segunda-feira, 8 de abril de 2013

Comentando Jezebel (1938) ou uma Homenagem à Bette Davis



 Sexta-feira foi aniversário da magnífica Bette Davis (1908–1989) e decidi que iria rever um de seus filmes e resenhar aqui no blog.  Fiquei entre Vitória Amarga (Dark Victory, 1939) e Jezebel, como este último é um dos meus filmes favoritos, decidi que seria ele.  A primeira vez que assisti Jezebel foi em um festival da Rede Globo, na época em que filmes colorizados eram uma grande novidade.  Na leva tínhamos Casa Blanca, Captain Blood e Jezebel.   Lembro-me de como foi impactante a cena do baile com a protagonista, Julie Marsden (Bette Davis), em seu vestido escarlate entre as donzelas de branco e toda a desgraça que se seguiu depois.  Jezebel deu para Davis o seu primeiro Oscar de Melhor Atriz e ainda hoje, acredito, é um filme muito bom.

Jezebel foi filmado e lançado no ano de 1938.  Baseado em uma peça da Broadway, foi empurrado, segundo o documentário que está no meu DVD, pelo sucesso literário de E o Vento Levou (Gone with the Wind), lançado em 1936.  Davis concorrera ao papel de Scarlet O’Hara e tinha perdido.  A Warner, segundo um dos documentários do box de E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), chegou a forçar a barra para que suas duas grandes estrelas, Davis e Errol Flynn, fossem Scarlet e Rhett Butler, mas não deu certo.  Enfim, acredito que ambos, Flynn e Davis, especialmente ela, saíram ganhando, já que os papéis de E o Vento Levou terminaram grudando a tal ponto nas suas protagonistas, que elas se tornaram as personagens no imaginário popular.  Enquanto isso, Bette Davis continua sendo Bette Davis, com sua beleza exótica, sua pose majestosa e seus olhos expressivos.  E ela estava no auge em Jezebel!


Para quem não conhece a história do filme, um resumo rápido.  Jezebel se passa em Nova Orleans, nos anos de 1852 e 1853.  Julie Marsden (Bette Davis) é uma herdeira rica, mimada e que não se importa em afrontar as convenções sociais.  Ela é noiva de um jovem banqueiro, Preston Dillard (Henry Fonda), um workaholic dividido entre as idéias modernizadoras vindas do Norte e as tradições do Sul.  A fixação de Dillard pelo trabalho, deixando a noiva em segundo plano, faz com que Julie decida afrontá-lo, e a toda a “boa sociedade”, rompendo com a tradição que obrigava todas as moças solteiras a vestirem branco no baile Olympus.  Dillard a proíbe de ir de vermelho, ela vai contra a vontade dele, e é humilhada publicamente.  Rompido o noivado, Dillard viaja para o Norte e Julie cai em profunda depressão.  Quando o rapaz volta meses depois, ela se enche de esperança, pois acredita que ele irá reatar o noivado.  No entanto, o jovem volta casado, mesmo ainda estando apaixonado por ela, e Julie decide se vingar dele da pior forma possível utilizando-se de um de seus admiradores, Buck Cantrell (George Brent). Por suas maquinações e crueldade, ela acaba recebendo a alcunha de “Jezebel” de sua tia e tutora (Fay Bainter).  Enquanto as tragédias pessoais se sucedem, uma maior e mais devastadora devora a cidade de Nova Orleans, um terrível surto de febre amarela.   

Jezebel é um filme que permite várias discussões interessantes.  A que vem de cara é o papel das mulheres sulistas ricas às vésperas da Guerra de Secessão (1861-1865).  Para quem leu o livro, mais do que viu o filme, é fácil comparar Scarlet O’Hara e Julie Marsden.  Ambas são ricas, inquietas e insatisfeitas com as limitações impostas às mulheres.  Não iria ao ponto de chamá-las de feministas, mas há algo de feminista em algumas de suas atitudes.  Só que Julie não tem pai, nem mãe (principalmente) para podá-la, como acontece com Scarlet no início do livro/romance.  Julie tem uma tia e um tio como tutores, mas eles não têm autoridade alguma sobre ela.  A moça manda e desmanda em tudo e em todos.  


