Ontem, foi publicado um texto na Folha de São Paulo chamado Principal alvo da nova censura moralista é a telenovela, ele veio em seguida a uma matéria com o Carlos Lombardi que, agora na Record, é conhecido por criticar o sistema brasileiro que dá mais poder ao diretor do que ao autor da novela, por criticar a classificação indicativa como castradora da criatividade, e por encher suas tramas de homens descamisados e atrizes boazudas. A autora do texto, Renata Pallottini, é professora emérita da USP, e está criticando a suposta censura imposta pelos anunciantes e pela audiência. Vou citar um trecho do texto da autora:
As empresas que podem vir a subvencionar a produção se afastam quando o conteúdo da sinopse não lhes agrada; a sociedade reduz a audiência e provoca a necessidade de mudanças, de acordo com a sensibilidade da emissora ao seu desagrado. Se nos reportarmos à telenovela de maior audiência no momento, "Amor à Vida", vemos reações de público e grupos organizados que configuram o repúdio àquilo que, segundo eles, representa o perigo de formar estereótipos: associações médicas se rebelam contra o fato de doutores, na história, serem adúlteros e pouco dedicados ao trabalho; grupos de obesos se solidarizam com a personagem Perséfone, enquanto grupos ligados à questão de gênero lamentam a personalidade do vilão Félix (um dos maiores acertos da novela). Nossa sociedade atual, sobretudo a que assiste à novela, é, em boa parte, moralista. Defende que, na obra de ficção, se apresentem modelos de boa conduta --nem sempre seguidos na vida real. Despreza, deliberadamente ou por ignorância, o fato de que a ficção é uma história inventada, baseada, sim, na realidade, mas que não está obrigada a nos apresentar exemplos de pureza moral e bons costumes.
Eu já critiquei aqui no blog várias vezes a classificação indicativa, pois, na maioria das vezes, ela é burra, castradora e moralista, sim. Já critiquei, também, os pais e mães que, incapazes de controlar os filhos ou temerosos de ferir-lhes os sentimentos ao dizer "vai dormir" ou "não", querem transferir para o Estado a função de censurar programas adultos em horários em que crianças deveriam estar dormindo. Já falei do comportamento ridículo e carregado de preconceito de certos telespectadores. Isso não quer dizer que eu concorde com os argumentos da autora do texto que deseja tirar qualquer poder de reação ou intervenção das mãos da audiência.
Em primeiro lugar, é comum que as emissoras, a Globo faz isso em diversos momentos das tramas, criem grupos de opinião com representantes do público alvo. A pressão é mais intensa quando um produto vai mal, tem baixa audiência. Nem sempre, a resposta do público é aquilo que eu gostaria, mas é uma consulta válida, e serve para que autores e autoras possam pensar e repensar os rumos de suas obras. Não deveriam ser determinantes, mas não podem ser jogadas fora.
Pelo discurso da autora, fica parecendo que é fascista escrever para a emissora, para o autor, sugerir desfechos ou reclamar de algo que, sim, está errado, é ofensivo. Querem ver? Já houve vários casos de racismo em telenovelas. Alguns passaram batidos, outros foram motivo de reação de grupos do movimento negro e mesmo de pessoas comuns. O paraíso branco de A Viagem ficou um pouco "colorido" graças á pressão dos telespectadores. Isso, quase vinte anos atrás, bem antes dessa suposta onda de moralismo que parece campear por aí... Hoje, apesar das novelas da Globo terem ficado brancas de novo, há todo um cuidado com a forma como homens e mulheres negros são retratados. Será que em nome da liberdade criativa a audiência deveria se calar e engolir qualquer coisa? Será que devemos endossar tramas racistas, sexistas, detratoras de certos grupos? Será que uma empresa é "malvada" por não querer ver seu nome associado a uma produção que deprecia a sua marca? Em outros países, este tipo de pressão acontece o tempo inteiro e, em boa parte das vezes, com resultados satisfatórios.
A autora do texto cita Amor à Vida, essa novelinha que merece, mas não recebe 1/5 das pedradas de Salve Jorge, para sustentar seus argumentos. Ora, o autor ridiculariza sem parar uma personagem gorda; ela sofre toda sorte de humilhações. Parte da audiência argumenta que em uma sociedade na qual obesidade está cada vez mais associada à doença (*ainda que nem todos os obesos sejam doentes*), preguiça e desleixo, trata-se de uma crueldade, reforço do preconceito. Todos os médicos da trama - todos, sem exceção - são criminosos ou negligentes ou canalhas. Diz a autora, "(...) a ficção é uma história inventada, baseada, sim, na realidade, mas que não está obrigada a nos apresentar exemplos de pureza moral e bons costumes". Ora, bolas! Será que TODOS os médicos e médicas são canalhas na vida real? Não são. Será que não deveria ser compromisso da ficção temperar as coisas? E teve a grávida hipertensa que no país das cesarianas nunca iria ser colocada para ter parto normal (*se morreu, culpa do parto normal, vocês sabem...*) e a mocinha, agora transformada por vingança em noiva fantasma, que morreu de um dos tumores com maior possibilidades de cura. Isso é semear desesperança e desinformação. O autor se defende ofendido, claro, assim como o fez em outros casos ou, por estar blindado, simplesmente dá de ombros. No entanto, quando convém, diz que retrata a realidade em suas tramas... Sei... Sei... Está bom para fazer par com o Manoel Carlos.
Até acredito que haja gente, não acadêmicos estudiosos das telenovelas, que acredite que a audiência deve ficar caladinha, mas este texto me parece mais matéria paga ou algo do gênero. Será que nem desligar a TV a gente pode em respeito à liberdade criativa do autor? TV neste país é concessão pública, ou não é? Olha, a gente só muda uma situação - e nem estou entrando no mérito do pior ou melhor - se não se posicionar. As novelas brasileiras representam muito mal os não-brancos, os pobres, os LBGTs, as questões de gênero, os evangélicos, e tantos outros grupos. O vilão não precisa perder no final, como se isso fosse nos consolar, mas devem existir várias vozes dentro da trama, ainda que o autor ou autora tome suas posições, algo que é plenamente aceitável. Uma só voz, um só discurso, estereótipos sem fim, preconceitos despejados de forma anacrônica e a-crítica não são marcas de uma boa trama, mas da indigência criativa e/ou arrogância dos autores de telenovela, isso, sim.
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