revista francesa Charlie Hebdo ocorrido no dia 7, em Paris. Foram doze mortos, dentre eles, renomados cartunistas. Antes de tudo, é preciso dizer o quão lamentável foi o ocorrido. Nada justifica o uso de violência para calar a imprensa e, apesar do impacto da ação contra o Charlie, impacto este que não pode ainda ser medido, surgem mil explicações e discursos que chegam até a culpabilizar as vítimas, afinal, elas provocaram. Fazer humor – não achincalhar minorias como certos humoristas brasileiros fazem –, mas mexer com as grandes instituições e seus símbolos, demanda muita coragem nos dias de hoje.
Apesar das charges de apoio aos mortos na Charlie, algumas delas lindas, por sinal, elas são expressão do desdobramento emocional, não sabemos o que virá depois. Os cartunistas irão se deixar intimidar? Afinal, este massacre pode ser somente o primeiro, não é mesmo? A imprensa como um todo vai começar a pensar duas vezes antes de criticar os fundamentalistas? E olha que dezenas de jornalistas foram mortos ano passado por fundamentalistas – não estou contabilizando os mortos pelo grande capital, por criminosos comuns, entre outros – mas a coisa foi diluída e sem o efeito espetacular do atentado à Charlie. A extrema-direita vai conseguir lucrar com o ocorrido? A comunidade muçulmana (*pelo menos, no Ocidente*) como um todo vai condenar os fundamentalismos, defender a liberdade de imprensa, de expressão, os direitos das mulheres, ou vai abraçar o discurso de que os jornalistas da Charlie são corresponsáveis pela tragédia?
Conhecia a revista, ou jornal, não sei bem como categorizar, desde o incidente da republicação das charges dinamarquesas satirizando o Profeta Maomé. Houve ameaças e a sede da revista sofreu um atentado anteriormente. Seu editor, Stéphane "Charb" Charbonnier, e outros chargistas foram ameaçados de morte. As ameaças se concretizaram no massacre ocorrido esta semana. A Charlie era uma revista de extrema-esquerda, daí, e com razão, eu diria, não se trata de um ataque à liberdade de expressão de forma descarnada, mas a um veículo que satirizava o capitalismo, os franceses que fugiram para não pagar imposto (*vide charge abaixo*), a extrema direita do país (*coloquei duas charges bem ilustrativa do tipo de ataque que eles faziam*), aos políticos que governam à França, à esquerda domesticada, à Igreja Católica (*que na França tende a flertar com a extrema direita*) e, claro, aos demais fundamentalistas religiosos, especialmente, os islâmicos.
O artigo de João Alexandre Peschanski para o blog da editora Boitempo traçou bem as origens da revista. O texto apontou todos os méritos e deméritos da Charie, sim, o humor da revista é pesado, resvalava muitas vezes em uma escatologia que não me agrada, flertava com os inúmeros preconceitos que afligem, especialmente, a comunidade árabe e/ou muçulmana francesa, era particularmente agressivo com a Igreja Católica. Olhando as inúmeras capas, eu separaria o que me agrada, do que apenas tolero, e do que considero realmente ofensivo, ainda que, não, criminoso.
Colocar-me desta forma não é clamar por censura, mas declarar o que sinto e penso. Não acho graça, por exemplo, em uma charge de Maomé pelado com a bunda para cima e uma estrelinha no ânus, nesse sentido, concordo com o Latuff. Não vejo em que isso colabore para uma reflexão, trata-se, simplesmente, do ataque a um símbolo, ou ícone religioso. Já a charge, lá mais abaixo, que destaca que Maomé seria morto pelo ISIS se retornasse à Terra, é genial. Já vi várias ilustrações do gênero falando de Jesus... Mas satirizar Jesus Cristo é mole, mexer com Maomé é muito, muito perigoso. Está aí o atentado para provar. O pessoal da Charlie defendia que o direito à blasfêmia, também, é sagrado. E, sim, ainda é, mas se dormitarmos, deixará de ser no Ocidente.
