A imprensa publicou ontem os vergonhosos (*sim, é um daqueles momentos que sinto vergonha do Brasil*) dados de uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrando que para 58,5% dos 3.810 entrevistados em 212 cidades de todos os estados do país, entre maio e junho de 2013, teríamos menos estupros se as mulheres “soubessem se comportar”. É um resultado aterrador, porque mostra que para mais da metade de um grupo de entrevistados significativo, a culpa do estupro é da vítima, ea vítima, claro, é do sexo feminino. Se pegarmos outra pesquisa, descobrimos que 50,7% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos e que em 2011 mais de 89% dos estuprados eram mulheres e, desse total, 70% eram crianças e adolescentes. Juntando as duas pesquisas, imagino que estupro é castigo para “menina mal comportada”.
Enfim, o que esta pesquisa deixou à mostra é que mais da metade dos entrevistados considera que o estupro é legítimo a depender do comportamento da vítima. Deixe-me ver, e vou linkar uma série de matérias com mulheres estupradas, isto é, que não sabem se comportar: secretária de uma igreja estuprada por sujeito atendido pelo serviço social; passageira de transporte coletivo cheio estuprada e agredida; menina de 9 anos estuprada e morta à caminho da escola; adolescente que se negou a fazer sexo com um desconhecido que invadiu sua casa de madrugada e quase foi morta; adolescente de 13 anos atacada em sua própria casa, estuprada por quatro e esfaqueada; idosa de 78 anos que dormia em seu quarto quando foi assaltada e estuprada; mulher de 60 anos estuprada e morta na frente da mãe de 100 anos. Todas mulheres muito mal comportadas, eu suponho. Ah, mas alguém pode estar pensando: E a garota que saiu com o cara e disse “não”? E a mulher que bebeu demais? E a que usa roupas curtas? E...
Bem, se você tivesse um mínimo de respeito pelas mulheres, não estaria sequer cogitando essas perguntas. Você certamente seria um dos que responderiam que estupro é coisa que a mulher pede, quando estupro, na verdade, é um ato criminoso no qual uma pessoa, geralmente um homem, se apropria do corpo de outra, mulher ou criança, para mostrar que tem poder (*normalmente personificado em um órgão chamado pênis*) e que pode, sim, exercê-lo como, quando e como quiser. A maioria dos estupradores não é doente, ou teríamos que considerar doentes uma grande parcela de nossa população, a que estupra e a que acha que estuprar em algumas situações é legítimo. E, sim, há mulheres que acreditam que outras merecem ser estupradas, que elas, por serem boas mulheres, nunca seriam estupradas. Lamento informar, você é muito machista e está muito equivocada. Espero que você reflita que mulheres são estupradas por serem mulheres, jovens ou idosas, magras ou gordas, de qualquer cor ou classe social, são estupradas por serem mulheres.
Mas a pesquisa é extensa, vamos lá! Por exemplo, 65,1% dos quase 4 mil entrevistados disseram concordar total ou parcialmente que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Para quem acha que a roupa que se veste faz diferença, como se roupas fizessem diferença, como se roupas estuprassem. No Egito, país no qual 72% das mulheres afirmam usarem hijab (véu + roupas “modestas”, isto é, que ocultam as formas do corpo*) ou niqab (*aquela vestimenta preta que só deixa os olhos à mostra, porque geralmente vem acompanhada de luvas e meias pretas*), 86% das mulheres já sofreram alguma forma de assédio sexual. Vejam que o problema parece ser com um tipo de masculinidade agressiva e uma cultura permissiva em relação aos estupros e, não, ao que as mulheres usam ou deixam de usar. A não ser, claro, que saber se comportar seja ficar em casa, não sair para trabalhar ou estudar. Mas eis que dentro de casa a violência também acontece.
Aí, temos outros dados chocantes da pesquisa: 63% concordaram, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”; 89%, somando aqueles que concordaram totalmente e parcialmente, disseram concordar que “a roupa suja deve ser lavada em casa”; 82% acreditam que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; 68,8% concordaram, total ou parcialmente, que o “homem deve ser a cabeça do lar”. Temos, portanto, uma visão patriarcal de família, somado ao princípio burguês de que o que ocorre em casa é algo privado e não interessa a mais ninguém.
Cabe aqui historicizar o que chamo de burguês. A partir do século XVIII, vários discursos partindo de membros da burguesia – filósofos, médicos, advogados, economistas, moralistas, religiosos – vão enfatizar o individualismo, a livre iniciativa, que todos os homens do sexo masculino são nascidos iguais (*ou você acha que as mulheres estavam incluídas???*), a importância da família nuclear, da maternidade como destino das mulheres, do direito do pai (*vide o Código Napoleônico*) sobre o resto da família, da necessidade de uma intimidade e ligação maior entre o casal (*daí o amor romântico*), etc. A idéia de privacidade – portas fechadas, corredores, quarto do casal, etc. – é muito recente. A residência do camponês (*e de muitos pobres até hoje*) só tinha um cômodo, ados nobres tinha um cômodo que dava para outro e outro e outro, nada de corredores, por exemplo. Era uma outra forma de ver o mundo, não melhor, ou pior, mas muito mais pública. O triunfo da burguesia no século XIX (*há controvérsias, claro!*) deu muito poder ao pai, muita importância à família nuclear e desdobrou-se em pesquisas como essas aí...
Se “roupa suja se lava em casa”, bem, como tratar um caso de estupro dentro da família? Bem, e estatisticamente muito da violência contra as mulheres ocorre em casa; quando se trata de estupro contra crianças e adolescentes então... Se “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, vilão é quem chama a polícia ou diz para a mulher que ela tem direitos, que não precisa, nem pode se submeter a violência conjugal. Dai, ah, as contradições dos brasileiros e brasileiras, é meio cômico que “91% concordaram, total ou parcialmente, que “homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”. E 78% concordaram totalmente com a prisão para maridos que batem em suas esposas.”. Fica engraçado, não é? E o princípio da privacidade e do domínio do homem sobre mulher e filhos?