A personagem de Davis não abre o filme, ela só aparece minutos depois, chegando atrasada à festa em sua própria casa.  A primeira imagem de Julie Marsden é a de uma amazona arrogante montando em um cavalo espirituoso.  Ela desce do garanhão em seu hábito de montar e decide cumprimentar todos na festa sem se trocar.  A tia fica chocada, mas Julie não está nem aí, em relação a isso.  A moça não se contém quando a tia a adverte baixinho quando ela pega uma bebida – acho que whisky – que seria “só para os homens”.  Ela convoca um brinde ao seu noivado e engole tudo de uma vez.  Só que o noivo não está e este é o único "detalhe" que constrange e enfurece a moça.  E o que ela faz?  Depois da festa, se dirige ao banco atrás do rapaz, no caminho para a modista. Como ele está em reunião e manda recado pelo escravo de que falará com ela depois.  Julie não se faz de rogada e entra no banco.  Escândalo!  Mulheres não freqüentam bancos, todos olham para o moço e ele é um constrangimento só.  Mas, ainda assim, Dillard não vai com ela.

Na modista, Julie prova seu vestido e reclama que todas as moças solteiras precisam usar branco.  É tradição, as matronas respondem.  Tradições mantém a sociedade funcionando.  Só que uma das assistentes passa carregando um vestido vermelho encarnado, encomendado e descartado pela mais importante prostituta da cidade.  A moça decide que irá usá-lo e solta “Não estamos mais na Idade das Trevas, quando uma mulher não podia escolher o que vestir”.  A frase tem duplo entendimento, afinal, em 1938 as mulheres ainda eram em quase todos os sentidos cidadãs de segunda classe, tuteladas.  Colocar na boca da rebelde Julie/Davis a frase era passar uma mensagem muito mais ampla.  Ela falava às mulheres de seu tempo.


Mas Jezebel é um filme de contradições.  Julie, que me lembra um pouco a Aurélia de José de Alencar  só que sem sua frieza e racionalidade, faz tudo o que faz por causa de uma paixão doentia.  Seus questionamentos acabam sendo calados quando ela vê que está perdendo seu amado.  Sabemos, por exemplo, que os dois já tinham rompido antes.  Julie caíra do cavalo, quebrara a clavícula, e Dillard matara seu cavalo.  “Que direito ele tinha de matar o meu cavalo?”  Nenhum.  O nome do filme em francês, Insubmissa, resume bem o caráter de Julie.  Na cena que antecede ao baile, Julie desafia Dillard dizendo que ele tem medo de ir ao baile com ela vestida de vermelho (*e terrivelmente decotada para os padrões da época*), porque pode ter que se bater em duelo para defender sua honra.  Ele decide ensinar-lhe uma lição.  

É no Olympus Ball que vemos o quanto de dinheiro foi investido no filme.  O cenário do salão de bailes é completo, com a câmera passeando e nos dando visão da orquestra, balcão e candelabro.  Pergunto-me se a cena do baile de A Bela e a Fera da Disney não bebeu ali.  Na seqüência inteira, o rosto de Henry Fonda parece feito de pedra, o olhar é frio, quase assassino, para quem ousasse olhar duas vezes para o vestido de Julie.  Quando a moça percebe que todos se afastam dela como se fosse uma leprosa, ela tenta se esquivar, mas o moço segura seu braço como se fosse uma tenaz de ferro e a arrasta para o salão.  Cena magnífica, o rosto de Bette Davis em evidência, a rápida olhadela para a direita e para a esquerda e a câmera abre.  Daí, percebemos que todos saíram da pista e Dillard e Julie dançam sozinhos.  É o fim do noivado.


