terça-feira, 29 de abril de 2014

Algumas reflexões sobre o #SomosTodosMacacos


Fiquei vendo as manifestações pró e contra a hashtag #SomostodosMacacos e achei que tinha que aproveitar (*o início da madrugada*) para escrever alguma coisa.  A onda de manifestações na internet, porque, sim, trata-se de uma onda, começou depois da reação espontânea do jogador Daniel Alves, do Barcelona, depois de mais um vergonhoso caso de racismo no futebol.  Atiraram uma banana no campo quando o jogador brasileiro ia bater o escanteio, ele parou, pegou a banana, comeu e continuou fazendo o que deveria fazer, inabalável.  Segundo as próprias palavras do atleta:
“Foi um gesto superespontâneo, mesmo que eu já venho a um certo tempo sofrendo esse tipo de coisa, eu acho que as atitudes negativas têm que ser sempre pagas com atitudes positivas. Não tinha nada programado, não. Eu não imaginava que iam atirar uma banana em um campo de futebol”, declarou Daniel Alves.

A coisa, claro, não morreu aí, especialmente, quando Neymar, uma das grandes estrelas do futebol mundial, apareceu com seu filhinho, ambos com bananas na mão e a hashtag #somostodosmacacos.  A coisa viralizou, claro, e apareceram outras tantas pessoas portando bananas.  OK, pensei eu.  Somos todos primatas, como bem sabe quem não faltou as aulas de biologia, somos, portanto, todos macacos, cientificamente falando (*os religiosos podem rejeitar isso, mas conhecem o discurso evolucionista e entenderiam a mensagem, também*), e racismo não se fundamenta em fatos científicos, mas em (pre)conceitos, isto é, atribuir valor a determinados traços fenotípicos (*cor de pele, olhos, formato da cabeça, espessura de lábios, tipo de cabelo, etc.*).  E, sim, eu repassei no Facebook coisas com a hashtag #somostodosmacacos.

Houve reação de certos segmentos dos movimentos negros argumentando que usar macaco/banana associado ao racismo contra os negros não é empoderador.  Bem, eu acredito ser possível desconstruir um termo ofensivo, se apropriar dele, subvertê-lo.  Não é isso que as feministas fazem com o termo vadia?  Daí as Marchas das Vadias (Slut Walk) que se multiplicam pelo mundo?  Há quem transforme até o termo macaco em termo de afeto.  Conheci um senhor negro, casado com uma mulher negra, que chamava a companheira carinhosamente de “macaca”.  Eu achava estranho, mas era algo entre os dois e sempre o termo vinha carregado de profundo afeto e ternura.  



No entanto, compreendo bem o argumento dos militantes, pois nunca, não no mundinho em que vivemos, uma pessoa branca será chamada de macaca e, mais ainda, toda uma rede de sentidos será conjurada do nosso imaginário social.  Não consegue entender?  Quando um negro ou negra é chamado de macaco, o que vem de arrasto são outros termos como feiúra, incapacidade ou inferioridade intelectual, sujeira, má educação.  É algo muito forte, muito ofensivo.  Historicamente a associação prestou-se aos discursos racistas (pseudo)científicos e políticos para desqualificar os povos negros, suas capacidades intelectuais, para confiscar direitos e humilhar pessoas.  Mas eis que várias celebridades e gente comum socialmente brancas postaram suas fotos com bananas ou com a hashtag #somostodosmacacos  Neste caso, a participação de Neymar foi mais que fundamental.