Dificilmente encontramos humor deste tipo no Brasil, aliás, é risível que certos humoristas brasileiros, conhecidos por ofenderem as ditas minorias (*gays, nordestinos, pobres, negros, mulheres*) se comparando ao pessoal do Charlie que debochava de Maomé, de Santíssima Trindade, do simpático Papa Francisco. Vamos combinar, colegas, que apesar de muita gente achar o máximo do horror os protestos do FEMEN (*e seus derivados*), é muito diferente ser afrontado com peitos de fora, ou plaquinhas dizendo que “fulano de tal não me representa” quando um humorista pratica mais um ato de racismo, e tomar um tiro na cabeça. Roubar o menino Jesus do presépio ou boicotar O Sexo e as Negas não é o mesmo que ser massacrado por terroristas. Pixar ou jogar lixo na frente da sede da Veja ou da Globo é diferente de invadir suas redações e disparar rajadas de AK47.
Uma das coisas mais complicadas da cobertura da imprensa brasileira é tentar transformar a Charlie em uma revista anti-islâmica. Ao longo do meu texto, vocês poderão ver inúmeras capas da revista atirando para todos os lados. As críticas ao Islã, ou melhor, aos fundamentalistas que se acham no direito de calar cartunistas, ou meninas que defendem seu direito à educação, vide o caso Malala, não é atacar os muçulmanos como um todo. Elas aumentaram, claro, conforme as ameaças à Charlie se tornaram mais ostensivas. Era a resposta debochada dos chargistas e não acredito que eles se achassem protegidos, simplesmente, sabiam o preço do silêncio e aonde ele pode nos conduzir a todos.
E sobrava para a esquerda, também, já que é comum se confundir a defesa das minorias – e os muçulmanos são uma delas em países como a França – e a incapacidade de discernir entre o que é direito e o que é subserviência aos fundamentalismos. Fora, claro, a ilusão de certos grupos de esquerda em acreditar que todos os que lutam contra o capitalismo, ou contra os Estados Unidos, ou contra os imperialismos, são nossos aliados. Por conta disso, por exemplo, são capazes de defender o direito à segregação entre homens e mulheres, ou que o véu integral é exercício de liberdade, ou que elementos da Sharia deveriam ser agregados ao direito corrente em certos países ocidentais, para agradar os colegas fundamentalistas anti-americanos. Cito questões de direitos das mulheres, porque é o meu foco de leitura e maior interesse, mas poderia citar outros. A charge de Charb dizendo que nem todos os barbudos são iguais é genial por alertar sobre isso.
Ninguém é obrigado a achar o humor do Charlie de bom gosto. Vejam, por exemplo, a charge com Michael Jackson “caveira” e, agora, finalmente branco. Ninguém é obrigado a comprar ou patrocinar um veículo de comunicação do qual discorda e isso, que fique claro, não iguala a Veja à Charlie. Agora, não se pode apoiar os fundamentalistas que querem poder determinar o que pode, ou não, ser satirizado, ou que confundem respeito a sua fé, algo ligado ao livre exercício da mesma e a igualdade de tratamento diante da lei em um país laico, com o direito de não ser criticado. A França, desde a Revolução, foi o modelo para todos os estados laicos no Ocidente e, normalmente, os políticos e legisladores tendem a se agarrar a esses princípios. Exceções, claro, para a extrema-direita católica e os fundamentalistas de todas as cores. Aliás, na França, todos os fundamentalistas – além da massa de manobra de fiéis moderados pero no mucho – se uniu contra a lei de casamento igualitário e adoção por homossexuais. A Charlie não os perdoou, claro.
Obviamente, os racismos existem, mas os direitos prevalecem na maioria dos casos. A integração dos imigrantes de países árabes-muçulmanos, normalmente ex-colônias francesas, não tem sido ideal, mas o crescimento dos fundamentalismos se alimenta de várias fontes. Posso considerar o Estado Francês e sua participação nas ações da OTAN e outras em países muçulmanos, mas esta não é a única razão. Quando os nomes dos fundamentalistas, ou dos aderentes ao ISIS, por exemplo, vêm à tona, encontramos não somente o filho/neto de imigrantes do subúrbio, o terrorista ideal na leitura tradicional, mas, também, o convertido branco de classe média alta, a “princesinha” filha de papai e mamãe seduzida por idéias radicais, há uma diversidade de adesões.