Mais tarde, quando o moço volta, Julie o recebe submissa, com uma cortesia profunda e vestida de branco, “como deveria ser”, mas é tarde demais, logo ela fica sabendo da esposa nortista.  Amy (Margaret Lindsay) é tudo que Julie não consegue ser: fala baixo, é recatada, apoia seu homem em qualquer situação. A partir daí, baixa a Jezebel em Julie Marsden e ela conduz a personagem de George Brent, parceiro de Davis em muitos filmes, á destruição. Buck Cantrell é totalmente apaixonado por Julie.  É, também, o oposto de Dillard, despreza o trabalho, especialmente ligado ao comércio, e prefere as atividades da aristocracia dona de terras.  Vive sob um código de honra cada vez mais ultrapassado e é dele a primeira cena do filme, desafiando um homem para um duelo, porque ele ousou falar o nome de Julie Marsden em público em um salão para homens.  Depois sabemos que ele matou o sujeito.  Julie quer que ele mate Dillard, ou pelo menos, ela acha que quer, mas a situação escapa de suas mãos.  Cantrell não vê nem a Guerra de Secessão, ele era obsoleto até para a sua época.

Mas os diálogos de Cantrell e Dillard na mesa de jantar lembram muito as conversas dos homens no churrasco na fazenda dos Wilkes, com Rhett Butler dizendo que o Norte venceria o Sul em qualquer guerra.  Só que Dillard não é Rhett Butler, ele preza a “boa sociedade” e suas regras... Ele precisa reafirmar que é um sulista fiel e que não é abolicionista, ainda que seja acusado de sê-lo por Cantrell.  Dillard é o sujeito de idéias modernas - e é isso que sua esposa nortista admira nele - em um mundo arcaico.  Quer abrir ferrovias, mas seus pares dizem que têm o rio e que não precisam de trens.  Propõe a drenagem do pântano para tentar evitar novo surto de febre amarela, enquanto os grandes senhores de terras com os quais se relaciona acreditam que a peste seja transmitida pelo ar e que basta fazer grandes fogueiras e disparar canhões para “limpar o ar” e colocar fim a qualquer peste.  Dillard quer construir hospitais, mas para os sujeitos, basta mandar os doentes com febre amarela para a ilha dos leprosos... Dillard acaba vítima da peste e esta é a chance de Julie se redimir.


Sim, porque ela é acusada de ser uma mulher má, como a Jezebel bíblica que levou seu marido, o Rei Acabe a cometer crimes.  Só que Julie é capaz de tudo por Dillard.  Ela atravessa o pântano à noite com um escravo, para cuidar dele quando sabe que o moço adoeceu e foi alojado em sua casa.  Ela consegue convencer a esposa de Dillard que ela seria melhor companhia para ele na ilha dos leprosos, pois ela fala creolle, ela sabe como tratar com escravos.  Amy acaba cedendo, pois sabe que Dillard continua amando Julie.   E, assim, temos a cena final apoteótica com a heroína insubmissa em uma charrete seguindo com a procissão de doentes para o leprosário.  Vejam que o sacrifício é a única forma de redenção para uma mulher que não aceita as regras do jogo, os papéis de gênero.  É uma demonstração de força da personagem de Davis, sem dúvida, mas é, também, uma reafirmação do dispositivo amoroso, amar é servir e se sacrificar.  Só assim ela pode recuperar Dillard, mesmo que seja na morte.

Há outras situações interessantes.  Dillard tem um grande amigo, que foi seu tutor quando ficou órfão, o Dr. Livingstone (Donald Crisp), que o aconselha a tratar Julie como uma dama sulista.  Ele entrega a bengala para o moço e diz que lhe dê uma boa surra e, mais tarde, uma bela jóia e ela ainda iria agradecê-lo.  Quando ele sobe ao quarto de Julie armado com a bengala, o tutor da moça impede que a tia intervenha.  É o que ela merece, afinal.  Vejam que a imagem da mulher apanhando nas nádegas de cinto, bengala ou outro objeto qualquer, é muito presente na arte erótica da época.  Lembro de filmes, como Vendaval de Paixões (Reap the Wild Wind, 1942), que também se passa no Sul antes da Guerra.  Nele a mocinha rebelde e encrenqueira, também uma sulista, apanha do seu interesse amoroso.  A cena não é questionada em nenhum momento.  Imagino que tal seqüência tenha gerado grande ansiedade e muitos tenham desejado que Dillard desse uma lição na noiva.  Mas Julie é Bette Davis e o filme é dela.  O rosto de Davis, suas expressões faciais, o close na bengala... ela convence Dillard a não bater nela mesmo continuando a afrontá-lo.  E ainda pergunta quando ele está indo embora e esquecendo o objeto “Não vai levar sua bengala, querido?”.  