Não concordo com o argumento de que um jogador de futebol rico e famoso esteja livre de sofrer com a face mais violenta do racismo, isto é, ser tratado como bandido por causa de sua cor de pele e algumas características físicas, ser humilhado e até morto.  Primeiro, porque o econômico ajuda, mas não é determinante ou não teríamos aberta, ou veladamente, estabelecimentos, condomínios, e outros, que dificultam (*porque neste país proibir é crime*) a entrada de pessoas negras que, sim, tem dinheiro para pagar para consumirem determinados produtos e ocuparem certos espaços.  Fosse assim, a família de Ronaldo Fenômeno não teria sido discriminada em um luxuoso condomínio da Barra da Tijuca.  Segundo, porque o fato de não nos sentirmos discriminados – e isso vale para qualquer (pseudo)minoria   não nos impede sermos lembrados de “nosso lugar” mais cedo ou mais tarde.  Tenha certeza, isso vai acontecer e vale para negros, mulheres e gente com “cara de pobre”.  Uma professora da UnB disse uma vez em palestra que todo brasileiro que viaja para o exterior terá, pelo menos uma vez na vida, a oportunidade de se sentir um não-branco, isto é, talvez ser chamado de macaco, tratado como inferior por vir de um país periférico, visto como pobre, por ser do Brasil.  Terceiro, porque em uma situação de violência, especialmente, de abuso policial, mesmo um negro rico ou bem colocado na vida pode não ter a chance de provar que “não é bandido” ou "dar uma carteirada".  De novo é a cor da pele e certos traços físicos que marcam negros, principalmente os homens neste caso, que os coloca na condição de criminosos em potencial.  Já as mulheres negras não são vistas como ameaça, dificilmente alguém vai mudar de calçada ou segurar com mais força a bolsa ao vê-las se aproximando, mas elas são primariamente identificadas como serviçais ou como corpos que podem ser sexualmente apropriados simplesmente por serem negros. 



Só que aí, ficamos sabendo que talvez a aparição de Neymar (*parece que é certeza mesmo*) tenha a ver com uma mega campanha publicitária ligada ao empresário – sim, ele também é isso – Luciano Huck.  Já temos camisetas para vender e tudo mais e isso, claro, gerou muita insatisfação.  Huck (*e sua esposa*) tornaram-se centro da discussão e estão lucrando com algo que, no início, pareceu espontâneo e muito válido.  Um casal branco tornou-se protagonista de algo que deveria ser uma reação contra o racismo partida de pessoas que são vistas como negras e discriminadas por isso.  Um casal branco, especialmente o marido neste caso, vai ganhar muito dinheiro com isso e posar de bonzinho e politizado.  Enfim, eu não descarto a possibilidade da subversão do termo, da solidariedade, mas ficou algo amargo na boca.

Para além do racismo no futebol, acontece no Brasil um verdadeiro genocídio da juventude negra e as estatísticas são das piores: “Em 2010, morreram no Brasil 49.932 pessoas vítimas de homicídio, ou seja, 26,2 a cada 100 mil habitantes. 70,6% das vítimas eram negras. Em 2010, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, ou seja, 53,5% do total; 74,6% dos jovens assassinados eram negros e 91,3% das vítimas de homicídio eram do sexo masculino. Já as vítimas jovens (ente 15 e 29 anos) correspondem a 53% do total e a diferença entre jovens brancos e negros salta de 4.807 para 12.190 homicídios, entre 2000 e 2009. Os dados foram recolhidos do DataSUS/Ministério da Saúde e do Mapa da Violência 2011.”  Os dados não mudaram muito desde então.  De quem é a responsabilidade?  Por que jovens negros são vítimas e agentes preferenciais da violência?  Junte o econômico e o cultural e teremos algumas respostas.



Nos últimos meses tivemos vários assassinatos emblemáticos de homens e uma mulher, Cláudia, que chocaram o país.  Crimes perpetrados pela força policial, pelo Estado, portanto.  Amarildo sumiu depois de ser levado pela polícia.  Cláudia, dona de casa, mãe de família, trabalhadora, foi baleada e tratada como lixo pelos policiais que (supostamente) lhe prestavam socorro.  Em 2011, houve o caso do menino Juan, morto por policiais e descartado em uma lixeira.  Mais recentemente, o do dançarino DG.  Neste último caso, não foi confirmada a participação da polícia, mas os indícios são fortes.  Ponto comum?  Todos negros, todos moradores de comunidades pobres, as nossas favelas.  Quando eu era criança, moradora de uma cidade da Baixada Fluminense, uma das ofensas mais comuns trocadas entre meninas (*e palavra nunca usei, porque nunca vi meus pais ou avós usando esse tipo de xingamento e eles eram meu modelo*) era "neguinha favelada".  Um... ser pobre, OK, morador da Baixada Fluminense, "tá de boa", mas ser negro e favelado era para arrasar com você.  E, vou contar um segredo, a maioria de nós seria facilmente identificada como negra em qualquer contexto.  Triste, não é?

