Sábado, assisti dois filmes, Wolverine – Imortal, no cinema, e Child Bride of Short Creek, no computador. Gostei mais do segundo, um filme para a TV de 1981. Como cheguei até ele foi curioso, estava assistindo um pedaço de E.T. na Record e decidi checar informações sobre o elenco. Dee Wallace, que faz a mãe dos meninos em E.T., é a mãe da protagonista em Child Bride of Short Creek. O filme é daqueles “baseado em fatos reais”, neste caso, o chamado Short Creek raid, o maior ataque a uma comunidade praticante da poligamia nos Estados Unidos até hoje. O filme é bem interessante e oferece muitos pontos para reflexão.
O filme acompanha as semanas anteriores ao ataque da polícia à comunidade de Short Creek, Arizona. Jessica Jacobs (Diane Lane) é uma garota de 15 anos, obediente e integrada ao dia-a-dia da comunidade, mas não consegue deixar de desejar pequenas coisas que são inacessíveis como um sapato “feminino”, que não seja a bota padrão que todos são obrigados a usar em Short Creek. Ela também fica confusa ao guardar o rádio da escola e, por acaso, ouvir uma música de amor com expressões que não costuma ver no relacionamento de seu pai e sua mãe. Mais tarde, durante a recepção a Isaac King (Christopher Atkins), filho do pastor líder da comunidade, Frank King (Conrad Bain), que estava de retorno da Guerra da Coréia, Jessica se sente atraída por ele e é correspondida. No entanto, a moça não percebe que seu destino está traçado, pois o velho líder da comunidade anuncia para o pai da garota (Warren Vanders) que “Deus lhe revelou” que ela deve se tornar sua quarta esposa. A discordância da mãe de Jessica (Dee Wallace) não impede que o marido obedeça sem questionar o desejo do líder que se vende como profeta.
Jessica fica dividida entre seu amor pelo rapaz e seu dever de obedecer ao pai. O pastor deixa subentendido que a resistência da menina poderia trazer retaliações para a família. Jessica também presencia a derrocada de sua melhor amiga, Naomi (Helen Hunt), uma garota rebelde, que beijava garotos e sonhava em ir para Las Vegas e se tornar uma atriz. Nada acontece como ela desejava, muito pelo contrário... Já Isaac, ao saber do desejo do pai, se revolta. O moço lamenta por sua mãe (Joan Shawlee), negligenciada pelo pai, e considera indecente que o velho deseje se casar com uma menina, a moça pela qual ele mesmo está apaixonado. Jessica e Isaac se amam, planejam fugir juntos, mas ao descobrir que a comunidade será atacada pela polícia, Jessica se sente obrigada a sacrificar sua felicidade e tentar avisar sobre o perigo iminente.
Apesar de focar em um romance juvenil fictício, e a audiência é levada a torcer para que os dois jovens, de 15 e 19 anos fiquem juntos, Child Bride of Short Creek traz inúmeras questões que continuam atuais. Comecemos, pois pelos homens, ainda que eu veja a película mais como um filme sobre mulheres e seus dramas. Detalhe interessante é que a roteirista é uma mulher, Joyce Eliason, que ainda que mostre a situação de Short Creek sob vários ângulos, inclusive enfatizando os laços familiares existentes, é crítica em relação à condição feminina na comunidade.
O abuso espiritual exercido pelo líder é um dos temas fortes do filme. O presidente King, o excelente Conrad Bain, se diz profeta e usa sua autoridade para conseguir o que quer. Afinal, percebemos pela forma como ele olha para Jessica durante a festa de recepção ao seu filho, que é a luxúria que o move a desejar casar com a menina, mas, para todos os efeitos, trata-se de “vontade divina”, “revelação”. Quantos líderes fundamentalistas continuam usando este recurso em nossos dias? King também usa sua posição de “profeta” para exigir obediência cega do filho que, depois de ter visto um pouco do mundo, não quer se submeter às regras opressivas do lugar, nem se encaixar, e construir uma família polígama como a do pai. O outro homem de algum destaque na trama é o pai de Jessica, um sujeito totalmente submisso às regras e à autoridade a ponto de se negar a dar para filha um sapato boneca, porque ele é um homem cumpridor dos costumes.
Quando partimos para as mulheres, temos a conformada mãe de Isaac, a primeira esposa do pastor. Ainda que transborde amor pelos filhos e se disponha mesmo a acolher Jessica, ela se acomodou a condição de objeto usado e descartado, já que está velha demais para procriar. Como se consola? Vontade de Deus. Já a questionadora Naomi tenta fugir da comunidade para cair nas mãos de dois sujeitos que tentam estuprá-la. Resgatada pelo pastor chefe da comunidade, ela não tem saída a não ser casar com um octogenário. Todo processo de assujeitamento é bem retratado. O mundo lá fora é hostil e depois de engravidar, cabe à Naomi se resignar.
A outra personagem feminina de destaque é a mãe de Jessica, Mary. Ela ama o marido, mas se sente oprimida pelas regras e pela imposição da poligamia. Seu marido não se importa com ela e a mulher se desespera ao ver que o que resta da infância da filha será roubada por um bode velho. Sim, Mary é uma das poucas pessoas da comunidade que diz “amém” entre os dentes para o presidente King, que ousa soltar frases que deixam entrever sua insatisfação, que lamenta a perda dos sonhos. Ela é peça fundamental na libertação da filha, pois, sem seu apoio, Jessica jamais teria forças para ir embora.