Enfim, essa pesquisa me deixou bem mais descrente dos tempos nos quais vivemos. Culpar a vítima, não o agressor, perguntar para a mulher ou menina estuprada “o que você estava vestindo?” ou “o que você fazia nesse lugar a essa hora?” devem ser a regra para mais da metade dos entrevistados. Mundo triste esse em que vivemos; país triste este tão machista e reacionário no qual estuprar é crime somente em alguns casos. E repito, não se engane, mulher machista, você se acha livre das agressões por ser pura, modesta e recatada, por não ser puta ou periguete, mas continua sendo mulher. Não está livre das agressões de caráter sexual, sejam verbais, sejam físicas. Depois desta pesquisa, será que ainda vai aparecer alguém falando seriamente que não precisamos dos feminismos para nada?
7 pessoas comentaram:
Sim, ainda tem gente que acha que não precisamos de feminismo. E entre essas pessoas, às vezes as próprias mulheres têm esse discurso, o que é um pouco assustador, ao meu ver. E muitas pessoas acreditam que na nossa sociedade a mulher não tem mais motivos para reclamar... =/
Eu gostaria de fazer um comentário longo e coeso a respeito do texto e da pesquisa, mas estou tão chocado que prefiro me retirar e refletir. Mas quero deixar aqui meu total repúdio a essa sociedade boçal e patriarcal onde somos obrigado a conviver com gente dessa laia. O machismo está tão intrínseco, que me enoja ver mulheres machistas o tempo todo... Ah, chega, fui. PS: ótimo texto.
Takamura do blog: Tatsu Estúdio
Ano passado, eu estava voltando de um halloween com uma amiga. Ambas não mostrávamos parte nenhuma do corpo (eu estava com um vestido longo; ela, com blusa, jaqueta e calça jeans) e carregávamos nossos chapeuzinhos de bruxa nas mãos. Por motivo algum, fomos humilhadas em pleno metrô, em São Paulo. Nos demos as mãos e andamos rápido, até um bando de desconhecidos, atrás de nós, dizer que merecíamos ser estupradas. Ainda procuro o motivo para sermos merecedoras de tamanha agressão.
A culpa é do estuprador, sempre. E dessa mentalidade machista que infelizmente rege nossa sociedade.
Escutei no rádio o resultado dessa pesquisa, e fiquei estarrecida, num misto de choque, nojo e medo. Deu vontade de fazer as malas e ir para a Noruega.
O pior é que eu vejo a próxima geração tão violenta e retrógrada, com um machismo tão entranhado... Sou professora de turmas do ensino fundamental, e fico triste de ver que muitos dos argumentos utilizados pelos entrevistados, eu já escutei na boca dos meus alunos.
Extremamente importante uma pesquisa como essa, para enterrar de vez a ideia de que o Brasil está melhorando em termos de direitos humanos. Estamos em marcha ré!
É preciso enxergar o país como realmente é, para que as demandas sociais não se percam em discursos políticos cheios de firulas mas vazios de conteúdo real. Temos finalmente uma presidenta, mas isso de nada adiantou em termos de políticas públicas efetivas para as mulheres.
Vivemos tempos retrógrados, com possível piora no futuro próximo, já que a esquerda não consegue mais dialogar com a sociedade, nem parece interessada nas demandas sociais, enquanto a direita começa a ser lembrada com saudade por um número cada vez maior de pessoas, e por incrível que pareça por jovens, que não viveram na ditadura, mas compram e sustentam o discurso dos reacionários.
Triste.
Será que esses dados tão chocantes serviram para as pessoas que acreditam que feminismo é algo ultrapassado, refletissem? Tem gente que diz que esse machismo tão escancarado é coisa de gente ignorante, iletrada, pobre de dinheiro, mas será que essas quase 4000 pessoas que responderam a pesquisa todas eram desses perfil? DUVIDO.
Para aumentar ainda mais minha decepção com a população brasileira, a organizadora do evento "Eu não mereço ser estuprada" recebeu uma ameaça de estupro de um covarde que acreditava estar fazendo uma "brincadeira". Covarde sim, pois o moço já deletou o perfil.http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/03/29/organizadora-do-eu-nao-mereco-ser-estuprada-recebe-ameacas-de-estupro/
Mas eu acredito que a união e mobilização de mulheres e homens pelo feminismo é capaz de mudar essa situação, que podemos criar um raio de esperança no meio das trevas do machismo, da misógina e da ignorância.
Pois é moça, sigo seu blog faz anos, e estava esperando um ótimo texto (como assim o fez) a respeito dessa pesquisa.
É desesperador ver o quanto essa pesquisa mostra os extintos errados que os humanos seguem.
Como se fosse natural um homem ser estuprador, como se fosse aceitável uma mulher ser estuprada, seja por qualquer motivo citado.
Fiz um texto a respeito disso, dizendo que parece que esse povo não quer parar pra pensar, parece que é preferem continuar com a mentalidade estagnada para não mudar as concepções. Não querem fazer o minimo de esforço mental para ver o quanto está errado.
E aqui vou citar outro tema que é também na mesma linha de raciocínio, sobre o consumo da carne, no qual as pessoas seguem por 'extinto', por cultura, sendo desnecessário e cruel nos dias de hoje.
Basta uma olhada ao matadouro para ver se isso é algo natural, e apenas digo: se isso mexe com você e te faz sentir mal, é porque é algo errado, cruel e desnecessário, então basta querer mudar e não fechar os olhos apenas para não pensar no assunto.
Postar um comentário