segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Comentando a Primeira Temporada de Call the Midwife (BBC,2012)


Logo depois da Júlia nascer, consegui (*enquanto estava amamentando*) terminar de assistir a primeira temporada do seriado da BBC Call the Midwife (Chame a Parteira).  Bem apropriado, não é?  O fato é que eu tinha começado a assistir bem antes da menina nascer, e conhecia a série desde a sua primeira temporada, mas foi a gravidez que fez com que o programa tivesse maior interesse para mim.  Como não tinha achado legendas decentes para a maioria dos episódios, e a multiplicidade de sotaques estava prejudicando a compreensão, comprei o box com a 1ª e a 2ª temporada mais o primeiro especial e Natal.  Ainda não terminei de assistir a segunda temporada e esta resenha estava por terminar desde o ano passado, mas, enfim, acho que agora vai!

Call the Midwife é baseado nas memórias de Jennifer Worth, que foi enfermeira-parteira em um bairro proletário de Londres nos anos 1950 (*e além*).  A protagonista da série, inspirada em Worth, é a enfermeira Jenny Lee (Jessica Raine), que recém-formada, aos 22 anos, acreditava que iria trabalhar em um hospital, mas termina na Nonnatus House, um convento de freiras anglicanas dedicadas à enfermagem e, em especial, a atividade de parteiras, no East End londrino.  E é bom dizer que até hoje, na Inglaterra, são enfermeiras obstétricas as responsáveis pela maioria dos partos.  Jenny Lee, uma moça de classe média, se surpreende com a pobreza da vizinhança, mas abraça com paixão a profissão.  


Duas outras enfermeiras já residiam no local Beatrix "Trixie" Franklin (Helen George), sempre cheia de energia e bem moderninha para a época, e Cynthia Miller (Bryony Hannah), que parece apagada, tímida, mas que tem ótimos momentos no decorrer da temporada.  No episódio 2, chega ao convento mais uma enfermeira, Camilla Browne (Miranda Hart), que é grandalhona, desengonçada, insegura, mas esforçada e competente.  Chummy é de uma família rica e nobre, que não concorda com sua escolha profissional, muito menos com o fato de ela estar trabalhando em um lugar tão pobre.

Além das enfermeiras “laicas”, figuras centrais da série, temos também as freiras: Irmã Julienne (Jenny Agutter) é a superiora do convento, extremamente prática e compassiva; ela e as outras freiras s ão capazes de compreender e se mostrar abertas com situações que as jovens enfermeiras não entendem, como a relação incestuosa de dois idosos da comunidade.  Irmã Evangelina (Pam Ferris) é uma figura ao mesmo tempo cômica e séria, do tipo que parece brava e autoritária, mas, no fim das contas, tem um bom coração.  Tendo conhecido a extrema pobreza, mostra profunda compreensão das condições em que vive a maioria da população do bairro.  Irmã Bernadette (Laura Main), a mais nova das freiras, vive um conflito em relação à vida religiosa e o desejo de viver como as jovens de sua idade.  E, por fim, a deliciosa Irmã Monica Joan (Judy Parfitt).  A mais idosa das freiras, foi uma das primeiras mulheres na Inglaterra a se qualificar como enfermeira-parteira; de família nobre, os parentes romperam com ela quando da sua decisão pela vida religiosa.  Nos anos 1950, a Irmã Monica Joan vive com um pé na realidade, mostrando grande conhecimento do mundo e da vida, e a debilidade mental resultado da idade avançada.  É uma das personagens mais queridas da série.  


Para quem ficou surpreso com essa história de freiras anglicanas, bem, até alguns anos atrás eu não sabia que elas (*e eles*) existiam, descobri quando dava aulas de História da Igreja.  A situação é a seguinte, no século XIX, houve um forte movimento de retorno ao catolicismo na Inglaterra, liderado por intelectuais e alguns religiosos de renome.  Nesse processo de busca espiritual, houve quem levantasse como bandeira não o retorno à Igreja Católica, mas a algumas das práticas católicas abandonadas com a Reforma Protestante.  Assim, foi retomada a vida monástica e institutos religiosos surgiram, na Inglaterra, dedicados, principalmente, ao ensino e aos cuidados dos doentes.  São poucas as ordens e algumas caminham para a extinção, mas foi uma dessas ordens que serviu de inspiração para o que vemos em Call the Midwife.

O legal de Call the Midwife é que é uma série com mulheres, sob uma ótica feminina (*e, às vezes, feminista*), valorizando suas experiências e saberes, e oferecendo um leque de personagens de todas as idades e tipos físicos.   É uma série muito afirmativa e empoderadora, especialmente se comparada com muitos seriados nos quais as mulheres são adereço ou coadjuvantes.  Em Call the Midwife não há cena sem a presença feminina e todos os temas dos mais densos aos triviais recebem tratamento inteligente e respeitoso.  Há inclusive uma cena na segunda temporada – que não comentarei aqui – que traz essa questão, pois a voz da narradora – Vanessa Redgrave, que seria Jenny idosa – lembra que toda a vida de uma enfermeira-parteira é dedicada e gira em torno das mulheres, trata-se de um mundo de solidariedade, apoio e conforto, no qual os homens, mesmo quando amados, são meros detalhes.  Há personagens masculinos na série, como o Dr. Turner (Stephen McGann), médico que atende na clínica do bairro; o zelador do convento , Fred (Cliff Parisi); e o policial que se casa com Chummy, Peter Noakes (Bem Caplan), mas eles são coadjuvantes mesmo, as mulheres, seus dramas e alegrias são os protagonistas.


