Preciso fazer um post sobre o Dia da Consciência Negra, que é comemorado hoje, no dia 20 de novembro. Acredito que não escrevi nada nos dois últimos anos (*mais até*), mas não deixarei em branco hoje. Primeiramente, acredito que o termo correto não seria comemorar, o Dia da Consciência Negra é mais uma daquelas datas estabelecidas para nos lembrar de que é negado a um determinado tipo de cidadão – negros, mulheres, LGBTs, indígenas, etc. – os plenos direitos que esta própria cidadania deveria trazer no pacote. Ter uma data como esta não é privilégio, é motivo de lamento. Espero que você, leitor ou leitora, tenha compreendido o ponto. Falar em Dia da Consciência Humana, como muitos gostam de levantar para desqualificar o 20 de novembro, não vai nos tornar mais iguais, vai servir, sim, de cortina de fumaça para tentar encobrir desigualdades e violências. Denunciá-las, encarar nosso racismo estrutural de frente pode, sim, nos ajudar a superá-lo.
Cabe, também, estabelecer que 20 de novembro marca a execução do quilombola Zumbi, em 1695. Recentemente, virou moda tentar desqualificar a luta dos negros e negras de Palmares com frases do tipo “eles também tinham escravos”, tentando colocar no mesmo patamar o sistema escravista colonial, pré-capitalista, que visava o lucro dos senhores brancos (*ou que assim eram vistos e/ou tratados*) e da metrópole, e as práticas ancestrais trazidas da África. Cada coisa em seu lugar. E não pense que sou a favor da escravidão, mas, como historiadora, sei bem que a escravidão tem vários matizes e escolho, sim, qualificar que a sistêmica que tivemos no Brasil é muito pior do que a que porventura tenha existido em Palmares. Lutar contra um sistema, recusar, como foi o caso de Zumbi, propostas indecorosas como o confisco da liberdade de alguns habitantes de Palmares, resistir a várias investidas dos senhores contra o quilombo, demandou coragem, força, mobilização. Tentar diminuir isso é fruto ou da desinformação, ou da má fé.
Este post foi motivado por três questões, a primeira, a campanha da Anistia Internacional chamada de Jovem Negro Vivo. Segundo o site da organização, “Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.”. Eu poderia focar na discussão de que a violência, por razões culturais, está muito mais associada ao masculino e que, portanto, isso ajuda a explicar o motivo pelo qual a maioria das vítimas de mortes violentas – e nem contabilizaram o trânsito – são homens, e que por serem jovens, mais vulneráveis ao meio e suas próprias pulsões, mas deixo isso para outro post. Concentremo-nos somente no dado alarmante de que 77% dos mortos são negros. Assista o vídeo abaixo, depois se pergunte se não se trata de um genocídio.
É sabido que há uma associação entre ser negro e ser um potencial criminoso. Volta e meia temos escândalos – e só é escândalo, porque há mobilização, denuncia – relacionados a diretrizes policiais para que homens negros sejam visados nas rondas. Só poderemos falar em igualdade se a possibilidade de um jovem branco ser parado pela polícia, e muitos policiais são negros que introjetaram tais idéias, for a mesma que um negro. O mesmo vale para ser seguido nas lojas, nos shoppings, ou parado em revista. Ainda assim, há quem venha culpar a vítima e estabelecer que só há racismo, porque os negros se vitimizam, como se o racismo – atribuir características depreciativas a um determinado fenótipo, isto é, características físicas externas – e, não a raça, fossem uma ficção.
O segundo motivador do post foi uma notícia da Tribuna do Ceará. Uma mulher, que se considera branca, teve seu carro apreendido pelo Detran. Considerando-se a parte agredida, ela escreveu uma carta para o órgão reclamando do tratamento recebido e expressando todo o seu racismo:
Agora vou me referir ao da cor da noite sem estrelas, o que estava dirigindo o carro do reboque: hoje tu vive como gente, convivendo com gente, por causa da maldita princesa Isabel. Senão, hoje, tu viveria no tronco, com teus antepassados, levando chicotada nos lombos. Tem inveja de mim porque sou branca, né? Se tu tivesse vivendo na época dos meus bisavós (que eram senhores portugueses, donos de escravos) e dos teus antepassados, hoje tu estaria lambendo o chão que eu piso. Morre de inveja, né, desgraçado, amaldiçoado: tu nunca será como eu. Nunca estará à minha altura.