O caso DG parece já ter sido eclipsado pelo #somostodosmacacos, que agora me parece vazio e despolitizado, mas rendeu uma bela homenagem no programa de Regina Casé.  Não sei se se o rapaz não fosse dançarino de um programa da Globo a atenção seria a mesma.  Neste caso, eu acho que se existe o espaço, ele deve ser usado para denunciar e pedir justiça não somente para DG, mas para tantos outros jovens negros que sofrem violência em primeiro lugar simplesmente por isso, serem negros.  



É preciso dar um basta nesse papinho de “não somos racistas”.  Somos sim.  Nossa cultura é racista e contamina todos nós.  Mesmo pessoas negras expressam idéias racistas, porque foram moldadas em uma sociedade que nos bombardeia o tempo inteiro.  É possível romper com (pre)conceitos, mas isso exige uma disciplina e vigilância constante.  Assim como no caso do machismo, o exercício pode ser doído e render acusações por parte de quem lucra com as discriminações, os privilégios, ou sequer vê que eles existem. Sim, há inocentes úteis, os cúmplices tão necessários para a manutenção do sistema, como bem apontou Simone de Beauvoir.  De novo, repito, não é fácil.  Somos a todo momento pressionados a mudar de calçada, torcer o nariz para expressões culturais vistas como negras, a achar que cabelo liso é lindo e o negro é ruim, feio, “vassoura de bruxa”.

Para fechar, não sei se considero o protesto #somostodosmacacos tão interessante assim, mas retomando a fala de Daniel Alves, é preciso fazer algo de positivo com ele.  Sim, somos tod@s iguais em humanidade e devemos ser em direitos políticos.  É preciso lutar – e não falo aqui de socialismo ou revolução – por um mundo mais justo e menos excludente, que permita aos jovens das periferias, subúrbios, entorno (*como é se usa aqui em Brasília*), melhores condições educacionais e a possibilidade de inserção no mercado de trabalho não somente em postos mal pagos e subalternos.  É preciso acabar com essa associação nefasta de pele negra e crime, como se fosse “natural” que essa violência toda aconteça.  Sim, devemos lutar por um mundo mais justo para tod@s, para que nossas crianças negras não cresçam se sentindo inferiores, menos capazes, bonitas.  Para que ao chegarem lá no final do seu ensino médio não precisem mais das cotas, porque as desigualdades foram diminuídas e o sentimento de inferioridade não criou raiz dentro delas.  Eu acredito que é possível.  



Não sei se coisas como #somostodosmacacos vão ajudar, que a coisa não vai ser diluída, mas é preciso fazer limonada de limões e aproveitar a visibilidade que o evento está tendo.  Futebol é o esporte de maior visibilidade no mundo e temos que nos aproveitar dele para tentar minar o racismo e seus efeitos colaterais.

5 pessoas comentaram:

Não querendo ser a cientificamente chata, mas já sendo, mas não somos macacos coisa nenhuma. Temos um ancestral em comum,o que explica nossas muitas semelhanças, mas é muito diferente de termos nos originado de macacos ou sermos uma evolução deles. Além disso, um branco segurando um cartaz dizendo "Somos todos macacos" soa para mim como algo de muito mal gosto. É como um homem segurando um cartaz de "somos tod@s vadias". Se você é uma pessoa branca, principalmente de fenótipo europeu ser chamado de macaco é algo que nunca vai te acontecer. Existem formas melhores de se protestar contra o racismo e sem apelar para uma dor, um sofrimento que não é seu. Sem contar que eu acho de hipocrisia sem tamanho várias pessoas que no dia-a-dia mandam o amigo negro voltar para a senzala, chamam negros em geral de preto, pretinho, são contra as cotas e etc estarem tão engajados nessa campanha.

Achei sensacional o Daniel Alves ter feito limão com limonada, mas essa campanha para mim foi um tiro no pé. Ela tem uma mensagem positiva de que todos somos iguais , mas sabemos que essa prática fica muitas vezes só na teoria. Ainda tô pra encontrar uma pessoa declaradamente racista. Ainda assim, o racismo esta ai, aos montes. Do que adianta compartilhar a fotozinha da banana se você é racista nas suas tantas outras atitudes cotidianas? Se você não nota a exclusão dos negros em diversos setores da sociedade? Se você não tem senso crítico pra policiar o seu racismo?