A primeira temporada de Call the Midwife – e, infelizmente, perdi o artigo com uma enfermeira da época que dizia que a série não mostrava muito da situação terrível dos bairros pobres londrinos – não tem como objetivo deprimir ninguém.  Via de regra, mesmo os partos mais difíceis terminam bem e mesmo quando o assunto principal do episódio não é esse, alguém vai nascer no início, ou no fim do programa.  Para além do trabalho de parto, há um episódio que discute a relação de companheirismo pouco usual entre os dois irmãos idosos, a mulher era faxineira no convento; outro que fala de um idoso, ex-combatente, doente e solitário, que Jenny precisa atender como enfermeira; e temos o episódio no qual a protagonista tenta resgatar informações sobre os filhos de uma viúva idosa que tinham vivido em uma poor house.  

Algo recorrente na série é a extrema miséria em que vivem algumas pessoas e a memória de tempos ainda mais sombrios, com a lembrança as poor houses, que separavam famílias e que eram morte quase certa para as crianças.  Na quarta temporada de Downton Abbey, que eu ainda não resenhei, elas são citadas como coisa do passado, mas as últimas só fecharam nos anos 1950.


Eu gosto da protagonista da série, Jenny, mas é verdade que sua vida pessoal é o que de menos interessante há em Call the Midwife.  Na primeira temporada, há toda uma situação de tentativa de romance com o mala do Jimmy (George Rainsford), amigo de infância da moça, só que (*clichê*), Jenny ama o homem errado, isto é, um cara casado de quem tenta fugir.  E, assim como em Downton Abbey, há toda a historinha de “minha mulher é doente, blá-blá-blá, por isso não posso abandoná-la, blá-blá-blá”.  Já deu, né?  Já Jimmy, nunca teve chance com a personagem, ainda mais quando demonstra seu desprezo pelas pessoas as quais Jenny decidiu dedicar sua vida.  Na verdade, a protagonista é muito mais interessante na interação com os pacientes, as grávidas, na superação de seus preconceitos burgueses e sua busca por justiça.   Uma das questões assentadas entre as irmãs é que, para ter a confiança dos doentes, é preciso relevar alguns desvios, leia-se, incesto, violência doméstica, e por aí vai.  Jenny, e as outras jovens enfermeiras, nem sempre estão dispostas a isso.  

Dentre as atrizes da série, creio que a mais premiada foi Miranda Hart e é muito justo.  Chummy rouba a cena sempre que aparece.  Grandalhona, meio desengonçada, mas muito competente e esforçada, ela tem que superar vários obstáculos ao longo da primeira temporada.  As enfermeiras se locomovem de bicicleta, Chummy até sabe montar um cavalo, afinal, ela é uma aristocrata, mas tem que aprender a dominar a bicicleta.  É nesse esforço que ela quase atropela o futuro marido.  Apesar de tudo, ou por causa de tudo, Chummy tem baixa autoestima, e seu enfrentamento com a mãe, uma lady muito da sebosa, é um dos melhores momentos da temporada.  



A mãe da personagem prefere ver a filha missionária, algo que é possível explicar para os parentes e amigos, do que casada com um simples policial.  Chummy vacila, rompe o noivada, sofre, mas dá a volta por cima e quando a mãe finalmente aceita e se oferece para ajudá-la a comprar o vestido branco super chique, a personagem diz que “não é mais necessário”.  Trata-se de um momento libertador e, sim, uma demonstração do feminismo da série.

As outras duas enfermeiras tem seus momentos, mas são coadjuvantes para Jenny e Chummy.  Trixie é a imagem da garota moderna e descolada.  Se veste na última moda, fuma, bebe, namora, e, sim, apesar de parecer fútil em alguns momentos, é uma enfermeira muito competente.  Vive às turras com a Irmã Evangeline e discorda dela em vários momentos.  Volto a isso na resenha da segunda temporada.  Já Cinthia é a moça tímida, que parece viver para os outros.  Dedicadíssima ao trabalho, ela tem seu melhor momento no capítulo sobre a grávida com eclampsia.  Ela dá apoio ao marido e usa suas horas de folga para acompanhar e ajudar em um momento de grande dor.  E, o que é muito importante, não se cai no clichê, pois Cinthia não se apaixona pelo moço, ela mostra solidariedade, ela se apega ao casal, mas não cruzamos a linha do relacionamento profissional.  