E há a protagonista, claro. Ela carrega em si todas as contradições da adolescência. É curiosa, quer conhecer o mundo, apaixona-se, mas, ao mesmo tempo, sente-se culpada por desejar coisas que vão de encontro ao que aprendeu e viu na comunidade. Fugir com Isaac não seria o mesmo que renegar Deus e os ensinamentos dos pais? O que a espera no mundo lá fora? Outra coisa que fica bem marcada, e que aparece em outros filmes de crítica às comunidades religiosas radicais, como Kadosh, de Amos Gitai, é que abandonar a comunidade, o grupo que deu significado a toda a sua vida, você está rompendo laços, é dado como morto. Há esta discussão dentro do filme, um dos jovens da comunidade fugiu, para todos os efeitos, ele cometeu suicídio, mas Isaac diz para Jessica que, na verdade, ele está vivo, bem e se tornou advogado. Jessica, no entanto, é fiel a sua família, sente-se presa a ela e somente o apoio da mãe, que ela talvez nunca mais pudesse ver, conseguiu lhe dar o empurrão final. Nem preciso dizer que o filme cumpre a Bechdel Rule. Há várias personagens femininas com nome, que conversam entre si, na maioria das vezes, sobre a sua própria condição. Eu diria mesmo que, em muitos aspectos, trata-se de um filme feminista.
O grupo enfocado no filme, a FLDS (Fundamentalist Church of Jesus Christ of Latter-Day Saints), é uma dissidência da Igreja Mórmon ou Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias que se recusou a aceitar a desistência e proibição – documentos de 1890 e 1904 – da poligamia compulsória por parte do movimento. A partir da ruptura, a FLDS passou a se organizar em comunidades mais ou menos fechadas com práticas muito estritas. Short Creek foi a primeira e hoje eles se espalham por vários estados dos EUA, como Texas, Utah (*centro do mormonismo*) e Colorado. O ataque da polícia à Short Creek foi fruto de uma longa investigação mostrada no filme. O governo do Estado e a chefia da polícia não podiam contar, entretanto, com a comoção da opinião pública. Afinal, e o filme mostra isso muito bem, separar famílias que se amam, mandar os pais para cadeia, mães e crianças para campos de reeducação, não poderia render boa propaganda. Parte dos jornalistas e da polícia local fica contra a ação.
Apesar do incidente de Short Creek e outro semelhante no Texas em 2008, a poligamia e forma de organização do grupo é tolerada pelo governo e pelos mórmons ortodoxos. Normalmente, as intervenções são feitas por outras denuncias, tais como estupro, maus tratos, casamentos forçados, pedofilia e incesto. A FLDS considera seu direito manter práticas polígamas como parte da liberdade religiosa garantida pela Constituição dos EUA e são a maior seita do tipo no país. A FLDS, e isso é mostrado no filme, tem uma organização patriarcal que subordina as mulheres e aliena os jovens. Uma das denuncias feitas contra o grupo é que os velhos, os líderes da comunidade, tentem a casar com o máximo de mulheres possíveis, negando aos jovens o direito de acesso às esposas de sua idade. É comum que adolescentes e jovens do sexo masculino sejam expulsos das comunidades acusados de delitos e pecados para que homens velhos possam cumprir sua função “dada por Deus” de casar com o máximo de mulheres e procriar muitos filhos. Só quem realmente ganha com uma ordem dessas são os homens velhos. Vide a foto que coloquei de verdadeiros FLDS de nossos dias.
Casamento infantil – e a ONU normalmente arrola nesta categoria toda a sorte de união com meninas de menos de 18 anos – é um problema que existe até hoje. Semana passada, o relato em vídeo de uma menina iemenita de 11 anos, Nada al-Ahdal, que disse que se mataria se fosse casada a força, circulou pela internet e comoveu o mundo. No entanto, ainda que muito mais comum no meio islâmico fundamentalista e em alguns países muito específicos, o casamento forçado de meninas ocorre dentro de vários grupos religiosos ocidentais, como no caso da FLDS que atua livremente nos EUA e até no Canadá. Isso quando o abuso do poder religiosos não conduz simplesmente a satisfação temporária dos desejos do líder que promete cura divina caso meninas (*e meninos*) lhe cedam favores sexuais. Várias notícias do gênero aparecem na mídia brasileira todos os anos.
É isso. Se você quiser assistir Child Bride of Short Creek basta jogar no Youtube. Foi lá que peguei o filme. Infelizmente, não tem legendas. Vale a pena tentar, pois o filme é muito bom e uma das coisas legais é que, além de ter um final mais ou menos feliz, os atores protagonistas têm idades muito próximas das personagens que interpretam. A gente olha Diane Lane e vê nela a menina que está interpretando, o mesmo vale para Christopher Atkins, o rapazinho de A Lagoa Azul. Não lembro de ter visto este filme na TV, mas, muito provavelmente,ele deve ter sido exibido por aqui.
1 pessoas comentaram:
Este filme é um remake do filme Child Bride de 1938!Mas no de 1938,parece que a menina tem uns 11 ou 12 anos
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