Enfim, espero que peguem os caras vivos. Eles aparentemente estão cercados em uma cidadezinha do Norte da França. Os agentes franceses parecem mais competentes que os americanos e oferecer culpados, ou seus cadáveres, não é o único interesse, há que se desmontar as redes. Para isso, claro, a ajuda da comunidade muçulmana seria muito importante, pois eles sabem quem são os radicais, quais clérigos são cúmplices e/ou estimuladores do terror. No entanto, e isso eu já escrevi antes e lamento, os moderados de qualquer fé – e falo como cristã protestante – parecem sempre um tanto culpados quando o assunto é os seus radicais. Parece que eles, os capazes de adotarem regras estritas ou mesmo matar, são os verdadeiros crentes. Essa trava psicológica, que tem raízes históricas, mas daria um outro texto, atrapalha muito a contenção dos monstros.
Fui educada para não criticar os “irmãos” na frente de não-crentes, porque isso é fazer propaganda contra a nossa fé. Não, não é, trata-se de uma defesa do que é justo, racional, e humano, muitas vezes. É preciso tolerância zero com os intolerantes, se cedemos uma unha, eles vão querer um braço, ou mais. Isso se aplica à educação religiosa em escolas públicas, à tolerância com o véu integral, à compreensão de que o sujeito pode pedir o divórcio se a noiva não for virgem, à recusa de ser atendido por um médico/a de outro sexo ou um GBLT, a recusa de enviar as crianças à escola ou vaciná-las, etc. A lista é longa e a loucura não é apanágio dos muçulmanos, ainda que, neste caso, caiba condenar o fundamentalismo islâmico e compreender como ele arregimenta pessoas e opera dentro de países ocidentais.
Não podem existir intocáveis. Minha solidariedade para os mortos na Charlie Hebdo, um deles, um policial muçulmano, e seus familiares. Espero que o incidente gere mobilização contra o terror e, não, uma ação contra as comunidades muçulmanas, avanço de grupos neonazistas e facistas, de um nacionalismo conservador. Isso, por si só, gerará mais terroristas e, claro, os fundamentalistas e seus patrocinadores (*preciso dar nome aos países?*) irão se sentir muito satisfeitos.
2 pessoas comentaram:
Um comentário sobre as charges que li na Al Jazeera é que parece existir uma tradição bem francesa de charges blasfemas que começou na época da revolução. Criticar o Rei era criticar a divindade, daí nasceu essa categoria de "humor" para destruir a noção de divindade.
Agora sobre meus pensamentos sobre tudo isso... o extremismo cresceu à proporção de bombas ocidentais que são jogadas no Oriente Médio e mundo muçulmano/islâmico em geral ao que parece. Já começaram a se levantar aqueles que argumentam "dá para negociar com 'essa gente'?", que vão aplaudir diante da TV com novas cenas de cidades explodindo na escuridão da noite.
Achei meio ridículo, em parte absurdo absurdo e certamente revoltante a "notícia" de que o episódio teria "unido" o Hollande e o Sarkozy. Ver o Sarkozy falar de medidas para combater o terrorismo é de tirar qualquer um do sério, ele é outro grande criminoso. Deveria ser julgado pelos bombardeios que autorizou na Líbia só para a França poder se mostrar. O Oriente Médio sempre foi uma região de povos instáveis e a intervenção de países ocidentais só piora isso cada vez mais. Matam inocentes e criam radicais que não tem nada a perder. No entanto eu ainda queria saber como essa interpretação radical do islamismo surgiu, é algo difícil de entender, é como se os católicos só lessem e praticassem o Levíticos.
Esse combate ao terrorismo é parecido com o combate ao crime por aqui. As medidas de décadas não estão dando certo, é preciso de mudanças e novas abordagens, que realmente ajudem e não contribuam para o problema. Só que querem que o mundo árabe se torne o mundo ocidental... Nada vai dar certo enquanto negarem alguma cultura deles.
Enfim, nada de novo no front.
Estaremos diante de uma possível nova "Noite de São Bartolomeu"?
A França também tem certa tradição em extermínios.
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