Apesar de pegar leve na miséria, e lamento, de novo, ter perdido o artigo, já que todas as crianças que nascem são amadas e queridas, mesmo depois do sofrimento imenso das mães para pari-las, e que não tenhamos abortos, nem infanticídios, ainda assim, a situação em muitos episódios é bem angustiante.  Há doenças venéreas, a série se passa antes dos anticoncepcionais, e o East End está longe de ser o paraíso.  Em um dos episódios, que se desdobra em outro já no final da temporada, Jenny ajuda uma menina de 15 anos grávida.  A moça era órfã e tinha saído dos interiores Irlanda para Londres.  Acaba prostituída e apaixonada pelo cafetão.  Temendo ter que abortar a criança que espera, ela acaba aceitando o apoio das freiras e enfermeiras e é levada para um lar abrigo.  Lá ela tem o bebê.  

Parece que as coisas vão se encaminhar para um final feliz, certo? Nada disso!  O bebê, uma menina, é tomado da garota que termina enlouquecendo.  Quando Jenny vai questionar o padre que gerencia o abrigo, ele é duro e prático “um recém-nascido saudável é adotável; uma moça sem filhos é empregável”.   Sim, mas trata-se de uma violência sem tamanho!  E era algo comum, muito comum antes da década de 1980 que coisas assim ocorressem.  Vide o filme Philomena, um dos concorrentes ao Oscar deste ano. Enfim, apesar de atenuar as coisas, Call the Midwife pode deixar um gosto amargo na boca.   E isso acontece em vários momentos da primeira temporada.


Uma das questões contempladas em Call the Midwife é a questão da velhice.  Além de ter atrizes idosas com grande espaço em tela, o abandono, a perda das faculdades mentais, o isolamento dos idosos, tudo é muito bem abordado na série.  Não é tudo centrado nela, mas é a Irmã Monica Joan que serve de centro para a maioria das discussões sobre a condição dos idosos.  Já no final da temporada a personagem é pega roubando.  Na verdade, ela está se apropriando de coisas pequenas, mas é pega com a “mão na massa” e tudo vira um caso de polícia.  Afinal, a Irmã Monica Joan é senil ou é uma sonhadora?  Como lidar com seus lapsos de realidade?  E é nesse episódio que ficamos sabendo de todo o duro percurso que ela fez para, no final do século XIX, tomar seu destino nas mãos e se dedicar a trabalhar para a melhoria das condições de vida de outras mulheres.  E eis, de novo, uma abordagem feminista da emancipação das mulheres. É bom ver atrizes de todas as idades com papéis importantes dentro dos episódios, mais importante ainda é que todas transitam pelo drama e pela comédia.  

Falando da questão dos partos, nem tudo o que é mostrado na série é prática nos dias de hoje.  Por exemplo, não se considera mais como correto fazer enema – lavagem intestinal – em uma mulher em trabalho de parto.  Sim, eu sei que em alguns hospitais brasileiros ainda fazem isso, mas não é correto, é prática arcaica e, não raro, debilitante para a mulher que está tentando parir.  Todos os partos são em posição litotômica, isto é, com a mulher deitada, ainda que não sempre de costas.  Trata-se da pior posição para se parir, mas era regra, também.  E, de novo, continua sendo largamente utilizada no Brasil... O pai é excluído do trabalho de parto.  Hoje, isso só acontece na Inglaterra se o pai quiser se excluir.  Em Call the Midwife não temos “parto humanizado”, mas o tratamento dado às mulheres é respeitoso e acolhedor dentro das possibilidades dos anos 1950, em um bairro muito pobre.


Uma das coisas mais legais de Call the Midwife é apresentar o parto como algo natural e que a maioria das mulheres, ao contrário do que ocorre no Brasil, são capazes parir, sim.  Isso, claro, não descarta a cesariana, se necessário, um dos momentos mais interessantes da primeira temporada é quando é discutida a situação de uma mulher que tem uma constituição física muito débil devido à má nutrição durante a infância.  Ela perdera vários filhos, mas, agora, estava conseguindo levar a gravidez à termo, porque o serviço de saúde atendia aos mais pobres e o Estado pagaria pela sua cesariana.  Sim, nem sempre existiu o National Health Service (NHS), ele só foi criado em 1946.  Eem Call the Midwife, as enfermeiras visitam as pacientes em casa, prestam os cuidados necessários, ensinam higiene e por aí vai.  Elas são as cuidadoras primárias das mulheres no Reino Unido.

A primeira temporada de Call the Midwife teve seis episódios, mais um especial de Natal.  A audiência foi altíssima, rivalizando com Downton Abbey.  Segunda temporada garantida, tivemos oito episódios, mais o especial de Natal.  A terceira temporada está no ar e o público continua prestigiando.  Pretendo resenhar, assim que possível, a segunda temporada.  De qualquer forma, pelo que eu soube, a primeira temporada está disponível no Netflix.  



Recomendo muito o seriado para quem queira ver um programa realmente centrado em mulheres ativas, competentes e que se preocupam com as suas semelhantes. Fora isso, o programa pode interessar para quem está grávida, ou pretende parir, além de interessados por séries de época.  É isso.  

2 pessoas comentaram:

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Que resenha formidável!!!
Descobrir essa série no início da minha gestação e estou me alimentando dela 😂.

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