Em um dos meus textos sobre Lado a Lado, novela das 18h que termina nesta sexta-feira, tinha comentado que se ela fosse um pouco mais realista, Laura já teria sido ameaçada com o manicômio, aliás, deveria ter acontecido lá no início da trama. A adolescente rebelde ameaçada de tratamento pela mãe e, talvez, defendida pelo pai. Mas a chance foi perdida, a trama seguiu outros rumos. O fato é que mulheres que se recusavam a se enquadrar, eram punidas, e quando a Igreja Católica passou a ser mais criteriosa quanto a aceitação de freiras á força, e o discurso científico passou a ser o discurso de verdade por excelência, era a internação em instituições psiquiátricas um dos recursos usados pelas famílias para manter "suas" mulheres sob controle. O problema é que a internação da mocinha aconteceu somente no finzinho da trama e em um daqueles lances que, não fosse o talento de Marjorie Estiano e do elenco envolvido nas cenas, poderia servir somente para reforçar o caráter doentio e egoísta de Constância (Patrícia Pillar). Aliás, foi excelente a cena em que a vilã desesperada por ver sua filha “tratada como louca”, e não da forma que combinara previamente, não consegue tirá-la do hospital, afinal, ela era somente a mãe e era necessário alguém com autoridade, pai ou marido.
Poucas vezes Constância é lembrada de suas limitações por ser mulher, uma eterna menor, juridicamente falando, se na condição de filha ou esposa, em uma sociedade patriarcal. A cena foi bem precisa, o talento de Patrícia Pillar explorado ao máximo. Toda a seqüência de cenas no manicômio foram fortes e mostraram toda a instrumentalização do discurso médico-científico para reforçar o machismo vigente. Os médicos eram homens, os queixosos de suas mulheres, na maioria das vezes, também eram. A mulher internada por sua insubmissão era prontamente rotulada de “louca” ou “histérica”, sua palavra não tinha peso algum.
Camille Claudel, famosa artista francesa, escrevia para o irmão dizendo não ser louca. Bem, a negativa era somente a prova cabal de seu desequilíbrio. A palavra das mulheres em si já tinha menor valor, se a mulher fosse acusada de louca então... é como disse a personagem Judite na trama “Se você não entra louca, fica.”. Eu tive uma colega de faculdade que estudava as mulheres internadas no manicômio da Praia Vermelha no início do século. Bem, as fotos eram desesperadoras e as histórias das mulheres ainda mais. Mas deixo as palavras da co-autora da trama, Cláudia Lage, sobre essa parte da novela em uma matéria do site da revista Caras:
Camille Claudel, famosa artista francesa, escrevia para o irmão dizendo não ser louca. Bem, a negativa era somente a prova cabal de seu desequilíbrio. A palavra das mulheres em si já tinha menor valor, se a mulher fosse acusada de louca então... é como disse a personagem Judite na trama “Se você não entra louca, fica.”. Eu tive uma colega de faculdade que estudava as mulheres internadas no manicômio da Praia Vermelha no início do século. Bem, as fotos eram desesperadoras e as histórias das mulheres ainda mais. Mas deixo as palavras da co-autora da trama, Cláudia Lage, sobre essa parte da novela em uma matéria do site da revista Caras:
"Era uma prática comum no século XIX, que perdurou até meados do século XX. No estudo que nossa pesquisadora, Luciane Reis, fez pra gente, os prontuários dos médicos eram impressionantes. As justificativas para a internação parecem inverossímeis aos olhos de hoje. 'A paciente apresenta grave obsessão por livros', 'desprezo pela família', 'excitação sexual nervosa', 'recusa em ter filhos'”, explicou a autora, acrescentando que essas mulheres tinham algo em comum.