Para os códigos da época, talvez para muita gente ainda hoje, estava tudo errado.  Dillard era um fraco.  O próprio trailer do filme diz "A história de uma mulher que foi amada, quando deveria ter sido açoitada!".  Ele deveria ter batido e ela, obedecido.  Ele deveria ter o direito de matar o cavalo favorito da moça como “prova de amor e proteção”, e ela consentido.  Ele deveria poder escolher seu vestido ou impedi-la de vestir vermelho, pois, pelas regras do jogo, ele deveria ter autoridade e poder sobre ela.  Julie é infantil e inconseqüente, cruel mesmo, mas é um mundo de poucas escolhas para as mulheres.  O contraponto da moça é Stephanie Kendrick (Margaret Early), dominada pela mãe, é esculachada em público por qualquer falha na etiqueta e obrigada a se pautar por costumes fora de época.  A mãe repete que “No Sul é assim” e ponto final.  A Sr.ª Kendrick é toda cortesia na frente de Julie, mas por trás diz que ela deveria ter levado muitas surras quando criança.  Por fim, ela vira a cara para a moça duas vezes, no Olympus Ball e depois da morte de Cantrell, Stephanie não tem forças para resistir à mãe.  Quem rompe com as convenções, e a própria Julie irá aprender, paga o preço.

Nem preciso dizer que o filme cumpre a Bechdel Rule.  Trata-se de um filme de mulheres.  Davis e Fay Bainter foram oscarizadas.  Há várias personagens femininas com nomes, que conversam entre si e que não estão falando de um homem, mas de costumes, de direitos e deveres das mulheres, de regras sociais.  É surpreendente pegar o cinema das décadas de 1930 e 1940 e ver a quantidade de produções caras, como Jezebel, que tinham mulheres como o primeiro nome do elenco, filmes protagonizados por mulheres indicados aos prêmios oscar principais. Isso não era exceção como hoje.  Trata-se de um retrocesso assustador.  Além de atriz principal e coadjuvante, a película foi indicada a melhor filme, fotografia e música.   Aliás, fotografia, figurino e música são mais que detalhes no filme, são peças muito importantes.  A direção de William Wyler nem se fala.


O ponto fraco do filme visto pelos olhos de hoje é a forma estereotipada como a escravidão foi retratada.  Assim como em E o Vento Levou e outras películas do gênero Southern, pré anos 1950,  uma característica marcante era serem protagonizados por mulheres e a outra, venderem uma visão idealizada do Sul.  Eu vejo contradições em relação a isso em Jezebel, pois o atraso tecnológico, e mesmo sanitário, do Sul, o apego a costumes arcaicos, é jogado como o ponto fraco da região, e é, também, fonte de desgraça para o herói civilizador, Dillard.  No entanto, todos os escravos são felizes e saudáveis, até idiotizados, sempre sorridentes, ou incapazes de grandes reflexões.  No livro E o Vento Levou, que é de 1936, a autora compara os negros a macaquinhos sem condições de pensar por si mesmos.  O documentário que está no DVD fala que o Sul não aceitaria os filmes de outra forma.  Eu acredito que essa imagem distorcida não era “defeito” dos sulistas, mas de boa parte dos americanos.  

É isso, Jezebel é um grande filme.  Mesmo datado em certos aspectos é uma prova do cinema grandioso que se fazia nos anos 1930.  É, também, um dos pontos altos da carreira de Bette Davis, que é o centro das atenções durante toda a película.  Queria muito consegui-lo colorizado.  A raiva toda é que vários filmes, como Orgulho e Preconceito e Zorro, ambos de 1940, trazem a cópia colorizada como bônus.  Em Jezebel isso não ocorre nem na edição nacional, nem na americana, e é uma pena.  É isso.  Recomendo o filme, pretendo resenhar outros da atriz, mas a próxima resenha será de Os Croods.  

2 pessoas comentaram:

Fiquei com vontade de assistir. Vou buscar o filme por aí.

Acabei de assistir o filme, tinha gostado, mas seu texto meu deu uma outra visão do filme, enriquecendo ainda mais esse filme. Obrigada!

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