Será que é necessário comentar? Alguns poderiam dizer que este pensamento seria exclusivo das elites econômicas brasileiras; duvido. O racismo está disseminado culturalmente em todas as classes, entre homens e mulheres, e mesmo entre pessoas que podem vir a ser vítimas de racismo. No entanto, é gritante que algumas pessoas considerem a cor de sua pele um privilégio, afinal, se analisarmos os dados da campanha da Anistia Internacional, é mesmo, não é? Infelizmente, em algumas escolas, especialmente particulares ou públicas de elite (*concursos muito difíceis, restritas a determinados segmentos*), existe a falsa impressão de que a sociedade brasileira é mais branca do que realmente é. Meninos e meninas que raramente vêem entre seus colegas de carteira ou até professores e outros profissionais qualificados, pessoas que não sejam socialmente brancas. Eles e elas só identificam como negros os que se dedicam aos trabalhos mais humildes e desprezados, trata-se de uma continuidade do escravismo da colônia e império. Por isso mesmo, alguns professores têm muita dificuldade para explicar como era a escravidão em Roma, na Grécia ou entre os povos islâmicos, afinal, escravidão tem cor no Brasil. Pobreza extrema também tem e quando esses subalternos saem dos eu lugar... ah! É um atentado à ordem, quando não uma agressão, uma violência aos privilégios legitimamente herdados.
O terceiro motivo para este post foi o comentário de uma pessoa querida, muito humana, também, mas não menos assujeitada a este racismo estrutural em um post do Facebook que repassei. Ele falava do infeliz incidente no qual Sílvio Santos, durante o Teleton, perguntou para a atriz mirim Júlia Oliver o que ela queria ser quando crescer. Sim, atores e atrizes mirins nem sempre seguem a carreira, só para explicar para os desavisados. A menina respondeu que queria ser atriz ou cantora e ele perguntou: “Mas com esse cabelo?”. A menina não entendeu, perguntou: “Mas como assim?”. Ele mudou o assunto e ponto. O cabelo crespo e afro da menina seria um empecilho. Racismo, ainda que o autor da façanha não consiga perceber isso. A pessoa amiga, cujo comentário está aí embaixo, não entendeu, também.
Vou reproduzir, só para terminar este imenso post, a resposta que dei. Estará entre aspas, porque veio direto do Facebook.
Segundo, crianças negras, e pessoas negras em geral, são bombardeadas com imagens de beleza que pouco tem a ver com aquilo que, na média, são. Cabelo bonito é cabelo liso. Nariz bonito é nariz afinado. Pretos fedem, por isso, precisam de desodorantes mais potentes. Celebra-se quando um ou outro ator ou atriz negro consegue algum destaque. Celebra-se, porque são exceções. A regra é que negros, e negras em menor quantidade, apareçam nas páginas policiais, ou em papéis subalternos nas novelas e na vida.
Terceiro, e não digo que seja o seu caso, como estamos imersos em uma sociedade racista que nega sê-lo e tenta individualizar as atitudes racistas como ato pessoal, tendemos a querer diminuir o que é evidente. Quantos apresentadores de TV, top models, qual a porcentagem de negros e negras nas nossas novelas, nas revistas e todo mais? Correspondem à média da população brasileira que é quase meio a meio?
Não desprezo a dor individual de sua mãe, mas cabelo ruivo ou sardas não estão associados no nosso imaginário social à subalternidade, incapacidade intelectual, propensão ao crime. Cabelo ruivo é algo excepcional no Brasil, mas ninguém perguntaria para uma menina ou menino ruivo – salvo se sarará, com traços negroides evidentes ou o fenótipo nordestino estereotipado – se ela ou ele espera sucesso com “esse cabelo”. Marina Ruy Barbosa é sinônimo de sucesso, beleza, sexy appeal e seu cabelo é parte fundamental da composição do quadro. Ser chamado de vanish, leite azedo, pode ofender uma criança; é bullying e como tal deve ser tratado, mas não é racismo reverso.
Crianças e pessoas brancas não são visadas pela polícia ou expulsas de shoppings ou revistadas por serem brancas, nem tem suas possibilidades de ascensão social colocadas em cheque ou questão. Ser negro – e eu não sou vista como negra o tempo inteiro, muito pelo contrário – é lutar contra o racismo todos os dias. Nossa sociedade prefere Cirilos (*de Carrossel*), que se pinta de branco para agradar Maria Joaquina, ou Pelé, que culpa os negros pelo racismo, já que acredita piamente que se pararmos de falar em racismo, ele acabará, do que Aranhas e esta menina aí. Invertem a equação para culpar a vítima pelo orgulho de ser como é.
Desculpe, não podia deixar passar. E recomendo o excelente documentário Good Hair do Chris Rock. Há um mercado que explora a baixa autoestima das pessoas negras, especialmente das mulheres, e garanto que a Jequiti deve ter um creme milagroso para domar o “cabelo ruim” de meninas como a Júlia Olliver, que deveriam sonhar com o cabelo da Marina Ruy Barbosa ou da Giselle Bündchen e, não, assumir seu cabelo crespo.”
Eis minha contribuição para as celebrações do Dia da Consciência Negra. Desejo muito que, um dia, não precisemos mais desta data. Que a lei que obriga o ensino de História e Cultura Africana seja cumprida nas escolas. No momento, entretanto, ela se faz mais do que necessária.
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