“Um dado notável é que boa parte das pacientes nos sanatórios era mulheres que haviam estudado além do estipulado para as mocinhas na época, que só aprendiam o suficiente para ler, escrever e fazer contas. Elas foram além, fizeram o curso normal ou ainda eram normalistas, dedicavam-se ou não ao magistério, mas eram mulheres com o intelectual acentuado, com interesses sociais e profissionais, que fugiam à ideia do casamento e da maternidade como o único destino possível. Foram tantas mulheres que passaram por isso que os seus nomes só chegaram a nós por meio de suas tristes histórias, já que todo o impulso delas de independência foi sufocado pelos familiares, o pai ou o irmão, ou pelo marido, que tinham a autorização para interná-las mesmo contra a vontade. Quer dizer, eles tinham o poder de julgar e decidir se suas esposas, irmãs e filhas eram loucas ou não, e interná-las caso assim desejassem. Do mesmo modo, só eles, ou uma junta médica, podia tirá-las do sanatório, ou deixá-las para sempre lá, como foi o caso de muitas", completou.
Cláudia também falou sobre a personagem Judite, a amiga que Laura faz no sanatório. "Inspirada em muitos casos reais, que vimos na pesquisa, Judite foi internada pelo próprio marido e esquecida no sanatório. Quando Laura chega, ela já está lá há 11 anos. A personagem ganhou esse nome, Judite, em homenagem a um texto da escritora Virgínia Woolf, no qual fala que se Shakespeare tivesse tido uma irmã tão talentosa quanto ele, ela nunca teria as mesmas oportunidades, e nunca se tornaria uma grande dramaturga. Virgínia batiza essa irmã fictícia de Judite. Enquanto Shakespeare ia para a universidade, Judite ficava em casa descascando batatas, por imposição dos pais. Essa irmã de Shakespeare, criada pela Virgínia Woolf, simboliza todas essas mulheres repletas de potenciais e de desejos, todos refreados e sufocados pela mentalidade sexista da sua época".
Achei vários artigos sobre mulheres e loucura no Brasil do início do século e recomendo dois: As insanas do Hospício Nacional de Alienados (1900-1939) e Eugenia, Loucura e Condição Feminina. o primeiro, que estuda material do Rio de Janeiro, contradiz um pouco o que a autora diz, pois indica que a maioria das mulheres encarceradas era pobre, negra e parda, mas aponta que o tempo de internação das mulheres era, na média, bem mais longo que o dos homens. O segundo, fala de como os discursos médicos atuam em conjunto com o patriarcado para o assujeitamento das mulheres. Vale a leitura.
2 pessoas comentaram:
Ao ler sobre a irmã hipotética de Shakespeare, imediatamente lembrei da irmã de Mozart, Maria Anna (Nannerl) Mozart, que é um caso que aconteceu. Ela era praticamente tão talentosa quanto ele quando eram crianças (acho que ele apenas compunha mais, mas não tem como saber disso com certeza). Só que o pai fez ela ficar cuidando da casa e dando aulas para ganhar dinheiro para a família, enquanto viajava pelo mundo para exibir seu filho prodígio. (às custas da filha)
Copio um trecho, traduzido por mim, do livro Mozart - The Real Amadeus (que coincidentemente postei a respeito no meu blog ontem)
"Quando criança, a irmã de Mozart, Maria Anna (Nannerl) tocava o teclado tão brilhantemente quanto seu irmão, mas depois que ela fez dezesseis anos Leopold deixou-a para trás quando levou Wolfgang para o exterior. Não houve pensamento de carreiro para ela como musicista profissional, simplesmente por causa de seu sexo. Ela tentou compor e foi entusiasticamente encorajada por Wolfgang, mas seus esforços foram ignorados por Leopold."
Existem muitos outros casos conhecidos como o de Nannerl na história da música, e nem consigo imaginar quantos casos nem conhecemos.
Achei esse post sensacional. Eu já tinha lido sobre debates entre médicos e psicólogos sobre a suposta degeneração mental dos negros e dos mestiços nessa passagem do XIX para o XX, onde Juliano Moreira defendia que os negros não estavam mais propensos a loucura que os brancos, indo contra o senso comum defendido por Nina Rodrigues, mas não sabia que era feito com mulheres também. É muito bom que blogueiros apontem erros das novelas, porque aí se denuncia que esta não ensinam tanto como dizem por aí. Eu li um dos links que vc colocou no outro post sobre divórcio e percebi o anacronismo que a novela fez, pq "desquite" não é divórcio. É separação de corpos com continuação do matrimonio, no entanto na cena de revogação do desquite de Laura e Edgar eles só falavam em divórcio.
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