Finalizando, veja algo positivo na campanha, que é chamar atenção para o racismo a nível internacional, mas a apropriação da campanha por brancos ricos, em especial pelo Hulk (que vergonha alheia daquela camisetinha safada à venda) foi um banho de água fria na coisa, não vejo como a campanha vai acrescentar alguma coisa a vida da comunidade negra.

Escrevi que somos todos macacos, porque somos todos primatas. Somos, também, todos animais, ainda que, para muitos, isso possa parecer ofensa. Não somos especiais no sentido de anular tudo isso.

Obviamente, acredito que você entenda que sei perfeitamente que o discurso evolucionista diz que viemos de um acestral comum, como também diz que fomos os humanos vencedores de tantos outros -neandertais, por exemplo -que em algum momento se tornaram obsoletos ou pouco adaptáveis e sumiram.

De resto, seu comentário é coerente e importante, ainda que não concorde integralmenre com eles.

OLÁ VALÉRIA, CONHEÇO SEU BLOG HÁ POUCO TEMPO, MAS POSSO DIZER QUE GOSTO MUITO.
ACHEI SEU TEXTO MUITO BOM, UM DOS MELHORES QUE JÁ LI SOBRE ESSE ASSUNTO. E CONCORDO COM VOCÊ DEVEMOS APROVEITAR O MOMENTO PORQUE DEPOIS ISSO TUDO PASSA. E EM TEMPOS DE COPA AQUI NO BRASIL PODERÍAMOS PROTESTAR MOSTRANDO A NOSSA INDIGNAÇÃO COM O QUE ACONTECE CONOSCO FORA DE DENTRO DO BRASIL. ABRAÇOS.

Olá Valéria.

Vi que você respondeu ao comentário anterior da moça falando sobre a nossa evolução.
Vi também que disse que somos todos animais, o que concordo plenamente.

Como antes (no post sobre estupros) já entrei no assunto, não sei se vc levou muito a sério o sobre os animais no geral. Sei que pareço uma chata insistente no assunto, mas apenas estou entrando no assunto, pois vejo em vc uma pessoa capaz de cortar os pré-conceitos imposto pela sociedade, que em muitas vezes é como você mesma disse, racista, homofóbica, elitista e agora te digo com toda a certeza é especista!
O que é especismo? É o mesmo que esses outros nomes ditos (racista, elitista...etc), é dizer que uma raça/espécie é melhor que as outras, e assim se aproveitar, escravizar, matar e rebaixar como se tivéssemos (brancos/humanos) o direito/autoridade sobre os mais fracos, frágeis e indefesos.

Peço apenas para que leia duas matérias:
Somos todos animais – Diga não ao racismo, diga não ao especismo #SomosTodosAnimais
http://entretenimento.r7.com/blogs/fabio-chaves/2014/04/29/somos-todos-animais-diga-nao-ao-racismo-diga-nao-ao-especismo-somostodosanimais/

No Dia da Terra, entenda por que estamos cometendo suicídio coletivo
http://entretenimento.r7.com/blogs/fabio-chaves/2014/04/22/no-dia-da-terra-entenda-porque-estamos-cometendo-suicidio-coletivo/


São matérias e estudos feitos sobre o mundo especista em que vivemos e o quanto isso é errado.

Olha,eu não sei se estou certa,mas eles tratam o racismo como uma coisa dos tempos de hoje.
O racismo existe desde os tempos antigos,sempre "separando" as pessoas por cor,pele,status e poder.
Tudo isso é rótulo.Nós DERIVAMOS dos macacos,se é assim que se pode dizer,deles,e eu acho que é errado fazer uma enorme picuinha por causa de uma simples banana jogada no chão. O cara disse que ele não tá nem ligando. E ele está certo.
Não,nós não podemos conviver,mas ele foi lá,se mostrou forte e boa.
Lembrando que,não são só os negros e brancos que sofrem preconceito. Os descendentes da linda cultura japonesa também sofrem.
O preconceito não é uma coisa de outro mundo. É só lidar,ignorar. A pessoa fica muito chateada se faz isso.

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